A minha intolerável arrogância moral
A permanência de Joana Marques Vidal era fundamental porque as instituições portuguesas são más e permeáveis ao poder.
Em reacção à nomeação da nova procuradora-geral da República, o director do PÚBLICO escreveu um artigo intitulado “O pseudogolpe na procuradoria”, onde defende que a substituição de Joana Marques Vidal “é uma opção normal (embora discutível)”, e que quem a considera “uma cedência aos lobbies de poderosos ou à venalidade dos políticos” denota “uma arrogância moral intolerável”, e promove “uma menorização inaceitável do corpo do Ministério Público”. Manuel Carvalho não está sozinho. Neste jornal, nomes como Ana Sá Lopes, São José Almeida ou Vicente Jorge Silva defenderam posições próximas, declarando que o processo de substituição foi apenas uma manifestação de “normalidade democrática” (título do artigo de São José Almeida).
Vale a pena polemizar com estes textos porque dá-se o caso raro de o meu profundo desacordo com Manuel Carvalho ou São José Almeida não estar no desenrolar da sua argumentação, mas sim nas premissas que a sustentam. Para mim, a chamada “normalidade democrática” é muito mais uma maquilhagem superficial do que uma manifestação profunda da cultura política do país. E quando Manuel Carvalho afirma que “Portugal é, apesar de tudo, um país dotado de aparelhos institucionais suficientemente maduros para dispensarem o papel do caudilho ou dos salvadores da pátria”, eu certamente concordo com ele na dispensa de caudilhos e de salvadores da pátria, mas discordo profundamente que exista um Portugal “dotado de aparelhos institucionais suficientemente maduros”. Esse Portugal não existe, e é exactamente por não existir que a recondução de Joana Marques Vidal era tão importante – ela estava a contribuir, provavelmente como nenhuma outra figura do Estado português, para a construção dessa maturidade.
A razão pela qual falo obsessivamente em José Sócrates não é por ele ter roubado dez, 20 ou 50 milhões. No campeonato dos desvios de dinheiro haverá com certeza outros maiores do que ele. Sócrates é muito importante – e é esse o aspecto em que ele é único, não havendo comparação possível com outro político, à direita ou à esquerda – porque procurou alcançar o controlo total dos sectores executivo, legislativo, judicial, económico e mediático, extravasando em muito os poderes que lhe eram constitucionalmente atribuídos. O atentado ao Estado de Direito existiu. Mesmo. Os seus anos de governo foram a construção de um poder desmesurado à frente dos nossos olhos. E o pior não foi ele ter-se atrevido e, em boa parte, conseguido – o pior foi que o país deixou. As instituições cederam. O Portugal do respeitinho, cobardolas e medroso, reapareceu. A maturidade de que Manuel Carvalho fala no seu editorial não existiu entre 2005 e 2011. E nada garante que exista em 2018.
As pessoas olham para Donald Trump e dizem: “Como é possível os Estados Unidos terem eleito um homem daqueles?” Mas os Estados Unidos vão sobreviver a Trump porque o seu sistema político foi construído para resistir a energúmenos. Os bons sistemas não são aqueles que impedem maus líderes de ser eleitos, mas aqueles que possibilitam que as instituições funcionem mesmo que a sua eleição ocorra. Ora, em Portugal elas deixaram de funcionar decentemente em 2005. A permanência de Joana Marques Vidal era fundamental porque as instituições portuguesas são más e permeáveis ao poder, e a independência de que ela deu mostras é uma qualidade muito rara. É isto uma “arrogância moral intolerável”? Não, caro Manuel. É simples prudência. E um bocadinho de memória.