Nuno Amado: "Os banqueiros tinham uma ideia de si superior à realidade"
Nuno Amado, o agora presidente não executivo do BCP, alerta que se estão a repetir erros com a criação de grandes bancos mais complexos, e reconhece que a crise afectou a credibilidade do sector.
Em entrevista ao PÚBLICO, no quadro dos dez anos da queda do Lehman Brothers (LB), o presidente não executivo do BCP, Nuno Amado, de 60 anos, diz que não consegue, neste momento, “perspectivar as características de um processo recessivo nos próximos anos”. Mas adianta que aos períodos de expansão se seguem as crises e defende que quer em termos macroeconómicos, quer em termos da banca, Portugal está hoje em melhores condições para enfrentar tempos de turbulência.
A 15 de Setembro cumpriram-se 10 anos desde a queda do LB, que provocou um tsunami nos mercados mundiais e abriu a porta à maior crise financeira e económica desde 1929. Percebemos o que aconteceu, mas ainda perguntamos: Como foi possível?
Em termos internacionais houve um conjunto de situações que levaram a uma enorme alavancagem das economias e de processos, designadamente a um nível de criação de riqueza e de investimento que possibilitou colocar, a nível internacional, muitos produtos tóxicos. Em simultâneo havia devedores, designadamente os soberanos, a apresentarem um nível de endividamento também muito elevado.
A combinação destes aspectos com o momento de inversão do ciclo económico teve efeitos conjugados, sobretudo de confiança, entre mercados e soberanos, o que fez com que a crise fosse demasiado longa e com diversas fases num período de ajustamento longo. E só agora entrámos num quadro em que a generalidade das economias mais desenvolvidas está a crescer a um ritmo interessante.
Nas últimas semanas têm sido vários observadores a antecipar uma nova crise de dimensões mais catastróficas do que a de 2008.
Ao nível da situação da banca e de alavancagem de muitos dos intervenientes que em 2008 estavam em crise, a situação hoje é mais clara, mais explícita e está mais reforçada e equilibrada do que a que existia.
Ainda assim, num artigo de opinião no Financial Times, o economista Nouriel Roubini [e Brunello Rosa] veio avisar que está a caminho uma nova crise financeira e uma recessão global. E até deu data: 2020.
A minha opinião é relativamente cautelosa sobre o tema. Não é possível pensar em crescimento eterno ou em estabilidade eterna. É do conhecimento geral que a períodos de crescimento se seguem períodos de recessão e os períodos de recessão têm normalmente algum efeito de crise, de natureza distinta. Diria, portanto, que é certo que vai haver uma crise, como é certo que os períodos de recessão podem ser coincidentes com os efeitos daquilo que se designa de crise financeira. A correlação é clara. Mas não estou pessimista.
Após anos contínuos de expansão global inédita, nomeadamente no sector imobiliário, em 2001 surgiram economistas e políticos a dar por terminado o tempo das crises...
Dizia-se então que o crescimento ia ser contínuo e sustentável. Ora, isso não é possível: há períodos de crescimento e períodos de menor crescimento e de crise. E o que tem de haver são instrumentos adequados para se minimizar, contrabalançar e antecipar alguns dos efeitos das crises. Hoje, ao nível macro, do BCE, e ao nível micro, existem instrumentos que, se bem executados e implementados em tempo, permitem amortecer o impacto de uma crise. Resumindo: acho que estamos hoje melhor preparados mas sabendo que, algures no tempo, haverá recessão. E, eventualmente, uma crise que pode originar efeitos mais ou menos fortes, que não sei avaliar, mas que espero que seja menos profunda do que a de 2008.
Quem também surpreendeu, foi a responsável pela supervisão bancária europeia, Danièle Nouy quando, há dias, surgiu a advertir para a possibilidade de uma crise com origem no imobiliário...
Não possuo a visão mais ampla e global que a Sra. Nouy terá. Há que ver onde é que os preços estão realmente fora do que é razoável, em que condições os bancos estão a emprestar. Há mercados onde os preços do sector imobiliário tiveram uma subida significativa. E em alguns, como o britânico, o mercado do real estate [imobiliário] já está a ajustar.
Não o preocupa o ritmo a que o preço do imobiliário está a subir em Portugal?
Em Portugal existe uma subida dos preços, mas creio que a situação tenderá a normalizar-se com o aumento da oferta, com a chegada ao mercado de muitos projectos imobiliários, novos e de renovação urbana, que já começaram ou que só agora se estão a iniciar. É preciso não esquecer que durante muitos anos o investimento imobiliário esteve praticamente parado quer do lado da recuperação, quer da nova construção. E acabará por se chegar a um ponto de equilíbrio razoável. O que é importante é que Portugal mantenha um crescimento do PIB adequado e sustentável, isto é, com o défice orçamental muito baixo e com uma balança de pagamentos positiva. É o que temos que fazer.
E o que diz sobre os alertas de que havendo uma bolha no mercado de dívida pública e privada de dimensões superiores às de 2008, há menos instrumentos para a contrariar?
Não sou especialista em bolhas. Mas a situação de taxas de juro baixas como a que temos tido nos últimos anos, e que era necessária para estarmos hoje numa situação económica mais favorável, levou a que alguns activos tenham preços mais elevados do que no passado.
É a confiança de banqueiro que está a falar?
Não. Sei que podendo haver riscos, nomeadamente, ao nível do preço da dívida pública, também sei que ao nível das poupanças e dos investidores há capacidade, há liquidez, para absorver alguns dos desequilíbrios. Dito isto, é importante que se considere que processos de ajuste são naturais e que não se entre na zona de pânico.
Mario Draghi, do Banco Central Europeu, acaba de rever em baixa as projecções para o crescimento da Zona Euro, mencionando como factores adversos o aumento do proteccionismo e a maior volatilidade dos mercados financeiros. É um mau sinal?
É um sinal dos tempos. Se o proteccionismo vier para ficar é claramente um mau princípio. Se for algo mais temporário, mais táctico, para encontrar um novo ponto de equilíbrio nas relações económicas globais, pode ser menos negativo. Vamos ver. Mas que estamos num enquadramento de maior risco isso é claro
Há algum tema em particular, em termos europeus, que o preocupe?
Há um tema difícil, que é a política expansionista que o BCE adoptou nos últimos anos, e do meu ponto de vista de forma correcta, e que ainda está em vigor. Mas alguns dos instrumentos podem ser menos eficientes num novo ciclo negativo
A crise de 2008 levou as autoridades a actuarem para blindar o sistema financeiro...
... e para apoiar os temas de risco soberano. Em determinado momento, a partir de 2009 e 2010, o agravamento rápido do risco soberano espanhol, do italiano - e o francês começou a subir -, levou a Europa a ter uma actuação mais decisiva com resultados positivos.
Diria que a UE actuou na vertente monetária, mas esqueceu-se de ser activa no plano orçamental...
É verdade. A política monetária deu o seu contributo após a crise [de 2008], mas a política orçamental ainda não o deu, pelo menos, de modo suficiente. E países com enorme capacidade de poupança, de balanças comerciais de grande sucesso, que devem ter uma política orçamental mais expansionista, não a estão a ter. E estou de acordo quando se diz que a política orçamental, excepto em alguns países como é o caso de Portugal, não deu um contributo tão relevante como seria necessário para normalizar a situação.
Não está preocupado com o que se passa nos EUA, onde há um forte crescimento do valor das acções, num contexto de taxas de juros baixas, e com uma economia real com muitos desequilíbrios. E um presidente imprevisível que já fala em desregulamentar o sistema financeiro. E o Brexit gera incerteza sobre o futuro da UE, que, por seu turno, enfrenta pressões de movimentos migratórios. E depois temos a China...
...a situação da China parece muito estável e não é, na minha opinião, uma fonte de instabilidade financeira.
Suponho que no BCP [controlado por capitais chineses] se estude bem o tema chinês?
Do que conhecemos é assim. A imprevisibilidade na Europa e nos EUA não são positivas. Os investidores financeiros ou industriais de longo prazo, as empresas, precisam de estabilidade e de previsibilidade. Querem saber como é que o mercado vai evoluir. E a instabilidade ou falta de previsibilidade vai fazer com que o investimento financeiro se coloque no curto prazo, ou em zonas mais seguras, ou que o investimento real, o das empresas, não avance aos ritmos que deve. Estou de acordo que um dos temas críticos é a imprevisibilidade política dos efeitos de algumas situações: globalização versus defesa dos interesses dos cidadãos que, em parte, são de âmbito nacional, quer ao nível norte-americano, quer europeu.
Do ângulo de um pequeno país, os cenários macroeconómicos e políticos que se estão a desenhar, designadamente, dentro da UE não são preocupantes?
Sim. E por razões políticas e eleitorais estão a estabelecer-se diversas subalianças dentro do mercado comum. E é importante que essas sub-alianças dêem mais importância ao que é comum do que aos seus interesses. Quando falo em subalianças refiro-me às conhecidas: de um lado os países do norte, do outro, os do antigo leste, e do outro, os do mediterrâneo. E, por outro lado, os mais populistas... É um tema difícil.
O futuro da UE após o "Brexit" é uma incógnita?
O "Brexit" é o "Brexit" e sucede que na Europa pode não haver uma visão comum sobre o tema, o que é agravado pelas tais subalianças regionais ou de interesses e que estão a ter uma diversidade também ela maior. E isto cria dificuldades futuras. Como já aqui disse, os investidores, os mercados e as empresas querem estabilidade e clareza nas regras.
Um dos ensinamentos da queda do LB é que bancos demasiado grandes são difíceis de serem fiscalizados com eficácia. Hoje operam no mercado bancos ainda maiores e o BCE até os promove. E quanto maior o banco é, maior a complexidade e maior a capacidade para instrumentalizar as regras.
A história demonstra que mesmo com os supervisores a cumprirem os procedimentos, quanto maior for a instituição e maior a sua complexidade, mais difícil é a supervisão. O número de bancos grandes não diminuiu e não estou seguro que a sua complexidade tenha diminuído de forma significativa. O que os reguladores entretanto fizeram foi criar um conjunto muito alargado de legislação para compensar a complexidade e a dimensão. São milhares de páginas e inúmeras novas regras. Há que estabilizar o cenário regulatório e legislativo e fazer, com mais estabilidade, a implantação das novas regras.
Não se produziu excesso de regulação, pois já há banqueiros a falar em fadiga regulatória?
Há já fadiga regulatória por parte de quem tem de implantar todas as mudanças e, porventura, esse facto já está a ser reconhecido pelos supervisores.
No Outono de 2008, todos os banqueiros portugueses, onde se incluía, garantiram ter a situação controlada, mas houve bancos que acabaram falidos [BPN, BPP, BES] ou a pedir ajuda ao Estado [BCP, BPI, Banif - que acabou por colapsar]. E a CGD requereu reforço de capitais...
Não foi tanto a crise de 2008, mas a crise da dívida soberana [a UE passou a admitir o incumprimento por parte dos Estados membros, o que abriu a porta dos países mais frágeis, de maior risco, aos especuladores de dívida soberana] que teve o efeito maior na banca portuguesa.
Os contribuintes e os investidores podem hoje dormir descansados?
A situação não é comparável há que existia em 2008. Só para sintetizar: qualquer crise afecta todos e riscos há sempre e teremos sempre dificuldades em todas as fases do ciclo. Mas há aspectos que nos são favoráveis: a economia portuguesa hoje em dia tem um saldo da balança comercial e de pagamentos mais equilibrado. Temos um excesso à volta de 1% do PIB na balança de pagamentos, quando antes tínhamos um défice de 8% a 9% do PIB. Portanto, a economia está mais estável. Depois, temos um orçamento de Estado que antes chegou a ter um défice de 7% a 8 por cento e que estruturalmente era de 3% e 4% e 5% e hoje o défice do Orçamento do Estado andará nos 1%. Portanto, à partida o país está hoje melhor preparado, ou seja, o défice externo e o défice orçamental são razoáveis.
Está, portanto, confiante que...
...com toda a sinceridade, não consigo perspectivar as características de um processo recessivo nos próximos anos. Entendo o risco, mas não consigo qualificá-la. Qual é o principal drama do país? É termos uma dívida pública que em função do PIB é ainda muito elevada. E isso significa que temos algum risco relacionado com uma possível normalização dos juros. Mas também não é possível pensar numa normalização dos juros rápida num cenário com riscos recessivos globais. Portanto, acho que este cenário de subida rápida das taxas de juro do euro provavelmente não vai aparecer num futuro próximo.
Podemos confiar que, perante uma crise grave, os bancos em Portugal terão um desempenho mais favorável ao que tiveram, sobretudo depois de ter rebentado a crise da dívida soberana?
Os bancos portugueses entraram na crise num quadro macro diferente do que existe hoje. E a realidade de cada um também era diferente. Estavam muito expostos ao mercado internacional. Antes, os nossos bancos, em média, para cada 100 euros de depósitos, davam 160 euros de crédito e iam ao mercado internacional buscar os 60 euros que faltavam. Ou seja: um terço a 40% do nosso activo era dívida internacional. Hoje já não é. Hoje é capitais. A nossa exposição ao mercado internacional e à necessidade de obtenção de financiamento monetário básico para a nossa actividade comercial está muito minimizada. Agora a nossa necessidade está muito ligada aos instrumentos de cobertura de risco que os supervisores nos exigem. Para a actividade corrente normal não partimos com as mesmas debilidades de 2008.
Está no BCP desde 2012, e acaba de deixar a liderança executiva...
Esse é o exemplo que melhor conheço: em 2007 e 2008, o BCP tinha um rácio de capital talvez de cerca de 4% ou 5% e com menores exigências em termos de activos, um balanço menos provisionado e com menor identificação dos riscos. Dez anos depois, temos um balanço em termos de activos e passivo equilibrado, rácios de capital em torno dos 12%. Temos uma transparência em termos da qualidade dos activos que hoje em dia é muito diferente da que existia em 2008.
Em dez anos o sistema bancário português alterou-se completamente: mudaram os gestores, os accionistas, o modelo de negócio…
E havia mais bancos cotados [BES, BPI, Banif, BCP] do que há hoje [BCP].
E o consumidor está melhor servido?
Está melhor protegido.
Pedro Rebelo de Sousa, que pertence aos órgãos sociais do BCP, defende que na banca há um défice de concorrência.
Discordo. Os spreads dos vários produtos, crédito à habitação e crédito às empresas — mesmo naquelas com um rating normal, que nem é rating bom — voltaram a ser concorrenciais. E na minha opinião o custo do dinheiro até é inferior ao que deveria ser. Hoje em dia qualquer cliente tem quatro ou cinco bancos onde pode procurar as melhores condições. O crédito novo em Portugal é feito em condições muito alinhadas com o resto da Europa. As taxas de juro do crédito no último ano demonstram que a concorrência foi normalizada em Portugal e é muito intensa, muito agressiva. Para os meus colegas espanhóis a trabalhar em Portugal a concorrência no sector não é inferior há que existe em Espanha.
Por falar em Espanha, Pedro Rebelo de Sousa também se mostrou preocupado com o peso da banca espanhola em Portugal...
Está no limite. Defendo que na banca, em Portugal, deve haver diversidade: banca de base nacional e estrangeira; banca privada e pública, e isto, pelo quadro de incerteza que existe em termos internacionais; capital estrangeiro com origens diferentes; dimensões diferentes. Sou defensor deste modelo há muitos anos. O tema da banca pública e privada está bem, a CGD tem um peso aceitável, o mesmo equilíbrio existe na relação entre banca nacional e estrangeira. Para mim, hoje a prioridade deve ser garantir no sector uma maior diversidade de origem do capital. A diversidade em todas as suas vertentes é uma das componentes da concorrência.
Um dos efeitos benéficos da crise foi expor as fragilidades das instituições bancárias, mal geridas, com modelos de negócio desajustados e gestores com práticas ilegais e princípios errados.
O tema do modelo de governo dos bancos é importante, pois nalguns casos não eram apropriados. Não existiam checks and balance. As decisões eram tomadas e não eram acompanhadas de forma detalhada por comissões e por áreas independentes. E nessa matéria houve uma enorme evolução desde 2008.
O perfil distraído do BdP é conhecido e, à semelhança de outros supervisores, também negou a génese dos problemas do sector que rebentaram nos contribuintes. O que mudou?
Está mais interventivo. E sinceramente, tal como os bancos, o supervisor evoluiu muito nos últimos anos. E o mecanismo de supervisão europeia, o Mecanismo Único de Supervisão (SSM, Single Supervisory Mechanism) veio ajudar. Há hoje um conjunto de comparações e de análises feitas pelo SSM que não tem apenas a perspectiva da supervisão vertical, banco a banco, mas faz também uma comparação horizontal entre bancos mais profunda.
Diria que, se por um lado os supervisores estão mais actuantes e intrusivos, ao mesmo tempo deixam sem regulação e supervisão a designada shadow banking (entidades financeiras sem supervisão bancária).
Esse é um dos temas mais difíceis na actual situação. Os bancos concorrem em segmentos do negócio com entidades com uma regulação muito mais leve e quase sem supervisão financeira independente, o que tem dois efeitos complexos. Por um lado, um level playing field mais difícil e injusto que afecta negativamente as condições de exploração do sector e, por outro, uma maior debilidade sistémica, pois os riscos do shadow banking são muito menos conhecidos e, as surpresas, normalmente vêm do que não é tão acompanhado.
Um dos efeitos da crise de 2008 foi a descredibilização do sector e dos banqueiros. Hoje, há desconfiança e, sem querer ser excessiva, a opinião de um banqueiro caminha para irrelevância. Surpreendeu-o?
Existe uma percepção negativa sobre a profissão de banqueiro, reconheço-o. Talvez pelos nossos próprios erros e pela forma exagerada e incorrecta como muitos actuaram no passado e, por vezes, até com falta de princípios. E os banqueiros tinham uma ideia de si que era superior à realidade e falavam sobre temas que não deveriam ter abordado.
Ou seja: nós, jornalistas, promovemos os banqueiros e demos excesso de visibilidade às suas opiniões?
Talvez.