Liberais - Para que servem?
Pedro Santana Lopes entregou nesta semana no Tribunal Constitucional as assinaturas necessárias para formalizar um novo partido. A Aliança tem na sua carta de princípios o liberalismo. No entanto, outras forças políticas (recentes ou de outrora) reivindicam também esse ideário, com mais ou menos fervor. Serão as legislativas de 2019 palco de fragmentação à direita ou manter-se-ão as condições de alternância entre PS e PSD?
Andam agitadas as águas à direita. Pedro Santana Lopes, que conviveu mais de 40 anos com o epíteto de enfant terrible do PSD, avança com Aliança, um partido de cujos princípios consta o liberalismo. Há pouco mais de um ano, a Iniciativa Liberal anunciou o seu caminho, entretanto manchado por uma polémica. Sectores da direita mediática zurzem em Rui Rio e vislumbram na fragmentação partidária a edificação de uma "geringonça" à direita. No centro deste furação, com a resiliência que lhe é reconhecida, Rio afirma-se fiel às suas essências. Onde estão e para que servem os liberais?
“Não sou liberal nem socialista, sou social-democrata desde antes do 25 de Abril. Defendo a iniciativa privada, mas não rejeito a intervenção do Estado sempre que necessário”. Na festa de Querença, o líder do PSD optou por esta definição. Combinou assertividade e pragmatismo.
“Todos os partidos são liberais, à excepção do PCP e de parte do Bloco de Esquerda, o liberal põe o indivíduo no centro, como sujeito livre”, sustenta o deputado Miguel Morgado do PSD. “Fala-se muito do liberalismo como algo marginal, quando nos últimos 400 anos o liberalismo tem sido o grande vencedor do debate filosófico, depois da queda do Muro de Berlim [1989], o liberalismo é o grande vencedor”, enquadra. Em Portugal, é na revisão constitucional de 1982, que o parlamentar situa o início de uma prática liberal.
Liberalismo puro não existe
“O liberalismo puro não existe em lado nenhum”, destaca o eurodeputado socialista Francisco Assis. “Há liberais conservadores no CDS, outros liberais mais sociais no PSD e no PS, o liberalismo económico está consagrado na importância da economia de mercado”, relativiza.
“O liberalismo e o socialismo em abstracto não existem”, sentencia o historiador Rui Ramos. “Existem formulações do liberalismo muitas vezes protagonizadas por pessoas, pensam que o liberalismo económico compatível com várias concepções da sociedade é distintivo desta ou daquela corrente política”, pondera.
Não é o seu caso. “Parece-me mais importante o liberalismo político que remete para uma concepção de sociedade na qual os indivíduos são mais autónomos face ao Estado”, destaca. “Historicamente, em Portugal, o PSD e o CDS reivindicam esse ideário, que corresponde ao programa e governos da Aliança Democrática entre 1980 e 83.” Recorda, a propósito, a liberalização da comunicação social com a entrada de operadores privados na televisão e a chegada de privados à banca.
“Se PSD e CDS reclamassem um discurso puro liberal, como fazem as figuras do Observador, teriam um desastre eleitoral, do mesmo modo se o PS defendesse a estatização”, contrapõe Francisco Assis. “Há um ponto de equilíbrio, é difícil ver alguém a defender que o Estado desapareça da Saúde, como seria um desastre estatizar também o seria liberalizar”, exemplifica.
O poder do Estado
“O nosso liberalismo está consagrado em torno de duas coisas, o PS concilia liberdades política e económicas com a sua matriz social-democrata, mas a sociedade civil em Portugal é dependente do Estado, das misericórdias e IPSS [Instituições Particulares de Segurança Social] às fundações”, considera José Conde Rodrigues, presidente do Conselho Português do Movimento Europeu.
Para Conde Rodrigues, data de 1985, com Francisco Lucas Pires e o grupo de Ofir, o momento mais sólido do liberalismo contemporâneo. “Foi no espectro político português, o movimento mais consistentemente liberal, curiosamente dentro de um partido democrata-cristão”, observa.
“O CDS repudiou o liberalismo, apesar de Francisco Lucas Pires com quem estive no grupo de Ofir, o PSD apanha tudo, uma semana é liberal, noutra é social-democrata, Rui Rio canta agora a social-democracia, mas Passos Coelho cantava outra música para satisfazer o eleitorado conservador”, critica o professor José Adelino Maltez, membro a título individual do Partido Liberal Europeu. “O PS é o maior defensor da liberdade de costumes só que, sendo liberal, ao mesmo tempo defende os princípios da Internacional Socialista, a intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais”, refere.
O legado do salazarismo
Há o fenómeno e o contexto. “Os governos do PSD e do CDS nos últimos 20 anos enfrentaram situações de emergência que aumentaram o peso do Estado e tiveram de assegurar a governação”, ressalva Rui Ramos. “Entre 2011 e 2015, houve uma opção de equilíbrio orçamental por via dos impostos, houve que sujar as mãos, em muitas condições tem de ser feito o que se pode e não o que se devia”, justifica.
Há, também, um contexto histórico que limitou um partido liberal em Portugal. “O salazarismo não deixou um legado liberal, não aconteceu a associação entre o regime autoritário e uma elite tecnocrática liberal, o sistema partidário nasceu à esquerda o que fez com que os partidos de direita nasçam mais à esquerda que os seus eleitores, o PSD social-democrata e o CDS democrata cristão”, aponta o politólogo António Costa Pinto. “O único partido com uma componente liberal foi o PSD, até uma certa altura, entre 1976 e 79, Sá Carneiro teve o discurso de libertar a sociedade civil do Estado”, opina.
“Na verdade, o discurso liberal não tem capacidade de mobilização política e os portugueses não expressam valores liberais anti estatizantes”, remata. Em apoio da sua tese, Costa Pinto refere um estudo do Instituto de Ciências Sociais de Mannheim (Alemanha) e do Centro de Cidadania e Democracia de Lovaina (Bélgica). Entre 32 países, Portugal está em quarto posto nos que concordam com a intervenção do Estado para reduzir diferenças de rendimentos. Ao lado da Coreia, Turquia e Japão.
“Um partido que quer uma visão menos estatizante da sociedade quando a classe média precisa do Estado Social tem um discurso historicamente inapropriado para Portugal”, afirma Francisco Assis.
Partido que fragmenta a direita
“Os liberais estão na sociedade portuguesa em vários partidos, não vejo nisso um defeito, pois ser liberal é uma atitude, não uma tendência”, refere João Carlos Espada. “O diálogo entre esquerda e direita liberais é possível na defesa da liberdade, da democracia ocidental e da economia de mercado”, acentua.
Mas não é só esse o debate suscitado pelo anúncio da Iniciativa Liberal e a Aliança de Santana. “É importante haver mais um partido que reivindique os ideais do liberalismo, pois acham que PSD e CDS abandonaram esses ideais, há um mercado partidário que confirmará a adesão, não considero a priori que não faça sentido”, considera Rui Ramos.
“Tenho uma visão relativamente alargada do conceito liberal, creio que o puro e duro, a desconfiança económica na intervenção do Estado, não tem futuro”, prognostica Francisco Assis. “Santana Lopes não é um paradigma de liberal, é uma figura política que vai usando os conceitos consoante o entendimento de cada momento”, sentencia.
“Acho que Santana Lopes comete um erro ao fazer isto [a Aliança] fora do PSD, não vai conduzir ao surgimento de um espaço mas reforçar os aliados do PS”, critica Miguel Morgado. “É mais um partido pequeno que vai fragmentar a direita, dificultando a refundação da direita, torna a gestão do PS mais fácil e o PSD refém da ala que quer voltar ao projecto ASDI [Acção Social Democrata Independente]”, prossegue. “Não quero ser injusto, mas não espero uma coerência assinalável da Aliança, não me parece um projecto coerente de acordo com as necessidades de um espaço político que não é de esquerda, são coisas vagas, pouco articuláveis, não vejo nada de interessante”, conclui o deputado.
Político personalista
“Pedro Santana Lopes é um político muito personalista, não doutrinário, é uma atitude, vamos ver se há espaço para ele, na Europa tem havido uma alteração dos espectros partidários”, descreve Rui Ramos. “Sabemos quem é o líder, não sei que partido é”, resume. No entanto, vislumbra algo de novo. “A melhor maneira de mobilizar o eleitorado é desmultiplicar a oferta, o que aumenta a possibilidade dois partidos actuais não serem capazes de formar uma maioria”, considera.
“Podemos ir ver "geringonças" mais complicadas, pelo que passa a haver um prémio para a constituição de um partido num regime de muitos queijos limianos. Seria uma forma de modificar a vida política, está em dúvida que seja melhor, mas o cansaço com o que existe é tanto que as pessoas querem outras coisas, poderemos vir a ter saudades do regime dos últimos 40 anos”, resume o historiador. “A grande dúvida é se vai haver espaço para a alternativa como até hoje ocorreu, entre o PS e o PSD/CDS”, pondera José Conde Rodrigues, para quem, em Portugal, as ideias liberais sempre foram uma excepção.
“Nunca me defini como liberal. Em Portugal, ser liberal ou neoliberal passou a ser uma acusação para travar o debate cívico”, acusa Miguel Morgado. “O neoliberalismo é uma invenção da esquerda para impedir a discussão sobre o liberalismo em Portugal, o neoliberalismo é o conceito da geo finança sobre a geo democracia”, acentua José Adelino Maltez.
“Fazer partidos não é para todos”
“O que se questiona é se ainda se é liberal quando o Estado intervém para defender os mais fracos, os defensores do liberalismo económico depois de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, os neoliberais que, na verdade são ultraconservadores, dizem que não”, equaciona José Conde Rodrigues. “Consagrada a abertura de costumes, há o regresso a temas queridos do liberalismo, a defesa das liberdades básicas, de expressão, informação e associação”, prognostica.
Quanto à Iniciativa Liberal, Maltez evita as polémicas, à volta de um sítio originalmente desenhado para a campanha de António Costa. “Acho mau, dá a imagem que é mais um partido como os outros, o desentendimento é de gente que veio do PS e do PSD, que não sarou as diferenças destas duas famílias originais”, sintetiza.
“Santana Lopes não é liberal, é um político profissional que adaptará o seu discurso ao que os directores de marketing lhe disserem, Santana, afinal ocupa espaço contra Rui Rio”, considera Costa Pinto. Sobre a Iniciativa Liberal traça um futuro sem concessões: “Fazer partidos não é para todos.”