Por entre a malha de cerros e ribeiros que une as Aldeias do Xisto aninha-se meia centena de praias fluviais concessionadas, mais outros tantos braços de rio selvagem e deserto. Com margens relvadas, de areia ou de cimento; de envolvente urbana, rural ou embrenhada na natureza bravia. Não há duas iguais. E, sendo curtas as distâncias, nem precisa de se comprometer com a primeira escolha. Para lançar caminho, deixamos cinco sugestões.
Praia Fluvial do Mosteiro (Pedrógão Grande)
As cicatrizes estão lá, quando prestamos atenção aos detalhes da natureza. A sombra dos salgueiros e dos amieiros já não chega à outra margem nem abraça quase todo o relvado. Das oliveiras, apenas uma sobreviveu. Mas, para quem aqui chega de olhos alagados de negro e silêncio, a praia fluvial do Mosteiro é como um bálsamo, um refúgio, uma esperança. O curso de água acelerou a regeneração de árvores e de arbustos e as infra-estruturas danificadas foram reparadas ou substituídas. Apenas uma faixa de eucaliptos despidos grava na retina o que a memória não esquece.
Na água, no entanto, os ritmos retomam a descontracção das férias. O ambiente é de folia veraneante. Os miúdos fazem fila no escorrega, molham-se os friorentos às gargalhadas enquanto outros passeiam-se em cima de fatias de pizza e motos insufláveis. À ponte em meia-lua não pára de chegar gente de sacos e geleiras. A família Farinha Martins descansa numa sombra de relva, bem junto à piscina de seixos que um açude forma naquele recanto da ribeira de Pêra. São de Proença-a-Nova, conhecem as curvas que o tempo dobra por aqui. A conversa passa inevitavelmente pelo incêndio que devastou a região no ano passado mas depressa recua mais fundo na cronologia, ancorada nas recordações da meninice.
As praias fluviais são um conceito recente. Antes havia apenas rio e margens cobertas de terrenos agrícolas, recordam. Cláudia ainda se lembra de dar uns mergulhos quando ia “passear as cabrinhas pela ponte romana”, actualmente submersa pela barragem de Corgas. Mas Maria tinha “tanto trabalho” na rega do milho que, às vezes, “nem havia tempo de ir ao banho”. Hoje, os tempos são outros. Raquel e Francisco já não reconhecem as histórias de infância da mãe e da avó. Agora, a família passa as férias e os fins-de-semana em mergulhos. Quase sempre na praia fluvial da Aldeia Ruiva, mais perto de casa. Mas ao Mosteiro já vieram quatro ou cinco vezes este ano. “Aqui estou no estrangeiro”, ri-se Adelino. A viagem não demora mais de meia hora, mas o cenário é outro. “Tem-se mais contacto com a natureza, o cheiro da água é diferente, é bom”, enumera Cláudia.
Atrás do relvado, há um bar de apoio e o restaurante Fugas, instalado num antigo lagar recuperado. “Pelos registos que temos não funcionava há 30 anos”, conta Luís Dias, concessionário da praia. Natural de Lisboa mas “descendente de cá”, Luís vinha sempre com a família passar as férias de Verão à terra, uma pequena aldeia próxima de Pedrógão Pequeno. “Mas quando começámos a ter liberdade para vir sozinhos, chegávamos aqui e não tínhamos nada para fazer com os nossos amigos”, recorda. Foi por isso que criou a Trilhos do Zêzere, empresa de actividades turísticas e desportivas na região. Faz agora 20 anos. E foi aí que nasceu a ligação a Mosteiro, onde trouxe muitos turistas, cativado pela “quantidade de histórias” da aldeia. A concessão da praia surgiu há cinco anos.
Enquanto passeamos pelas ruas desertas, a cinco minutos da praia, recordamos uma das histórias contadas por Luís. Sobre como os habitantes de Mosteiro tinham uma escritura independente para a água e o acesso à levada era gerido “de uma forma tão ordeira e sem regras” pela população de moleiros. Não havia leis, mas horários a cumprir. E ainda hoje, “quando o dono vende o terreno, pode não vender a água”. Lá no topo, junto à antiga escola primária, transformada em colónia de férias de Verão e hostel de Inverno, está a nascer um “parque de árvores de fruto”. “Cada pessoa trouxe uma árvore, foi lá plantar e tornou-se padrinho dela. A ideia é ter de visitá-la duas vezes por ano nos próximos cinco anos”, conta Luís. O objectivo é alimentar a aldeia e doar o excedente à Misericórdia e às escolas. Mas, sobretudo, criar “uma cortina de protecção da aldeia em caso de incêndio” e deixar algo às gerações futuras. “Tenho a certeza que os meus netos vão poder comer frutos daquelas árvores. Foi isso que o meu bisavô fez [por mim].”
Praia Fluvial do Troviscal (Sertã)
Francisco e Ricardo andam para cima e para baixo em ritmo acelerado. Ponta dos pés sobre um dos pilares da ponte, mortal acrobático para a água, braçadas até às escadas, repetir. Uma e outra e outra vez. São irmãos, nadadores de competição e, tal como quase todos os que vamos encontrando, vivem noutras zonas do país mas as ligações familiares devolvem-nos todos os anos à Sertã. É a primeira vez que vêm até ao Troviscal este ano, a pedido da irmã. Preferem as praias da zona de Vila de Rei, confessam. “Fernandaires é melhor em termos de qualidade e da temperatura da água.” Mas também gostam de explorar a Foz da Sertã, onde “há um hotel abandonado”.
Junto ao acesso da praia, dois edifícios recordam a importância que os cursos de água tiveram outrora na agricultura da região. De um lado, um moinho de cereais, do outro, um antigo lagar em ruínas, ainda com grande parte do engenho utilizado na produção de azeite. “Deviam ser do mesmo dono”, presume Luís Dias, que nos guia por algumas das praias da região. “Naqueles tempos fazia-se uma gestão das actividades e das épocas para que se pudesse tirar rendimento o ano todo.” Resina, azeitona e cereais. Antigamente, as colinas que fecham o horizonte estariam cobertas de olival e os nateiros, lodos férteis junto ao rio, eram terras de milho e de hortas. Hoje a paisagem é dominada por eucaliptos – uns negros, outros a rebentar – e pinheiros esparsos. Nas margens, bancos de areia trazem ao tacto um bocadinho do litoral.
“Isto era uma represa. Não havia nadadores-salvadores nem bar. Só vinha quem conhecia, porque não havia roteiros, não havia nada”, recorda Valter, mergulhado à beira da parede do açude. A tarde está calma, são poucas as pessoas que escolheram o Troviscal nesta quinta-feira de Agosto. Mas ao fim-de-semana, garante, “o café está cheio”. “Há uma senhora que faz frango do churrasco a 8€. Vêm famílias inteiras.” Valter e a mulher, Sílvia, também voltam todos os anos. Pelo menos durante uma semana de Verão, as férias são sinónimo de “regresso às raízes”. “Queremos dar aos miúdos a ideia de que existe terra.”
Praia Fluvial da Barragem de Santa Luzia (Pampilhosa da Serra)
Abeiramo-nos primeiro do miradouro, que a paisagem impressiona. O paredão da barragem está mesmo aos nossos pés, encaixada numa crista quartzítica que contrasta com as colinas mansas que limitam a albufeira. Uma família de andorinhas esvoaça à nossa volta. Lá ao fundo, meio escondida atrás dos pinheiros, já se avista a praia fluvial, um conceito aqui definido de forma mais lata. Já não estamos num corredor estreito de rio, antes numa minúscula faixa da imensa barragem, alimentada pelas águas das ribeiras do Vidual e de Unhais.
Lá em baixo, a praia é, na verdade, uma completa infra-estrutura de lazer, com parque de merendas, circuito de manutenção, vários trilhos para passeios pedestres, canoas e outras actividades náuticas. E, claro, uma zona de banhos protagonizada por uma piscina flutuante. É lá que encontramos Sílvia Gonçalves, o marido e os dois filhos – um casal de gémeos, com cinco anos, que esbraceja no rectângulo para as crianças, com braçadeiras, bóia e muitos mergulhos.
Na aldeia de Meãs, de onde é a família de Sílvia, existe apenas uma piscina normal, municipal. Aqui, a qualidade da água é melhor e a diversão também, compara. “Também gostamos de ir à praia de Janeiro de Baixo porque tem areia.” E tu, Gabriel, do que mais gostas? “Da piscina”, grita antes de mais um salto para água. E em Janeiro de Baixo? “De fazer castelos.” E novo mergulho. “Atrevo-me a dizer que gostam tanto ou mais disto do que da praia de mar”, reage Sílvia. Por agora, os dias dividem-se entre praia de manhã e vida de aldeia pela tarde. Com visitas a familiares e passeios pela natureza. Daqui a nada, o quotidiano volta a escrever-se em Carnaxide.
Praia Fluvial de Aldeia Ruiva (Proença-a-Nova)
É a praia mais urbana que visitámos. Ou talvez rural seja o termo mais correcto. Uma das margens divide-se entre um relvado e uma zona de areia. Mas na outra, vedada a banhistas, sobem terrenos agrícolas, oliveiras e habitações. A ribeira da Isna ganha aqui limites de cimento, como se fosse uma piscina. O cenário é mais aberto, mais humanizado. O que perde em natureza, ganha em acessibilidade. O parque de estacionamento é mesmo à entrada, tem um restaurante e bar com ampla esplanada e um parque de campismo logo ao lado.
No parque de merendas, não há uma mesa livre. A maioria é ocupada por uma excursão que acaba de chegar. São de Dominguizo, no concelho da Covilhã. E esta é a última paragem antes de regressarem à aldeia. Todos os anos, o trajecto organizado pela paróquia é mais ou menos o mesmo: primeiro dia entre a praia do Baleal, Peniche e Nazaré, segundo dia em Fátima, com lanche na praia de Aldeia Ruiva antes de seguirem viagem.
Da mesa, não se vê o tampo. Há caixas de rissóis, bolos de bacalhau, pão, embalagens de queijo, presunto, batatas fritas, sumos e muita pinga. Tinto, branco e aguardente, tudo caseiro, feito por quem já nos ofereceu um lugar à mesa. É só escolher. Maria Ludovina distrai-se com a conversa e por pouco a garrafa de água não lhe arde na garganta. “Já viram o que ia beber?”, ri-se. “Esta é das que queima tudo, foi o meu marido que fez.”
Todos os anos, a mesma excursão, a mesma paragem final. “É um sítio aprazível e com espaço”, argumenta José Ferreira. Do resto da praia, já pouco vimos. A cavaqueira é amena e não nos deixam ir embora sem provar mais uma fatia de bolo, um rolo de carne, um copo de vinho. Sem rede no telemóvel, já ninguém sabe de nós. Mas há que seguir para o último mergulho de rio.
Praia Fluvial do Malhadal (Proença-a-Nova)
A quinze minutos de distância da praia de Aldeia Ruiva, a ribeira que nos banha ainda é a mesma, mas o cenário não podia ser mais diferente. Aqui a natureza é abundante. Fecha o horizonte de verde para onde quer que olhemos. Aos pés do bar-restaurante, encavalitado na encosta, as toalhas vão colorindo o chão de ladrilhos junto à margem. Mas a maioria das pessoas está dentro de água. Ora num dos rectângulos da piscina flutuante, ora nos escorregas insufláveis do primeiro parque aquático instalado na região, ora em braçadas preguiçosas ao longo da ribeira.
Elvira, Samuel, Pedro, Madalena e Mariana dão as últimas remadas de canoa. É um passeio que a família não dispensa sempre que vem à praia do Malhadal. “Vamos até lá ao fundo e, como a altura da água lá é menor, a água é mais quente. Então damos um mergulho sem mais ninguém, só nós e a natureza”, conta Samuel Dimas. O início da represa fica para lá da curva do rio, a cerca de um quilómetro do fluviário onde deixam agora as embarcações. “Chamamos-lhe o mergulho da ribeira da hortelã porque existe hortelã selvagem nas margens e deita aquele cheirinho muito agradável”, acrescenta. “É um mergulho aromático.”
Tentamos lá ir a pé, por um caminho de terra na outra margem, mas as silvas e o estado do terreno impedem-nos de chegar até à zona dos banhos perfumados. Desistimos e mergulhamos. Nadamos sem pressa de volta às escadas de acesso. É final de tarde, o sol ameaça esconder-se para lá da folhagem mais alta, a água mantém-se amena e o chilrear da natureza interrompe-se apenas para deixar passar alguma conversa ou risada distante.
“Aqui é mais calmo. Não há Internet, vêem-se as estrelas à noite porque não há poluição, não há muito barulho, as pessoas conhecem-se todas”, compara Madalena o quotidiano de Almada e as férias em Proença-a-Nova, terra da avó materna. Cá, os dias são passados dentro de água. “É mais quente e não tem ondas”, diz. “É como se fosse uma piscina, só que bonita.”