Kate reúne histórias e retratos de sobreviventes de violência sexual
A fotógrafa norte-americana Kate Ryan recolheu testemunhos de vítimas de violência sexual. Signed, X compila histórias e retratos de 27 sobreviventes. “Acontece algo especial quando contas o teu segredo mais íntimo e profundo a toda a gente, sentes que não há mais nada a esconder”, diz, em entrevista ao P3.
Durante mais de seis meses, Melissa procurou o rosto do seu agressor entre a multidão. O sentido permanente de insegurança fê-la mudar de cidade. “Em Nova Iorque pelo menos sei que, à partida, não há grande probabilidade de voltar a vê-lo.” Tinha 25 anos quando tudo aconteceu. Nessa noite, em Washington D.C., Melissa saiu com uma amiga. “O nosso objectivo era sair, beber e conhecer rapazes.” E, de pronto, esgrime uma justificação para o que viria a suceder-se. “Nunca fui com intenção de voltar para casa com alguém. Eu procurava, na altura, conhecer alguém com quem pudesse criar um relacionamento.” As palavras de Melissa foram partilhadas com Kate Ryan, fotógrafa norte-americana que se dedica a recolher testemunhos de vítimas de violência sexual. Signed, X compila histórias de 27 sobreviventes.
Mesmo antes de sair de casa, recorda, Melissa e a amiga beberam — “muito”. Dirigiram-se ao bar onde acabariam por conhecer o agressor. “Até hoje, sou incapaz de pronunciar o nome dele", diz, por quem, confessa, se sentiu atraída. Era agente dos serviços secretos, contou-lhe. Mostrou-lhe um distintivo. Melissa ficou impressionada. Sem a amiga, foram a outro bar e, à saída do local, dirigiram-se para o parque de estacionamento da Casa Branca. “Só pessoas com autorização especial podem estacionar lá. Ele transmitia-me segurança.” Embora não o tenham discutido, dirigiram-se até casa dele.
No carro, Melissa recorda ter dito: “Não vamos ter sexo. Sabes isso, não sabes?” Quando saiu da casa de banho e se dirigiu para o quarto do agressor, ele já tinha removido parte das suas roupas. “Começámos a envolver-nos e lembro-me que veio para cima de mim. Eu tinha uma tanga; lembro-me de ele ma ter tirado. Lembro-me de dizer que não, mas continuou a beijar-me e a certa altura pensei ‘Seja o que for’. Ele penetrou-me com os dedos e eu disse-lhe ‘Não, não, não, não, não’. Continuou a beijar-me e eu parei de mexer-me." A recordação continua. "Comecei a senti-lo penetrar-me e disse ‘Não, não, não, não, não, não, não’. Lembro-me de me sentir incapaz de me mexer. Ele continuou. Tenho a certeza de que não durou mais de dois segundos, mas pareceu-me uma eternidade. Então ele disse ‘Ok, ok, podemos só abraçar-nos’. Saiu de dentro de mim e abraçou-me. Fiquei ali deitada até sentir que ele adormeceu. Tornei a colocar o meu vestido, a minha roupa interior, agarrei nos meus sapatos, que estavam junto à porta, e nem os calcei. Saí do apartamento, chamei um Uber e fui para casa.”
No dia seguinte, ele ligou-lhe e pediu desculpa. “Nunca referiu a palavra violação. Disse algo do tipo ‘Desculpa se fomos mais longe do que desejavas’." A princípio, Melissa não considerou ter sido vítima de violação. Quis justificar para si aquele invulgar one night stand e transformar a ligação num relacionamento amoroso. Tornou a sair com ele duas ou três vezes naquela semana. “Não sei como fui capaz, olhando para trás. Parecia que estava fora do meu corpo.” Acabou por contar o episódio a uma amiga. “Ela disse-me ‘Isso não é normal, isso não está correcto’.” Para ter a certeza, Melissa ligou para a Rede Nacional para a Violação, Abuso e Incesto (RAINN). “Nunca vou esquecer esse momento. Lembro-me de ter perguntado ‘Foi violação?’ Precisava de uma confirmação. A pessoa do outro lado respondeu, oficialmente, ‘Sim, foi violação'.”
A tomada de consciência alterou o rumo da vida de Melissa. O peso da palavra violação tornou oficial o facto de ter sido vítima de um crime, de um abuso. Com a palavra, surgiu a preocupação de realizar exames médicos, a necessidade de apresentar queixa às autoridades. Com a palavra, veio o estigma que lhe é associado, a divisão no círculo social e a instabilidade emocional. Melissa foi oficialmente diagnosticada com Síndrome de Stress Pós-Traumático. Tem perdas de memória, alterações de humor extremas, insónia. Taquicardia. Toma Xanax, Ambien. “Os últimos seis meses da minha vida têm sido um inferno", confessa.
Signed, X, os efeitos da violência sexual a longo prazo
São, até à data, 27 os testemunhos de vítimas de abusos sexuais recolhidos no âmbito do Signed, X, que, recentemente, mereceu destaque no The New York Times. O projecto encontra raízes na história pessoal da autora, também ela vítima de violência sexual. Com o jornal norte-americano, Kate Ryan partilhou despudoradamente a sua experiência e adjectivou de “aterradora” a exposição perante o grande público. “Aquilo que me pediram não foi, de nenhuma forma, diferente daquilo que eu pedi às mais de 20 pessoas que participaram no meu projecto”, explicou ao P3, em entrevista por Skype. “Foi difícil, mas assim que coloquei em palavra escrita o que me tinha acontecido, senti-me mais leve. Senti que se levantava um peso dos meus ombros." A fotógrafa não tem dúvidas: "Acontece algo especial quando contas o teu segredo mais íntimo e profundo a toda a gente, sentes que não há mais nada a esconder. Com isso, adquires a sensação de que a tua experiência se normaliza, se torna apenas humana.” Na óptica de Kate, é essa sensação de libertação, que é também catártica, que leva as pessoas a partilhar as suas experiências. “Vivemos um período muito especial nos Estados Unidos. Sente-se, a nível colectivo, uma vontade de levantar o véu que cobre este tipo de assunto. O movimento #metoo — feio e doloroso a tantos níveis — é sintomático dessa urgência.”
Signed, X assenta em duas premissas: a da partilha, na primeira pessoa, de experiências de violência sexual, sem filtros, e a ideia de que cada sobrevivente tem uma reacção única e pessoal ao trauma que lhe foi infligido — e que não deve, em qualquer circunstância, ser colocada sob julgamento. Existem apenas dois testemunhos masculinos no site do projecto. Este desequilíbrio está longe de ser propositado, mas tão-pouco é fruto do acaso. “Para os homens, o estigma [associado ao papel de vítima de violência sexual] é muito mais forte. Tentei contactar organizações de defesa de direitos dos homens, neste campo, e tentei ter mais homens envolvidos no processo, mas não foi fácil. Tenho mais entrevistas com homens em agenda e, num futuro próximo, terei mais quatro testemunhos masculinos.”
Quando a vítima é um homem
Brian frequentou um colégio católico só para rapazes em Long Island, Nova Iorque. Aos 16 anos, o contacto com um dos moderadores dos clubes de rádio e televisão ultrapassou os limites do que seria esperado de uma relação tutor-aluno. “Ele começou a aliciar-me, a favorecer-me, a tomar o meu partido diante de outros rapazes, a dar-me atenção. Sempre fui um ano mais novo do que as pessoas da minha turma e talvez tenha sido esse o motivo pelo qual me tornei num alvo.” Um dia, conta a Kate Ryan, o tutor apresentou-lhe "uma espécie de desafio". "Manipulou o rumo do jogo e o resultado foi ele ter de me tocar de forma inapropriada. Assim aconteceu. Congelei. Não soube o que fazer. Ele parou rapidamente e eu pensei que ficasse por aí.” Mas não ficou.
O comportamento do tutor repetiu-se ao longo de todo o ano lectivo. “Pegava em algo que eu tivesse feito com ele antes, e de que me envergonhava, e fazia chantagem emocional de forma a obrigar-me a fazer a coisa seguinte, e depois a seguinte. Ameaçava expor-me perante outros alunos, perante a minha família, envergonhar-me, envergonhar-me.” A certa altura, o agressor começou a tirar fotografias em formato polaroid dos encontros e a chantagem tornou-se material. “Não sabia, genuinamente, o que fazer.” Brian terminou o secundário, mas os 20 anos que se seguiram foram “uma luta constante”.
“Tentei fazer de tudo", admite. Juntou-se à Força Aérea, abandonou o posto "sem permissão por três vezes". E, passados nove meses, foi expulso. "Não conseguia segurar um emprego. Entrei na faculdade e desisti poucos meses depois. Nunca mais voltei.” Durante esse período, nunca pensou no abuso sexual de que foi vítima. “Não compreendia o que estava errado comigo e procurava continuamente algo que me pudesse endireitar, corrigir. Acabei por abusar de substâncias químicas, por desenvolver uma adição em compras e entrar, financeiramente, numa espiral descendente. Arranjava estratégias de fuga, distracções. No final, convenci-me apenas de que era mau e que algo estava errado comigo.” Anos mais tarde, Brian começou a frequentar sessões de psicoterapia. Foi nessa altura que se confrontou com o abuso. Progressivamente, foi ficando mais confortável com a ideia de enfrentar o seu abusador. Mais tarde, procurou-o e descobriu que tinha morrido em 1991.
“Quando se tapam feridas durante muitos anos, o mais certo é que, mais cedo ou mais tarde, elas voltem a abrir”, explicou a fotógrafa americana. “Isso acontece com muitos sobreviventes. Aconteceu comigo. Não falei do meu abuso durante muito tempo, mantive-o em segredo, e houve um ano em que me senti muito fraca. A minha vida tornou-se caótica. Pensei, genuinamente, que pudesse seguir em frente sem lidar com o assunto. Nos Estados Unidos existe muito a cultura de seguir em frente, sem lidar com o problema, esperando que desapareça por si. Muitas vítimas aprendem da forma mais difícil que não é assim que funciona.”
Quando o abusador é uma mulher
O caso de Essence é atípico no quadro de testemunhos recolhidos por Kate. O seu abusador era uma mulher. “A minha tia costumava ir buscar-me ao infantário, tomava conta de mim. Eu não entendia o que me acontecia. Pedia-me que lhe fizesse coisas e ela fazia coisas comigo.” Em criança, Essence estava, muitas vezes, entregue a si própria, sem supervisão de um adulto. O seu desenvolvimento sexual precoce tornou-a vulnerável a mais abusos, que vieram da parte de adolescentes vizinhos e, mais tarde, também de um tio. No primeiro ano de faculdade, foi vítima de violação.
O abuso perpetrado por mulheres pode ser mais difícil de detectar — “a menos que seja gritante”, sublinha a fotógrafa, apontando esse factor como basilar no desequilíbrio no número de queixas. “Todos somos ensinados, desde pequenos, a confiar mais em mulheres, sobretudo no que concerne ao contacto com o corpo ou demonstrações de afecto. É possível que ocorram abusos por parte de mulheres e que nunca sejam interpretados como tal.”
Para a Kate Ryan, a natureza da relação que existe entre vítima e perpetrador é fulcral na reacção ao abuso. “Quando existe uma diferença etária considerável entre as duas partes, acontece que a vítima, geralmente mais nova, não é levada a sério. Neste tipo de situação não existe equilíbrio de poder, o que convida à inércia.” Um vínculo familiar ou hierárquico pode condicionar a reacção da vítima. “Passa muitas vezes pela cabeça [da vítima] que, no dia seguinte, terá de encarar essa pessoa, que é muitas vezes o tio, o patrão, o pai, o marido. Isso torna a sua reacção mais moderada. Há pessoas, até, que preferem manter um laço de amizade com o agressor, acreditanto que assim será mais fácil. É um peso enorme odiar alguém com tanto afinco. É mais fácil para a vítima mentir a si própria e a quem a rodeia do que sentir esse peso horrível no peito a toda a hora.”
“Se não fizer o que ele me diz, vai matar-me”
Depois de um casamento de 33 anos, Jane separou-se do marido. “Estava a passar por um período difícil, sentia-me muito sozinha. Conheci um homem online. Acho que era 11 ou 12 anos mais novo do que eu.” Tiveram o primeiro contacto em Janeiro de 2003 e a relação virtual durou vários meses. “Finalmente, ele disse-me que gostaria muito de me conhecer.” Encontraram-se num bar irlandês. Tomaram uma cerveja e nada aconteceu. Ao longo dos meses seguintes, encontraram-se duas vezes; da segunda vez, tiveram relações sexuais.
“Não ouvi falar dele até Novembro, altura em que me convidou para beber umas cervejas. Eu sabia que ia ter sexo com ele. Veio até minha casa por volta das 21 horas. Falámos durante duas horas. Fui à casa de banho e quando saí ele esperava-me no corredor. Despi-me e, assim que chegámos à cama, ele agarrou-me, colocou as mãos à volta do meu pescoço e violou-me brutalmente durante três horas. Estrangulou-me repetidamente, enquanto me chamava nomes. Dizia coisas horríveis. Eu chorava, gritava, suplicava-lhe que parasse. Tentei travá-lo durante quase uma hora. Depois pensei ‘Se eu não fizer o que ele me diz, vai matar-me’.” As lesões decorrentes deste ataque foram profundas, quer do ponto de vista físico, quer psicológico. Jane recebeu assistência médica. “Senti-me tão envergonhada. Conheci-o através da Internet, o que na altura era tabu.” As provas deixadas pelo perpetrador no local tornaram-no um alvo fácil para as autoridades. Foi condenado, em 2006, a 50 anos de pena de prisão, com 25 efectivos.
“Os homens têm medo que as mulheres se riam deles; as mulheres têm medo que os homens as matem”, cita Kate Ryan, sem especificar o autor da expressão, uma das bandeiras do movimento #metoo. “Existe um instinto animal que diz às mulheres que devem tentar não agravar a situação. Temem ser vítimas de um episódio ainda mais violento.”
“Em troca, ele dava-me um donut“
Jenn tinha oito anos quando os abusos começaram e 14 quando terminaram. “Eu tinha sete anos quando ele [o padrasto] se mudou para nossa casa. Via-o como uma espécie de figura paternal carinhosa. Era agradável tê-lo por perto.” O pai biológico de Jenn era muito ausente e essa substituição supriu uma carência emocional real. “Ele comprava-nos coisas, passava tempo connosco. Um dia apanhei-o a ver um filme pornográfico. Eu não sabia o que era pornografia e ele mostrou-me. Depois disso, começou a molestar-me. Começou por tocar-me. Eu não sabia que isso era algo mau. Pediu-me que lhe fizesse sexo oral, que em troca me dava um donut. Ele usava a comida como moeda de troca. Dava-me pornografia e eu via. Fazia-me sexo oral. Eu retribuía.”
O padrasto de Jen alterou a rotina da família de forma a isolar a menina. Mudaram-se para uma casa maior e Jenn passou, finalmente, a ter o seu próprio quarto. “Ele não me deixava conviver com colegas de escola. O meu irmão era forçado a frequentar aulas de xadrez ou a ir para a biblioteca a seguir às aulas. A minha mãe estava a trabalhar. Ele só trabalhava à noite e usava todos os momentos de ausência da família para abusar de mim.” Quando Jenn fez 12 anos, a situação agravou-se. “Eu fui violada e perdi a virgindade enquanto a minha mãe tratava da roupa e o meu irmão a acompanhava.” As violações passaram a ser diárias. “Mais para o final, aconteciam diversas vezes por dia.” Para tirar as violações do pensamento, Jenn gostava de pintar e de brincar com Barbies. “Ajudava-me a dissociar.”
A mãe de Jenn vivia “em estado de negação”. “Acho que, em parte, ela via os sinais de alarme, mas não era capaz de admitir, perante si própria, o que estava a acontecer. Era demasiado traumatizante admitir que a pessoa que ela amava era tão abusiva. Na verdade, ela pensava ‘Se isto estiver mesmo a acontecer, então eu sou parte disto’. Sei que, já perto do fim [do relacionamento deles], ele lhe batia.”
“Deixei de ir à escola. Comecei a consumir drogas. Convivia com as pessoas erradas. Comecei a cortar-me. Tornei-me morbidamente obesa. Com 14 anos, pesava 136 quilos. Namorei com um proxeneta que quase me explorou. Sinto-me grata por não ter sido morta quando manifestava comportamento sexual exuberante.”
O padrasto de Jenn cumpriu dois anos de pena suspensa por se ter provado, em tribunal, que colocou a vida de menores em risco. Com a ajuda do ioga e da meditação, Jenn conseguiu encontrar um caminho para a reabilitação. Tirou dois mestrados, em Acção Social e Gestão e Liderança de Organizações Não-Governamentais. Fundou a sua própria ONG, que tem como missão “criar uma rede de apoio que promova o uso do ioga, da meditação e das artes para o apoio a sobreviventes de experiência traumáticas”. “É para isso que vivo, actualmente. É isso que sinto que vim fazer ao mundo. Hoje sinto-me uma pessoa completa. Antes sentia sempre um vazio horrível, mas agora sinto-me uma pessoa completa. E, por isso, sou.”
Kate Ryan criou Signed, X em Novembro de 2017, mas já aprendeu, com ele, uma valiosa lição. “Ouvi pessoas dizerem coisas que eu pensei serem só minhas, decorrentes da minha experiência pessoal, do meu abuso em particular. Percebi, através das entrevistas que conduzi, que, por vezes — e não com muita distância física ou temporal —, alguém estava a ter um pensamento semelhante ao meu num momento em que eu me sentia totalmente sozinha. Percebi que esses pensamentos eram parte do processo de assimilação do trauma, que eram naturais. Aprendi também que partilhar a minha história com as pessoas que entrevisto as ajuda a confiarem em mim, a falarem de igual para igual, sem barreiras." Kate remata: "A vulnerabilidade tem duas faces e, como em tudo, é preciso dar para receber.”