Sociais-democratas batem de frente contra Sá Carneiro

As divergências ideológicas e estratégicas fazem parte do ADN do PSD, tanto que ao fim de um ano de vida, o partido viveu a sua primeira cisão, protagonizada por Sá Borges e Mota Pinto.

Foto

A 9 de Dezembro de 1975, em plena actividade da Assembleia Constituinte, 21 dos 81 deputados que constituíam o grupo parlamentar do PPD abandonam o partido e passam a independentes. Entre eles, está o líder parlamentar, Mota Pinto, o ex-secretário-geral, Emídio Guerreiro, e personalidades proeminentes como José Augusto Seabra, Artur Santos Silva (pai), Miguel Veiga, Manuel Costa Andrade, Serra de Oliveira, Seiça Neves, Olívio França, José Manuel Gomes de Almeida. No mesmo momento, Sá Borges, Carlos Macedo, Graça Moura e Artur Santos Silva (filho) deixam o VI Governo Provisório. Do partido saem figuras como Alexandre Bettencourt, Júlio Castro Caldas, Fernando Albuquerque, Leonor Beleza.

É o consumar da primeira cisão no PSD, que arrasta para fora do partido parte substancial da ala social-democrata, até aí maioritária na direcção, e que meses depois fundará o Movimento Social-Democrata. Uma ruptura que se anunciava desde a fundação do partido e que se formalizará no II Congresso, no Teatro Avenida em Aveiro, entre 6 e 7 de Dezembro de 1975?.

Tentação presidencialista

O embate entre Sá Carneiro e a ala social-democrata na direcção nasceu logo no I Governo Provisório, em que o líder do PPD era ministro sem pasta e adjunto do primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos. A identificação e a confiança política entre ambos e a concordância do então Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola, levou ao que ficou para a história como o “Golpe Palma Carlos”, que termina com a queda do governo.

Numa tentativa de conseguir o aumento dos poderes e do poder do primeiro-ministro, desejado por Palma Carlos, Sá Carneiro propõe um plano de instituição do regime democrático diferente do previsto pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). Segundo essa proposta assumida por Palma Carlos, o governo ficaria responsável por fazer um projecto de Constituição, que seria submetida a referendo. Em simultâneo, seria realizada a eleição do Presidente da República e só depois a do Parlamento. O regime ganharia assim um perfil presidencialista que agradava a Spínola.

Logo então, a direcção do PPD se manifestou contra em comunicado e a reacção de Sá Carneiro foi pôr o cargo de secretário-geral provisório à disposição. A linha de ruptura torna-se explícita. De um lado, Sá Carneiro, que não admitia que o PPD transigisse com o PCP e com o MFA. Do outro lado, Sá Borges, com ligações aos militares, defensor de transigência táctica com o PCP e que tinha uma imensa influência na direcção do partido que vem a abandonar no Congresso de Aveiro, liderando depois o MSD e integrando mais tarde a ASDI em 1979. A tensão entre as duas tendências vai-se adensando em momentos como o 28 de Setembro.

E se, no I Congresso, realizado no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, a 23 e 24 de Novembro de 1974, o confronto foi controlado, permitindo a eleição de uma direcção em que ambas as tendências estavam representadas, embora Sá Borges tivesse a maioria, a ruptura apenas ficou adiada. Acresce que, nesse congresso, Sá Carneiro estava já doente e sofria de fortes cólicas intestinais. Em Fevereiro de 1975, será pela primeira vez operado no Porto a uma oclusão total do intestino, seguindo em Abril para Londres, onde foi operado mais duas vezes, só recuperando e voltando definitivamente a Portugal em Setembro desse ano.

Sá Carneiro assiste assim à distância à radicalização do regime político em Portugal, durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), a partir do 11 de Março, e desespera com a estratégia política de convivência com o poder militar e revolucionário que o PPD adopta para sobreviver política e institucionalmente. É essa estratégia, que passa pela assinatura do I Pacto MFA-Partidos a 11 de Abril, que permite ao PPD manter Magalhães Mota no Conselho de Ministros até ao IV Governo Provisório.

Vindo a Portugal para votar, a 25 de Abril, na eleição dos deputados à Assembleia Constituinte, Sá Carneiro regressa a Lisboa em Maio para participar num conselho nacional realizado a seu pedido e onde é substituído na liderança por Emídio Guerreiro, sendo eleito secretário-geral adjunto Marcelo Rebelo de Sousa. E é à distância que vê a tomada de posse do VI Governo Provisório — que o PPD integra — e a publicação do Documento dos Nove.

Em Espanha, Sá Carneiro prepara o seu regresso, dá entrevistas em que é duro com os militares e com o domínio do PCP, mas assume uma aproximação táctica ao Grupo dos Nove. Chegado a Lisboa a 23 de Setembro, no dia seguinte dá uma conferência de imprensa no Hotel Roma em que vinca as suas posições críticas para com a direcção do PPD, as quais leva ao conselho nacional de 27 e 28 de Setembro, na Estalagem da Via Norte, no Porto.

É o primeiro momento de confronto explícito. Sá Borges, Emídio Guerreiro e outros dirigentes multiplicam-se na defesa da estratégia de alianças com o PS e o PCP, e criticam o comportamento de Sá Carneiro. Em silêncio e tomando notas, o líder fundador só falará às duas da manhã. Fá-lo de improviso até às seis da manhã, bebendo quatro litros de água do Luso, que Conceição Monteiro lhe vai dando em garrafas de meio litro, segundo Maria João Avillez (Solidão e Poder). A sua intervenção é considerada ainda hoje como o melhor discurso da sua vida. Sai da Via Norte de novo secretário-geral, depois de uma votação em urna, a seu pedido.

À frente do partido de novo, é já Sá Carneiro que convoca a manifestação de apoio ao primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo após o Cerco da Assembleia, a 12 de Novembro, e é ele que protagoniza a pressão para afastar a esquerda militar, após o 25 de Novembro. Fá-lo com uma radicalidade anti-MFA e anti-Conselho da Revolução que agrava o confronto interno com a ala social-democrata e que explode no II Congresso (extraordinário), que se realiza no Teatro Avenida, em Aveiro, a 6 e 7 de Dezembro, para sufragar o seu regresso à liderança, e onde entra com uma aliança interna com a JSD, liderada por António Rebelo de Sousa.

Golpe de teatro

Em vésperas do congresso, circula em São Bento o documento Plataforma Social-Democrata para o Socialismo, depois divulgado nos jornais, da autoria de Mota Pinto, Augusto Seabra, Graça Moura e José Serra de Oliveira, segundo João Pedro George (Mota Pinto — Biografia). O texto é apoiado por cerca de meio grupo parlamentar, nomeadamente, Emídio Guerreiro, Sá Borges, Olívio França, Miguel Veiga, José Manuel Gomes de Almeida, José Lopes, Artur Santos Silva (pai), Seiça Neves, Marcelo Rebelo de Sousa, Joaquim Coelho dos Santos, Antídio Costa, Orlandino Varejão, Melo Biscaia. É aqui que surge pela primeira vez a expressão “reformas estruturais”, expressão que Mota Pinto introduzirá no léxico político português.

A contestação da ala social-democrata a Sá Carneiro chega esvaziada ao congresso e o documento não é sequer discutido. Antes do conclave, Sá Carneiro tem uma reunião no Porto com Vítor Crespo, membro do Grupo dos Nove e do Conselho da Revolução, que lhe pede para ser moderado e aceitar a continuação do PCP no governo, para que a radicalização não conduzisse à guerra civil. Em troca garante-lhe a revisão do Pacto MFA-Partidos.

Quando faz o discurso de abertura em Aveiro, Sá Carneiro recua nas exigências, explica as condições em que aceita a continuação do PCP no governo e defende a revisão do Pacto MFA-Partidos. O confronto entre as alas passa então para o debate sobre os estatutos. Mota Pinto era autor de uma proposta de que todos os órgãos de direcção fossem colegiais e eleitos proporcionalmente. Sá Carneiro defendia o sistema maioritário para o secretariado (que substituía a comissão política) e para a comissão permanente, órgão fiscalizador do secretariado saído do conselho nacional, o qual seria eleito maioritariamente.

As críticas a Sá Carneiro são feitas por um largo leque de dirigentes que o acusam de defender uma política cega de anticomunismo e de caça às bruxas. Sá Borges deixa a sala assim que acaba de discursar. Perante o crescendo de críticas e percebendo a dimensão da oposição, de madrugada Sá Carneiro sobe ao palco e anuncia que se a sua proposta não fosse aprovada não aceitaria ser secretário-geral. O tumulto das bases estabelece-se perante a incapacidade de Barbosa de Melo, presidente do congresso, em controlar os acontecimentos. No Teatro Avenida, ecoam palavras de ordem de apoio ao líder-fundador: “Unidade, unidade”, “Sá Carneiro, Sá Carneiro”, “Só queremos Sá Carneiro”.

Depois de puxar pelo apoio das bases, no que foi classificado como um golpe de teatro para manter o poder, Sá Carneiro volta atrás e decide continuar na liderança. Quem rompe é a ala social-democrata. Mota Pinto retira a sua proposta e um grupo de 40 dirigentes abandonam os trabalhos. No fim, é aprovada uma proposta de estatutos, em substituição das duas retiradas, que replica a proposta de Sá Carneiro.

Parte dos dissidentes da Cisão de Aveiro criam, em 8 de Fevereiro de 1976, o Movimento Social-Democrata, liderado por Sá Borges. Mas há figuras que ficam de fora, como é o caso de Mota Pinto. Para mostrar que o PPD é um partido plural, nasce o Ceresd, grupo de reflexão criado pelos críticos de Sá Carneiro, mas que não tinham rompido com o partido. Liderados por Ângelo Correia, Furtado Fernandes e Carlos Botelho Moniz, integra figuras como Marcelo Rebelo de Sousa e José Alfaia e nasce em torno do documento Militantes do PSD apresentam condições, como explica Vitor Matos (Marcelo Rebelo de Sousa). Ficarão conhecidos como os condicionais, por oposição aos apoiantes incondicionais do líder-fundador. É este grupo que lança então os encontros de Seteais, em Sintra, para debate político. E é dos condicionais que sairá as Opções Inadiáveis.

Líder aparentemente incontestado, Sá Carneiro recusa-se a ser ele a assinar, a 26 Fevereiro 1976, o II Pacto MFA-Partidos. Pelo PPD, assinará o ministro Magalhães Mota. Na Assembleia Constituinte, a Constituição continua a ser preparada. De um lado 60 deputados do PPD, numa bancada liderada por Barbosa de Melo. Do outro, 21 deputados independentes onde se destaca Mota Pinto. Quando, a 2 de Abril de 1976, a Constituição é votada, Sá Carneiro falta à sessão. Considerando a Lei Fundamental demasiado à esquerda e marxista, tentara fazer aprovar a abstenção como posição do partido numa reunião, a 31 de Março, da comissão política com os deputados que tinham contribuído para a sua elaboração, em particular o novo líder parlamentar, Barbosa de Melo. Perante as intervenções, nem sequer chegou a falar e passou a Barbosa de Melo um bilhete em que explicava que saía da sala porque estava com enxaquecas.

Sugerir correcção
Comentar