A importância da liberdade
Este Corbyn considera que a causa das alterações climáticas não tem que ver com a produção de CO2 resultante da actividade humana, antes deriva de uma alteração da actividade solar.
Afinal há outro Corbyn. Chama-se Piers, é formado em Física, dedica-se à meteorologia e é irmão do líder do Partido Trabalhista britânico. Reclama-se seguidor do pensamento marxista, envolveu-se ao longo da sua vida em múltiplos movimentos de contestação da ordem capitalista, chegou mesmo a ser detido por acções insurreccionais e vem por estes dias ao Porto participar numa iniciativa de âmbito universitário. O que o traz ao Porto não é qualquer assunto do foro político-social; não é, por exemplo, uma manifestação contra a “gentrificação” da cidade ou um happening visando denunciar as múltiplas máscaras a que recorrem os especuladores neoliberais. Talvez tal tipo de iniciativas lhe não desagradassem, mas a verdade é que a sua vinda ao Porto radica noutra razão: integra um painel de cientistas que vêm sustentar a tese de que é muito escassa, senão mesmo nula, a influência humana no processo das alterações climáticas. É que este Corbyn, de uma certa forma ainda mais polémico do que o irmão, considera que a causa dessas mesmas alterações não tem que ver com a produção de CO2 resultante da actividade humana, antes deriva de uma alteração da actividade solar.
Uma professora catedrática do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Maria Assunção Araújo, doutorada em Geografia Física, decidiu promover uma iniciativa contracorrente, dando voz a um grupo ultraminoritário de cientistas que contestam a teoria, hoje consensualmente aceite, da antropogénese das mudanças climáticas. De imediato se gerou um burburinho mediático, questionando-se a legitimidade da realização de um colóquio deste tipo, verberando-se a atitude da Universidade do Porto, apelando-se mesmo ao cancelamento de tão escandaloso encontro. Na verdade, clamam as vozes de algumas almas puras, como pode a Universidade do Porto continuar a ser vista e frequentada como um lugar respeitável depois de dar público acolhimento a tão pérfidas personalidades. Imagino a sensação de repulsa e de nojo que percorre os corpos de tão sensíveis almas. Aliás, no intuito de realçarem o asco moral e intelectual que os participantes neste encontro e os demais (muito poucos) que compartilham as suas posições lhes causam, convencionaram designá-los por “negacionistas”. Eles negam a importância da acção humana nas alterações climáticas com o mesmo grau de perfídia com que historiadores desonestos e extremistas de direita negam o Holocausto judeu perpetrado pelos nazis. Impõe-se uma questão: para quando um julgamento de Nuremberga para esta gente?
A coisa é mais séria do que parece. Lentamente, uma censura silenciosa foi fazendo o seu caminho. É provável que os cientistas que se vão reunir no Porto não tenham razão. O problema não é, porém, esse. Quando chegamos ao ponto de querer impedir um encontro de homens e mulheres da ciência pela simples razão de divergirem de uma posição cientificamente dominante - e política e socialmente consagrada - estamos perante uma preocupante ameaça ao primado do debate e até, no limite, da prevalência da liberdade. Acompanho inteiramente todos os esforços que têm sido feitos a nível internacional no sentido de contribuir para a redução dos efeitos nefastos que a acção humana tem causado no meio ambiente. Estou até disponível para compreender alguns excessos ambientalistas nesse plano. O que não aceito de forma alguma é a instauração da censura no mundo universitário. Por isso mesmo fez muito bem a Universidade do Porto em não acolher as sugestões de quantos preconizavam o cancelamento de uma iniciativa que pela circunstância de ser polémica não pode ser imediatamente apodada de ilegítima. Há uma coisa que todos percebemos: sabemos onde a censura começa, somos incapazes de imaginar onde ela acaba. E os piores censores são os que se dedicam a essa prática com a convicção de estarem a servir os melhores preceitos morais.
Piers Corbyn corre o risco de ser mal recebido no Porto. Azar dele ter vindo ao nosso país na qualidade de cientista “negacionista”. Tivesse ele vindo como activista social empenhado em denunciar os excessos do turismo, a perfídia de investidores que, em nome do lucro, põem em causa a esplendorosa ruína de edifícios decrépitos sobre os quais paira esse incomputável valor do “espírito do lugar”, ou a obsessão austeritária do ministro Mário Centeno, empenhado em cumprir meticulosamente as regras de Bruxelas, e teria sido recebido como o corajoso e algo excêntrico defensor de posições contrárias ao mainstream instalado. Assim, está condenado a ser perseguido como um reles dissidente do mainstream consagrado. Há, porém, um pequeno problema que Corbyn coloca. Normalmente, os “negacionistas” da influência humana nas alterações climáticas são identificados com o ultraconservadorismo e com o ultraliberalismo. Corbyn, ao que se sabe, continua fiel ao marxismo, alheio a qualquer think tank conservador.
Quem ama a liberdade não pode ter a mais pequena complacência diante de qualquer gesto de censura. A professora da Universidade do Porto que promoveu este colóquio revelou coragem ao fazê-lo. Ter coragem não significa ter razão científica. É provável que esta última lhe não assista. Só que há uma coisa que não podemos perder de vista: a vontade da liberdade é mais importante do que a preocupação com ter razão. Até porque só em sociedades verdadeiramente livres a razão se pode declinar no plural, condição imprescindível para a própria evolução do conhecimento científico.