A mochileira profissional
Miriam Augusto tinha uma carreira na área da toxicologia, mas a sua vida mudou depois de uma viagem ao Vietname. Em 2014, fundou a The Wanderlust, agência que planeia aventuras.
Miriam Augusto licenciou-se em Química, no ramo de Investigação, pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e depois prosseguiu na academia, já no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, com uma pós-graduação e depois um mestrado em Ciências Médico Legais. Hoje tem 34 anos e trabalha em Aveiro. Em viagens de mochila às costas. É mochileira profissional.
O percurso da aveirense é uma viagem em si mesmo. “Sempre quis enveredar pela área das ciências e quando estava em Química descobri uma área, a toxicologia”, conta à Fugas, que lhe permitiu estudar nas suas teses o consumo de drogas recreativas. “O que me fascina é a capacidade que substâncias exógenas têm de alterar a nossa percepção da realidade e o nosso mundo”, diz, usando verbos no presente mas falando já do passado no que à carreira toca. A falta de bolsas para continuar a estudar, desta feita em doutoramento, e o convite providencial de um amigo para visitarem o Vietname fizeram o resto. Deu a volta ao mundo e, com ela, a volta à sua vida, regressando ainda assim a outra pulsão que sempre teve — a viagem.
Estávamos no final de 2012 e lá muito para trás estavam as viagens feitas em criança para ir com a mãe ter com o pai, que vivia no estrangeiro. A primeira foi à Suíça, aos seis anos. “Sempre me fascinou, era tudo tão diferente”, diz Miriam Augusto sobre o que via fora das fronteiras do Portugal do final do século XX. Não parou mais de visitar outros países e tinha aquela característica das pessoas organizadas que era ajudar a planear as idas ao estrangeiro com grupos de amigos — o mundo num documento Excel a caminho da Índia, por exemplo.
Tal como nunca lhe passou pela cabeça ir ao Vietname, nunca lhe passara pela cabeça ir à Indonésia, hoje o seu destino preferido. O mundo bateu-lhe à porta quando, nessa primeira viagem ao Vietname, percebeu que outra coisa que “nunca passou pela cabeça, ser profissional das viagens”, ia ser o futuro. Uma epifania que não foi demovida pelo telefone a tocar. Era a Universidade de Trento, em Itália, a dizer que tinha colocação para doutoramento — mas sem bolsa. A frugalidade nas viagens é uma coisa, na academia outra.
Mesmo assim, foi preciso pensar bem até criar a The Wanderlust, a agência de viagens que “planeia aventuras”, como avisam no site, misturando dois ingredientes aparentemente incompatíveis — a organização em grupo e a descontracção e desprendimento de um backpacker. “Viajo sempre de mochila às costas e as pessoas que viajam assim não procuram sequer agências. Mas decidi arriscar e ver se havia um mercado para esse segmento.” Não só havia como é hoje o seu ganha-pão. Acaba de chegar da Indonésia e à data de publicação deste texto já está em Marrocos. Depois, vai de férias três semanas — o que é que uma viajante profissional faz nas férias? Lá iremos.
A Wanderlust, palavra inglesa que resume o “gosto de viajar”, está em Aveiro e desde 2014 cria viagens para grupos (entre cinco e 11 pessoas) para destinos tão distantes quanto Indonésia, Vietname, Índia, Nepal ou Birmânia, mas também Praga, Guatemala, Belize ou a longa travessia do transiberiano. A duração é de 10 a 21 dias e os preços vão dos 900 aos quase 2000 euros, conforme o destino, e os postais do costume são tratados de outra forma ou mesmo substituídos por novas imagens. Prova A: Ha Long Bay, no Vietname, é um local de que Miriam nunca gostou, mas os grupos queriam muito ir. Ela garantia-lhes: “não vai fazer falta”.
Com o feedback positivo dos viajantes que de repente davam por si a dar longos passeios de bicicleta junto a “aldeias mais remotas com as paisagens do nosso imaginário, com os grandes arrozais de verde intenso”, acabou por eliminar a peregrinação ao sítio do costume, enxameado de grupos e estragado pelo turismo de massas. É quase um resumo dos Wanderlusts, as viagens de exploração do mundo de forma responsável e sustentável que promove a agência que ocupa 17 líderes de viagem — que são mais do que um guia —, um marketeer e uma gestora do viajante. “Sugerimos sempre a mochila, é muito mais prático”, comenta sobre a categoria distintiva em que se enquadra. “De vez em quando ainda aparece um viajante de mala de rodinhas. E passa a viagem toda a maldizer a sua sorte”, ri-se, compreensiva.
Nas viagens que são agora o seu ganha-pão tem tido clientes repetentes, com idades em média entre os 35 e a casa dos 40, satisfeitos e que “procuram novos destinos”, mas também que voltam para se reencontrar com amigos. “Acabamos por passar muito tempo com as pessoas e criam-se laços.” Leva os seus grupos a países que os “líderes” conhecem bem, em que apostam no “contacto muito próximo com os locais”. “E é fundamental ter um carinho pelo destino.” No alojamento querem ajudar as economias locais escolhendo hostels, hotéis ou pousadas geridas por pessoas da zona e não estrangeiros. Algumas viagens implicam campismo, como no deserto do Sara, ou dormir em barcos na Indonésia.
Escolhe, naturalmente, a classificação de viajante e não a de turista. “Enriquece-nos muito mais, é o meu estilo de viagem. Viagens transformadoras, de onde voltamos com outra atitude, mais tolerante e compreensiva.” O resort é uma coisa de turistas — “não condeno” — mas é uma experiência muito limitada no tempo e no espaço. Não será a escolha para as férias que, depois de voltar de Marrocos (o preço é cerca de 900 euros), irá fazer. Miriam Augusto vai estar de férias três semanas, “e tentar estar mesmo offline”. “Nas viagens [de trabalho] estamos online” por necessidade. Em casa, para descansar de tanta viagem? Não. O objectivo é explorar, mais, sempre. Talvez com um pouco de prospecção. O destino, desta vez, é Cuba.