No parque do Kastelo, a alegria das crianças é sentir o vento e a água no corpo

O Kastelo, o único centro do país de cuidados continuados para crianças com doenças crónicas, ganhou um parque com muita água para os que não podem ir aos parques aquáticos tradicionais, porque estes não estão adaptados às suas necessidades. A inauguração é esta quinta-feira.

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Não há escorregas nem piscinas ou canoas que andam em carris a alta velocidade. Mas “Gabi” não se importa. Nem ele nem os outros miúdos para quem a água que agora jorra no jardim do Kastelo é mais do que suficiente para os fazer sorrir. “Enfermeira Teresa, por que é que o parque se desligou?”, repara “Gabi”, mal os repuxos de água param.

“Gabi” ou António Gabriel Ferreira Pinto — foi ele quem se apresentou assim — tem cinco anos e é um dos 23 meninos que o Kastelo, em Matosinhos, o único centro do país de cuidados continuados para crianças com doenças crónicas, acolhe no momento. 

“Gabi” foi saudável até aos três anos, mas uma infecção, cuja origem ainda é desconhecida, atingiu-lhe toda a parte motora. Já foi ao banho no novo (e único) parque lúdico de aparelhos aquáticos, adaptados a crianças com mobilidade física muito reduzida, que o Kastelo vai inaugurar esta quinta-feira.

Tê-los debaixo de água e sentir-lhes a alegria faz, por momentos, esquecer — a eles e a nós —, as limitações que os tornam diferentes e lhes vão diariamente complicando a vida. 

Há uma semana e meia que Teresa Fraga, a directora técnica, enfermeira especializada em cuidados intensivos pediátricos, que pôs este Kastelo de pé, diz que ali se faz história. "Faz-se história porque crianças ligadas a um ventilador podem agora frequentar um parque diariamente". É o caso de “Gabi” e de Albino que não vivem sem ajuda para respirar.

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"O importante é a brincadeira"

O parque fica nas traseiras do edifício principal, rodeado de um enorme jardim, uma horta, uma quintinha com ovelhas, numa área plana onde é fácil levar as crianças de cadeira de rodas e pô-las debaixo da água. E fica junto a umas grandes tílias que lhes dão a sombra que precisam depois do banho. 

A água jorra por repuxos que saem do chão, ou por equipamentos mais elevados, que permitem que os meninos e meninas que conseguem pôr-se de pé possam lá andar por baixo. “O importante aqui é o lazer, a estimulação sensorial, a reabilitação e, claro, a brincadeira”, nota Teresa Fraga. 

A construção de um parque aquático no centro até nem estava nos planos da directora. Mas um dia, no Verão do ano passado, mostraram-lhe uma notícia sobre a abertura de um parque aquático no Texas para crianças com deficiência. Trata-se do Morgan’s Inspiration Island, na cidade de San Antonio, no Texas. Abriu em Junho do ano passado e é o primeiro parque aquático no mundo pensado para receber crianças com problemas de mobilidade. Oferece, por exemplo, cadeiras de rodas impermeáveis, tem um sistema de controlo da temperatura de água, para que quem tem sensibilidade ao frio possa usufruir de todas as actividades, tem áreas silenciosas para pessoas sensíveis ao ruído e pulseiras que localizam crianças que se percam.

Leu o artigo, contactou uma associação americana envolvida no projecto, e chegou à conclusão mais óbvia: era "importantíssimo" que estes meninos tivessem a oportunidade de estar num parque com água como aquele. 

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A partir daí, reuniram-se grandes doses de persistência para pôr de pé esta obra. Com a campanha “70 Mecenas no Kastelo”, um evento de angariação de fundos, angariaram 70 mil euros, que cobriram metade do investimento ali feito. 

“Para já, é o suficiente para estas crianças”, diz Teresa. Foi mais um passo para tornar a vida destes miúdos o mais próxima possível da dos meninos mais saudáveis. “Para as crianças foi dar-lhes qualidade de vida, aumentar-lhes a esperança e fazer com que elas se sintam iguais a outras crianças consideradas saudáveis”, sublinha. 

O Kastelo não quis que estas novas valências ficassem apenas reservadas a quem é utente do centro. Por isso, aos sábados e domingos durante a tarde, de Maio a Setembro, as portas vão estar abertas a quem quiser usufruir do espaço. Terá o custo de cinco euros por família. 

“Não é fácil trabalhar aqui”

Enquanto esperam por entrar na água, estão atentos à banda que ensaia a apresentação para a inauguração. E “Rafa” está desejoso por entrar na água, diz Teresa, que já lhe conhece as manhas de ginjeira . 

Rafael tem cinco anos, ainda que a idade aqui seja um mero número e não conte muito para o acompanhamento que é feito a estas crianças. “Nós não funcionamos com a idade, é mais com as competências que eles apresentam”, diz Raquel Pereira, 24 anos, a terapeuta ocupacional que o acompanha.

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“Rafa” tem um traumatismo cranioencefálico. Teve um desenvolvimento normal até cerca dos dois anos, mas depois um acidente deixou-o com dificuldades na mobilidade e sem expressão. Nos últimos meses, sublinha Raquel, tem mudado muito. “Já é possível perceber o que ele gosta, o que não gosta”. 

O trabalho de Raquel é expor estas crianças aos diferentes estímulos do meio ambiente, trabalhar a parte sensorial. A ocupação delas é brincar, por isso, parte da avaliação que lhe é feita, tem em conta a forma como o fazem.

“Muitas destas crianças nunca tiveram experiências como outros meninos da sua idade”, repara. O parque aquático acaba por ser diferente nisso, ao dar-lhes oportunidades que eles nunca tiveram. “O importante é mesmo a qualidade de vida, o relaxamento, o conforto”, nota. 

O trabalho que é feito pelos profissionais deste centro acaba por ser muito multidisciplinar. “Aqui trabalhamos muito em equipa. Nota-se muita diferença dos outros sítios por causa disso. Acaba por ser a nossa família também, como se fossem os nossos primos, os nossos filhos”, sublinha a terapeuta.

Neste momento, o centro acolhe 23 crianças, das quais 20 (dez internadas e dez em regime de ambulatório) estão ao abrigo da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, e três são particulares. Têm doenças metabólicas e neuromusculares, paralisias cerebrais, traumatismos cranioencefálicos e doenças auto-imunes. 

Rodrigo, de nove anos, tem uma paralisia cerebral, que o faz ter uma mobilidade mais reduzida. Entrou no ano passado para o centro, e o progresso tem sido lento, mas Rodrigo "tem ganhado algumas coisas". Já é capaz de dar alguns passos com ajuda, explica Helena Teixeira, 25 anos, fisioterapeuta enquanto o põe na água e começa a trabalhar-lhe as coxas para que ganhe mais mobilidade e seja “mais eficaz na marcha”. 

As primeiras vezes que começaram a trabalhar no chão ele resmungava muito, conta. Não havia riso para ninguém. Mas assim, sob a água, nem parece que estão a trabalhar, nota a técnica.

“Para todos os profissionais foi uma aprendizagem e uma maneira de eles evoluírem e crescerem. De aprendermos todos a gerir as nossas emoções, porque não é fácil trabalhar aqui. Nunca sabemos quando a doença crónica nos pode acontecer”, diz Teresa. 

A construção do Kastelo

Teresa Fraga, de 55 anos, já viu “muito sofrimento, muito desespero” nos corredores do hospital. Enfermeira especialista, sempre trabalhou nos cuidados intensivos neonatais e pediátricos em hospitais do Porto. Um dia, conta como uma mãe a marcou. O filho nascera “com problemas gravíssimos” e os pais, ambos com 21 anos, não tinham onde o colocar. “Foi um desespero”, recorda.

Quando passava em frente da casa onde hoje é o Kastelo, em São Mamede de Infesta, dizia para si muitas vezes: "Se me saísse o Euromilhões, comprava esta casa para criar aqui uma instituição para as crianças com necessidades especiais. Para ajudar as mães a ter mais qualidade de vida". 

O certo é que a 24 de Junho de 2016, mesmo sem Euromilhões, conseguiu abrir as portas da primeira unidade de cuidados continuados e paliativos pediátricos do país e na Península Ibérica, diz a sua fundadora. 

A associação Nomeiodonada, à qual Teresa preside, transformou um antigo palacete num centro que quer dar a meninos com doenças graves e incuráveis, alguns em fase terminal, uma vida o mais normal possível, reduzindo o tempo que somam fechados em hospitais. 

Além de dirigir o Kastelo, Teresa ainda trabalha nos cuidados intensivos pediátricos no Centro Hospitalar do Porto. "Também não podemos perder aquela mão, aquele traquejo para ajudar estes meninos". 

Com ela, trabalham 34 profissionais ali no centro, entre terapeutas, o professor e a educadora, a psicóloga, a assistente social, auxiliares e enfermeiros. O centro tem capacidade para 30 crianças. Desde a abertura, já apoiaram cerca de 70 que chegaram de Beja a Mirandela.

O trabalho que é ali desenvolvido valeu-lhe um lugar entre os quatro finalistas portugueses (a par do Instituto “i3S”, do Centro de Negócios do Fundão e do Museu do Património da Vista Alegre) dos Prémios RegioStars, atribuídos pela Comissão Europeia, e que visam destacar projectos originais e inovadores apoiados por fundos europeus. Os vencedores serão conhecidos a 9 de Outubro. 

Teresa Fraga costuma dizer que "sentir o vento é sinal de liberdade, de que não se está fechado". Por isso, ali a criança só usa o quarto para dormir à noite. Não estão acamadas. Vão circulando, mesmo os que precisam de ajuda para respirar. Aqui, não há limite para a felicidade das crianças. 

“Basta vê-los que ficamos logo satisfeitos. Eles acabam sempre por nos ensinar muita coisa”, diz a enfermeira. Estas crianças são diferentes, têm mais esperança. O “Gabi” costuma dizer que um dia ainda vai andar, correr. Não sabe se tal será possível ou não, mas a esperança mantém-se nele. 

A filosofia do Kastelo “é dar vida aos dias das crianças e não dias à vida”. Que vivam intensamente cada dia, já que o futuro deles é o agora. Que vivam sempre com a alegria de poder sentir o vento e a água a bater-lhes no corpo.

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