“A Igreja tem de assumir esta vergonha, promovendo uma purga e uma catarse”

O bispo D. Januário Torgal Ferreira e o teólogo Anselmo Borges reclamam “limpez”" no governo da Igreja e defendem que está na hora de encarar o fim do celibato. CEP recusa, porém, qualquer relação entre os abusos de menores e a impossibilidade de os padres se casarem.

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TONY GENTILE

“A Cúria Romana é responsável por mais ateus do que Karl Marx, Nietzsche e Freud juntos.” É desta forma lapidar que o padre, professor e ensaísta português Anselmo Borges aponta o dedo ao governo da Igreja Católica, que considera ter sido conivente com os abusos sexuais de menores divulgados no relatório judicial que revelou que, nos últimos 70 anos, mais de 300 padres abusaram sexualmente de mais de mil crianças no estado norte-americano da Pensilvânia. Na sequência deste relatório, o Papa Francisco dirigiu-se ao mundo numa carta em que (além de se penitenciar) condena violentamente o encobrimento de tais abusos por parte de altos membros da hierarquia da Igreja, bispos inclusive.

“O que o Papa lembra é que é preciso agir em consequência em relação aos prevaricadores, nomeadamente quando se refere aos abusos como crime, além de como pecado, e quando convoca todos para a obrigação de os denunciar”, começou por interpretar Anselmo Borges. Nas entrelinhas da carta de Francisco, o teólogo descortinou críticas ao clericalismo de que enferma a Igreja e que leva os seus membros a procurar salvaguardá-la – encobrindo tais crimes – mais do que a proteger as suas vítimas.

“Parece que o importante [para quem encobre os abusos] é a instituição tida como divina quando, afinal, Jesus não fundou Igreja nenhuma, mas um movimento a favor da pessoa. Este encobrimento sistémico dos abusos é uma espécie de cancro com metástases que ameaça a Igreja, tanto como os abusos em si”, acrescenta.

Convencido da bondade de Francisco, o teólogo diz não acreditar, porém, que o actual Papa tenha a força necessária para quebrar “as resistências brutais das forças ultraconservadoras” da Cúria Romana, governo da Igreja Católica, onde se integrarão muitos dos que, ao longo dos anos, foram coniventes com os abusos, ocultando-os, “quase por obrigação doutrinal em muitos casos”.

Um novo modelo de padre

Perante “uma das suas piores crises”, importava refundar a Igreja e “recuperar a mensagem do Evangelho que diz: ‘A verdade libertar-vos-á’”, segundo Anselmo. Como? “Convoque-se um novo sínodo [assembleia de bispos], com representação de bispos, mas também de religiosos e de leigos, eles e elas, proporcionalmente ao seu número, isto é, com mais leigos do que clero”, sugere, reclamando a necessidade de “um novo modelo de padre” como princípio da cura das feridas abertas no seio da Igreja.

“Não podemos andar eternamente a pedir desculpas. É preciso acabar de vez com este equívoco que é o celibato obrigatório dos padres”, precisa, considerando que na sonegação da sexualidade dos membros do clero pode residir, em parte, a chave para a prática de uma sexualidade profundamente distorcida”. “Claro que não há uma ligação directa entre celibato e pedofilia, mas há claras ligações entre uma sexualidade distorcida e esta perturbação”, advoga, reclamando, como passo seguinte, a abertura dos cargos hierárquicos da Igreja às mulheres: “Se houvesse mais mulheres nas instâncias mais altas de decisão, estes horrores não deixariam de existir, mas não teriam atingido esta escala.”

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que agrega os bispos portugueses, recusa estabelecer este link. “Não gostaria de fazer essa ligação entre estes casos e o celibato eclesiástico dos padres. Não vejo que se deva fazer tal reflexão neste momento”, afirmou ao PÚBLICO o porta-voz da CEP, Manuel Barbosa, garantindo não haver neste momento em cima da mesa quaisquer denúncias contra membros do clero português e garantindo que a CEP está alinhada com Francisco no propósito de “lutar contra qualquer forma de abuso”. “Não é nova em Francisco esta insistência. Temos que continuar este processo de purificação, com oração, jejum e penitência”, declarou.

Escrutínio psicológico dos futuros padres

Para Isabel Allegro de Magalhães, professora catedrática e membro do Graal (uma comunidade internacional de mulheres de inspiração cristã), sarar estas feridas implica escavar muito mais fundo e refundar se não a Igreja, pelo menos a sua doutrina. A começar pelo celibato: “Nas igrejas protestantes – onde os pastores podem casar e praticamente são todos casados – não se ouve falar de escândalos com esta dimensão, o que faz pensar que a possibilidade de matrimónio ajuda a minimizar estes desvios.”

Reconhecendo que muitos dos abusos de menores ocorrem dentro da família, e muitos são perpetrados por homens casados, a catedrática diz acreditar que a repressão da sexualidade aos que querem ser padres, somada a todo um conjunto de práticas quer nos seminários, quer nos confessionários, em que os padres “aparecem sinistramente ocultados por aquelas grades com buraquinhos”, cria situações “pouco límpidas, pouco cristalinas”; ou seja, um caldo que ajuda à consumação do abuso sexual.

Outra medida fundamental seria que houvesse um “bondoso mas rigoroso escrutínio psicológico dos candidatos a padres”, capaz de ajudar à detecção precoce da propensão para tais desvios e de garantir o devido acompanhamento psiquiátrico, até porque os padres “não têm competências para tal”.

Depois de ler a carta de Francisco, e falando em nome individual, esta membro do Graal conclui que, “tanto como pedir perdão”, o Papa tem de exonerar os que cometeram abusos ou os encobriram. Recusando falar em falhanço da política de “tolerância zero” para com os abusos sexuais de menores iniciada por Bento XVI e que Francisco prometeu continuar, a catedrática acha que o Papa devia ter sido mais ousado no seu combate. “Parece-me que ele teve medo de ser drástico de mais, mas deveria tê-lo sido, nem que a Igreja tivesse ficado reduzida a dez padres”.

Concordando que “pedir desculpa não chega”, o bispo emérito das Forças Armadas, D. Januário Torgal Ferreira, reclama também a necessidade de ser feita “uma varredela na Cúria, afastando pessoas, quebrando o silêncio”. “A Cúria precisa de uma higienização muito profunda”, defende, dizendo acreditar que o Papa Francisco tem força para isso, até porque “já elegeu muitos cardeais que saberão estar do seu lado”.

Ao longo dos últimos cinco anos, Francisco foi reconfigurando o colégio cardinalício, sendo da sua responsabilidade a nomeação de 75 dos 125 cardeais que compõem aquele órgão. E, insiste D. Januário, o Papa deveria agora “lançar a hipótese” de pôr fim ao celibato obrigatório e “empenhar-se em destruir toda a estrutura dos que foram cúmplices de silêncios, perversidades e crimes”. “A Igreja tem de assumir esta vergonha, promovendo uma purga e uma catarse”, preconiza o bispo, para concluir: “Isto é uma derrota para a Igreja. E só se cura com total verdade, total transparência e total humildade”.

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