No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido.
Esta é a segunda de uma série de reportagens do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios.
A estação do Pocinho, concelho de Vila Nova de Foz Côa, recebe os passageiros com o mercúrio a passar dos 35 graus e o ruído da automotora alugada a Espanha a inundar o cais de desembarque. A viagem de regional entre Porto e Pocinho faz-se em cerca de três horas e 20 minutos. Ou em três e 40, dependendo do comboio que se apanha. Ou um pouco mais, conforme a pontualidade. Os primeiros quilómetros da Linha do Douro oferecem como paisagem a periferia urbana do Porto e são mais pacatos. Pelo menos no dia e hora em que o PÚBLICO fez a viagem, ao início da tarde do feriado do meio de Agosto. E, dizem-nos os passageiros mais ou menos habituais, costuma ser assim.
Em paragens como Régua e Pinhão o cenário altera-se, tanto no interior como no exterior da automotora a diesel. A partir de determinado ponto, os carris acompanham o rio, com o serpenteado de vinhas escalado em socalcos à vista, o que explica a grande procura turística pelo percurso. À chegada à Régua, a primeira multidão. A maioria dos passageiros que tinha entrado na estação de Campanhã já se tinha dispersado pelas paragens anteriores e os que agora entram são maioritariamente turistas, que se vão amontoando na plataforma e enchem de seguida a composição. Mais à frente, já no cais do Pocinho, avisam-nos que o percurso de volta “é mais complicado”, principalmente depois do Pinhão.
Os operadores fluviais do Douro vendem muitas vezes pacotes em que a viagem se faz num sentido de barco e no outro de comboio. Acompanhando a tendência nacional, a procura turística tem subido na região classificada como património mundial pela UNESCO em 2001, o que aumenta a utilização daquela linha ferroviária. Se, por um lado, isso faz com que haja mais passageiros a ajudar à viabilidade financeira da linha, também levanta problemas, como a sobrelotação de alguns comboios.
Comboios de Espanha
Lurdes Moura acompanha grupos de turistas rio acima e rio abaixo. Neste dia, o grupo de cerca de 20 pessoas navegou o troço entre Peso da Régua e Barca de Alva, já na fronteira com Espanha. Como a ferrovia entre Barca de Alva e o Pocinho foi encerrada há perto de três décadas, essa ligação faz-se de autocarro. A parte restante no regresso costuma ser feita de comboio, conta a guia. Mas há dias em que não há essa hipótese. “Tem acontecido chegarmos ao Pocinho e o comboio — com capacidade para cerca de 200 pessoas — já estar cheio”, relata.
O comboio que apanhamos de regresso ao Porto sai às 17h21. O último regional, que sai às 19h07 do Pocinho, é “mais crítico”, informa-nos Lurdes Moura, que anda nestas lides há 14 anos. Ao passar pelo Pinhão, a automotora enche-se, até ao ponto em que se torna espinhosa a tarefa de entrar, mesmo que apenas para viajar de pé. Saído da cabine, o revisor olha para a multidão e chega à conclusão que ali não vai conseguir circular. “Já não passas. Esquece”, diz-lhe a guia, que já o conhece por conta das inúmeras viagens na linha. Depois confidencia-nos: “Estes homens sofrem aqui que nem uns desgraçados.”
“É boa a viagem. Demorada, mas faz-se”, começa por dizer Maria Ludovina Afonso, que viaja com o marido, de nome José Luís e com o mesmo apelido. São de Mêda, no distrito da Guarda, e deslocam-se de dois em dois meses ao Porto para visitar filho e netos. Estão de regresso a casa com o aglomerado de malas e o pequeno cão Max. As principais queixas são sobre a casa de banho: “Têm pouca água. Pôr mais papel não encareceria, penso eu.” Ela com 71 anos, ele com 74, também lamentam que a ligação aos autocarros no Pocinho não seja a melhor. Dizem que “durante o ano é calmo” e que é no Verão “que há mais turistas”. Todavia, há cerca de um ano, no sentido Pocinho-Porto, “nem à casa de banho se conseguia ir”, recorda Maria Ludovina. Mas não é preciso recuar um ano para encontrar episódios do género.
O presidente da Comissão de Utentes da Linha do Douro, António Pereira, repete ao telefone com o PÚBLICO as críticas aos lavabos das carruagens, que diz estarem “constantemente avariadas”. Mas não se fica aí: “Muitas vezes o ar condicionado não funciona, por vezes ou está muito quente ou muito frio. É uma miséria.” Menciona também as situações de sobrelotação em que, “muitas vezes, as pessoas vão de pé, sem condições nenhumas para viajar”. Estes comboios “alugados a Espanha são péssimo material”, resume. E o problema está identificado, tanto pela CP como pelos utentes: falta de material circulante.
É essa a mesma conclusão da guia Lurdes Moura, que diz que a CP “precisava era de comboios novos e com capacidade”. Lembra as antigas máquinas portuguesas que ali circulavam, que permitiam “ao menos abrir a janela quando estava calor”. E prossegue: “Estes são uma vergonha. As casas de banho são uma vergonha e tem dias em que o ar condicionado não funciona”, sem que haja possibilidade de correr as vidraças. Refere-se à falta de material da CP como a base da maioria dos problemas na Linha do Douro. “Trabalho aqui há 24 anos e ouço isso [há cerca de metade]”, confirma o revisor.
Lurdes Moura lembra que, se a assiduidade do serviço se manteve, a verdade é que há cada vez mais turistas. E para isso “ninguém está preparado”. A “frequência está óptima, mas devia ter mais composições”, aponta. Se no dia 15 de Agosto todos os compartimentos da composição tinham ar condicionado, “nem sempre é assim”, explica. No mesmo sentido, António Pereira refere que, “mais material a CP tivesse, muito mais procura teria”.
O presidente da CP, Carlos Nogueira, avançou já esta semana que a empresa estatal poderá gastar até 3,5 milhões de euros com o aluguer de mais seis a dez comboios à congénere espanhola Renfe. Este negócio viria acrescer aos sete milhões anuais que a CP já paga por 20 composições.
Numa visita às oficinas de Campolide, o responsável referiu ainda que a CP “vai entrar na fila” das encomendas a fabricantes, operação que trará para Portugal comboios novos “daqui a três ou mais anos”. Até lá, “importa reforçar o aluguer”, que terá de ser feito a Espanha, uma vez que tem máquinas a diesel e de bitola ibérica.
É perceptível o esforço do motor da automotora ao escalar os planos mais inclinados, que se traduz no aumento do ruído pontuado por um ranger cadenciado. Na linha do Douro, a velocidade oscila entre os 80 e os dez quilómetros por hora, explica-nos Rui Resende, maquinista da CP há 24 anos. Os dez quilómetros horários justificam-se nas zonas da linha onde há “pequenas derrocadas” de pedras.
Se reconhece que há problemas no serviço, sublinha também “que não é tão mau como dizem” e que, em matérias de alteração de horários da CP, o Douro manteve a escala. “No Minho, sim, as pessoas ficaram mal servidas, como é o meu caso, que moro lá”, exemplifica.
Nota que o volume de passageiros “tem aumentado de há uns anos para cá”. Entre 2014 e 2017, a Linha do Douro passou de 737 mil passageiros para 915 mil. A ferroviária do Estado tem procurado dar alguma resposta ao aumento, com a introdução de comboios especiais, mas já reconheceu as limitações. Em Agosto 2016, três empresas de transporte fluvial decidiram trocar o comboio pelo transporte rodoviário, como protesto perante o “mau serviço” da CP, referindo que os clientes tinham de viajar de pé, em carruagens cheias e com climatização deficiente.
Meses depois, já no início de 2017, as mesmas empresas — a Barcadouro, a Rota do Douro e a Tomaz do Douro — assinaram um protocolo com a CP para a criação de um serviço exclusivo para transporte de turistas entre Porto e Régua que circula entre os meses de Maio e Outubro.
A assessora da administração da Douro Acima, Elisabete Loureiro, refere que a oferta da CP antes da criação dos comboios especiais “não dava minimamente para as necessidades, mesmo em situações em que a afluência de turistas não era significativa. Depois, “os horários normais ficaram mais aliviados para responder ao público em geral e a uma ou outra empresa que não tenha necessidade de tantos lugares, como é o caso da Douro Acima”. A operadora que representa, explica, trabalha com barcos rabelos, pelo que transporta um menor número de pessoas em cada viagem. Entende que, neste momento, o serviço da CP “está a dar para aquilo de que há necessidade”.
Para fazer o trajecto entre Porto São Bento e Régua, mas também mais direccionado para o turismo, a CP tem igualmente o comboio MiraDouro, que circula anualmente entre 13 de Julho e 30 de Setembro, com carruagens fabricadas na década de 1940. O comboio histórico do Douro percorre a distância entre as estações de Régua e Tua, mas só aos fins-de-semana.
A electrificação que tarda
Os problemas na Linha do Douro não se resumem à grande afluência turística. A novela da electrificação do troço entre Caíde (concelho de Lousada) e Marco de Canaveses, que começou em 2015, teve recentemente mais um episódio, com a empreitada a ser lançada novamente. A Infra-estruturas de Portugal prevê que, por isso, esta parte de 16 quilómetros da linha seja encerrada nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro, quando a procura é menor, com o transbordo a ser feito de autocarro.
“É uma forma de minimizar o tempo de espera [em Caíde]”, considera António Pereira, mostrando-se compreensivo em relação às obras. A linha está electrificada do Porto até Caíde, mas não daí para a frente. Isso significa que, para apanhar a ligação com os comboios urbanos em Caíde, quem vem de Marco de regional, segundo as tabelas da CP, pode ter de esperar entre cinco a 20 minutos. “Os utentes preferiram essa solução a outra, que fosse mais penalizante para eles.” O presidente da associação de utentes diz que, por isso, as pessoas de Marco de Canaveses vão de carro até Caíde, Penafiel e Paredes apanhar os comboios para o Porto. “Quando chegar a electrificação ao Marco, esse problema acaba”, acrescenta.
E o facto de chegar ao Marco é mais um passo para que possa ir até Peso da Régua, refere o presidente desta câmara municipal, José Manuel Gonçalves. A expectativa é nesse sentido, mas as declarações ao PÚBLICO revelam um plano mais ambicioso de fazer a ligação a Espanha. “Era fundamental para o Douro e para o país”, classifica.
O autarca social-democrata entende que, no horizonte de financiamento comunitário de 2030, a ligação ao país vizinho “é daqueles investimentos que devem ser considerados prioritários para o país”, “a nível turístico, mas também de transporte de mercadorias”.
Dos munícipes chegam-lhe as queixas sobre o actual estado do serviço. Mas sublinha que “a sobrelotação é a prova de que a linha é procurada e tem mercado”. Diz ter tido a informação de que também haveria redução da oferta com a alteração dos horários de Agosto da CP, mas esta acabou por se manter, depois de um protesto de autarcas da região. “Era contraditório estarmos a criar condições para as pessoas virem cá e, por outro lado, estarmos a delapidar o meio de transporte com peso significativo no fluxo turístico que nos liga ao Porto”, faz notar.
Quando tomou conhecimento de eventual alteração de horários, a Junta de Freguesia do Pinhão, no concelho de Alijó, emitiu um comunicado em que dava conta a redução de 40% da oferta entre o Peso da Régua e o Pocinho. Contactada pela agência Lusa em Julho, a CP respondia que estavam a ser feitas actualizações à base de dados e que o que se verificou tinha sido “um erro de pesquisa”.
Ao PÚBLICO a presidente da junta de Pinhão, Sandra Moutinho, diz que os comboios “estão a andar normalmente”. Ressalva, no entanto, que estão a ser vendidos demasiados bilhetes para a capacidade das carruagens e que a ligação ao alfa pendular que segue para sul em Porto Campanhã faz-se com uma margem de cinco minutos — o que pode não ser suficiente, conforme os atrasos.
Voltando ao comboio que faz a viagem entre Campanhã e Pocinho, encontramos Maria Sousa e Bernardina Ferreira, de 77 e 73 anos respectivamente, que entraram na automotora em Paredes. Não é um ritual com um calendário rígido, mas fazem-no duas ou três vezes por ano: chegando ao fim da linha, lancham na cafetaria da estação e, ao fim dos 44 minutos, as duas mulheres voltam com a mesma máquina, que faz o caminho inverso. Falam sobre outros destinos que costumavam visitar, também para aqueles lados, onde o comboio já não chega. Até ao final dos anos 1980, a linha ia até Barca de Alva, já perto da raia luso-espanhola. “Foi uma pena” terem acabado com a ligação, afirmam.
Maria Ludovina Afonso também recorda a extinção do percurso. Já lá vão perto de três décadas. “Cada vez há menos gente cá para cima, é o deserto do interior”, lamenta.