Do subúrbio bling-bling de Skepta às Pussy Riot powered by Vodafone: noite de contradições em Paredes de Coura
Na terceira jornada do festival, foi o shoegaze dos Slowdive que reuniu o consenso no palco principal, onde Kevin Morby também teve espaço para brilhar.
Começamos pelo fim. Acabámos o terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura divididos e a reflectir sobre uma jornada em que a diversidade de géneros encaixados no alinhamento e de propostas ao nível do discurso, por si só, chegava para não desviar as atenções.
Tínhamos o rock imersivo dos Slowdive, banda que ajudou a criar o shoegaze, um Kevin Morby que vai à folk americana beber inspiração, uns DIIV, descendentes directos dos Slowdive, os …And You Will Know Us By the Trail of Dead, na facção mais furiosa, e o grime de Skepta e o activismo das Pussy Riot a remeterem-nos mais declaradamente para o valor e o significado da palavra.
E foram precisamente os dois últimos que nos deixaram a reflectir. Se o primeiro reúne nas suas composições líricas todo o historial que acumulou no subúrbio de Londres, as segundas hasteiam a bandeira do anti-capitalismo e da igualdade de género.
Não há nada de errado no discurso. Porém, a forma como foi entregue confunde-nos. Skepta, numa actuação marcada pelo arremesso de objectos para o palco e por um desentendimento com os fãs, contou histórias do subúrbio em modo bling bling. Mais tarde, já no palco secundário, as Pussy Riot apresentaram um manifesto anti-capitalista com o símbolo de uma grande marca na parte superior da tela por onde iam passando as diferentes alíneas do mesmo. Mas já lá iremos. Prioridade por agora à banda que salvou a noite, os britânicos Slowdive.
Slowdive magistrais
Em 2015, quando os Slowdive passaram pela primeira vez por Paredes de Coura, Pygmalion (1995) tinha já duas décadas em cima, vindo dos anos 1990, tal como os dois outros discos da banda, Just for a Day (1991) e Souvlaki (1993). Desta vez, chegaram ao festival com o álbum homónimo lançado em 2017, e já dado a conhecer ao público de Lisboa e do Porto no início deste ano. Foi nesta nova proposta que tardou a sair, mas que não comprometeu o legado dos britânicos, que apoiaram a sua actuação intimista para uma plateia gigante: o anfiteatro de Coura tem essa particularidade de se adaptar à especificidade do género que ali se mostra.
Em Catch the breeze, conduzida pela voz de Rachel Goswell, que dança entre as teclas e a guitarra, os Slowdive voltaram ao passado para fazer esse ajustamento espacial. Com o recinto já à medida das suas necessidades, levaram o tema aos píncaros com uma explosão sónica de proporções épicas, imagem de marca da banda, uma daquelas a que o pós-rock também foi buscar inspiração.
Foi nesse tom, entre momentos mais contemplativos a desembocar em guitarras gélidas em crescendo, que se fez a actuação mais consistente e ao mesmo tempo mais emocional do terceiro dia deste 26.º Vodafone Paredes de Coura. Arriscamos no magistral. Quando tocaram Pygmalion, melodia sensual que é também um convite à luxúria, foram ovacionados. Em Souvlaki space station, do segundo álbum, puseram o delay no máximo para acompanhar a métrica arrastada e preguiçosa da vocalista. Em Sugar for the pill, comprovaram o que o novo álbum não alienou os fãs mais fiéis mas serviu também para angariar novos adeptos. Terminaram a actuação com uma versão da desleixada (em termos técnicos) Golden hair, de Syd Barrett. Os arranjos que vestiram a música do fundador dos Pink Floyd talvez não fossem aqueles que o músico escolheria se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, mas a opção estética dos britânicos conferiu-lhe uma carga ainda mais depressiva.
Se os Slowdive foram os responsáveis pelo momento mais intenso do palco maior, as actuações dos DIIV e de Kevin Morby estiveram num nível entre o eficaz e o surpreendente.
Os primeiros vieram a Portugal de propósito, não tinham tournée marcada. Eram um sonho já antigo da organização do festival. No mesmo espectro dos Slowdive e de uns My Bloody Valentine, não têm ainda anos de vida suficientes para poderem reclamar o feito de terem ajudado a inventar o shoegaze, mas descobriram-no a tempo de aprender a fazê-lo bem. O primeira longa duração, Oshin, só viu a luz do dia em 2012; dele tocaram Dopamine, onde pisam território já explorado por uns Sonic Youth, longe do shoegaze, mas com amizades dentro do género. Em Under the sun não tiveram medo de desafinar. É o que lhes dá o charme, o que lhes traz graça. O vocalista, Zachary Cole Smith, tímido, mas com sentido de humor apurado, prova que ser nerd também é cool.
Num registo mais sério e concentrado, Kevin Morby, que revelou a sua afinidade por Portugal, especialmente pelo Porto, a sua “casa na Europa", passeou-se pelo cancioneiro da folk americana. Por vezes, na métrica, recorda um Dylan ou um Lou Reed, dentro do universo dos históricos. Das referências mais recentes, remete-nos para Kurt Vile. Move-se entre a balada e a explosão sem que as composições pareçam uma manta de retalhos. Garantiu um final de tarde que, longe do inesquecível, vai figurar no top das melhores actuações deste ano.
Das performances de …And You Will Know Us By the Trail of Dead, que desde 2014, quando lançaram IX, não editam nada, e que foram os responsáveis pelo concerto mais visceral desta edição do festival, dos tuaregues argelinos Imarhan, muito próximos de uns Tinariwen, no palco secundário, ou de Frankie Cosmos e do seu lo-fi colegial, passamos para as cartas fora do baralho de um dia marcado sobretudo por diferentes abordagens ao rock.
Activismo e ostentação
Skepta, um dos pilares do grime – hip-hop made in UK –, tem um Mercury Prize numa das prateleiras de casa. Terá sido talvez por isso que a organização apostou nele. Questionamos se é esta a direcção que o festival quer seguir. Não é que não estivesse uma moldura humana imensa à sua espera, mas não haverá já outros festivais em Portugal mais talhados para receber este género de música?
A partir do momento em que entrou em palco algumas questões começaram a pairar na nossa mente. Estava tudo a correr bem nos primeiros dez minutos: durante esse período, o rapper, apoiado por DJ Maximum, foi insistindo e pedindo ao público mais energia. Os níveis de entusiasmo subiram de tal forma que um dos fãs mais empolgados atirou uma das omnipresentes lanternas com o logótipo do principal patrocinador do festival para cima do palco – no recinto, recorde-se, está proibida a entrada de garrafas de água com tampa. Apesar de ter sido um acto inofensivo, Joseph Adenuga, nome de baptismo, não gostou e não soube dar a volta por cima. Na hora, disse que sairia do palco se voltasse a acontecer algo semelhante. Houve quem achasse boa ideia repetir a façanha. Skepta abandonou o palco por alguns minutos. Voltou enquanto se anunciava que sairia de vez se se repetisse.
A partir daí, e à excepção dos fãs fiéis, concentrados na linha da frente, o ambiente tornou-se mais frio. Skepta tinha perdido, irreversivelmente, grande parte do público. Os beats graves e o flow competente com que debitava palavras de ordem sobre opressão e fraternidade não foram solução para o trazer de volta.
Um passado de amargura face à opressão dominante escancara-se nas letras. De certa forma, Skepta é também um activista, apesar do aparato e da ostentação corporizados pela crew de cerca de uma dezena de pessoas encostada a uma das laterais, que de vez em quando se passeava pelo palco para mais uma selfie. No palco, a actuar, eram só três. Muita pose, pouco sumo e muita contradição. Ironicamente, o concerto acabou com Skepta e companhia a lançarem brindes para o público.
De “activista” para activistas, esperavam-nos entretanto no palco secundário as Pussy Riot, reforçadas para a ocasião pela presença de Nadya Tolokonnikova, uma das líderes da banda, que esteve encarcerada 21 meses na sequência de um protesto numa catedral russa. Antes de iniciarem o concerto propriamente dito, deixaram a rolar numa tela por trás do palco um manifesto pela igualdade e declaradamente anti-capitalista. Só que mesmo por cima da tela está o logótipo da Vodafone, e em torno daquele palco brilham outros reclames de grandes marcas. Naqueles cinco minutos de espera, os punks Dead Kennedys já teriam tocado duas músicas.
Há algo na forma como entregam a sua pertinente mensagem que não parece bater certo. Em termos musicais, são medíocres e envolvem-se num pacote de luta contra o sistema, balaclavas e música de carrinhos de choque. A luta pode ser cool, mas tem de levar à reflexão. Nesta actuação não nos parece ter havido esse exercício. Faltou perceber se usam a música para servir o activismo político ou se se servem do activismo político para poderem tocar.