Estas mulheres dinamarquesas gritam que “não se pode libertar alguém que já é livre”
Face à proibição do véu islâmico na Dinamarca, um grupo de mulheres criou o Kvinder i Dialog. Ayse e Ayesha fazem parte do grupo que dialoga com a comunidade através de exposições, palestras e bancas de rua onde qualquer pessoa pode experimentar o niqab.
Há 15 dias que Ayesha Ibrahim, nascida e criada na Dinamarca, não vai à escola nem ao trabalho. “Se sair de casa, sou considerada uma criminosa”, começa por contar ao P3 em entrevista telefónica. A 1 de Agosto, entrou em vigor a lei que proíbe o uso do véu integral islâmico em público e que penaliza com uma multa quem sair à rua com o niqab, o véu que deixa apenas os olhos a descoberto, ou a burqa, peça de vestuário que cobre o corpo todo da mulher e que tem uma abertura rendilhada nos olhos. “Aqui fala-se muito de liberdade e dos direitos das mulheres, mas agora nem sequer podemos escolher aquilo que vestimos”, atira.
A jovem de 19 anos, que tem raízes turcas, afirma que “sempre se sentiu mais dinamarquesa do que turca”, já que a Dinamarca é a única casa que conhece. Ayesha sublinha que crescer naquele país enquanto muçulmana “não foi uma experiência muito diferente da dos colegas não-muçulmanos”. “Nunca foi difícil fazer amigos na escola e os professores sempre foram amáveis, assim como os meus vizinhos”, diz.
Quando começou a praticar o islamismo, nada mudou na comunidade envolvente – até à data em que a lei foi aprovada pelo Parlamento dinamarquês, a 31 de Maio. “Fiquei em choque quando soube da notícia, porque este é um país livre”, recorda Ayesha. Também Ayse Ciftci, 21 anos, partilha da mesma opinião e faz questão de distinguir duas realidades que se opõem. “Existe a Dinamarca que eu conheço e na qual eu cresci, e a Dinamarca onde eu vivo neste momento.”
Ao contrário de Ayesha, Ayse não veste o niqab, mas o hijab, o lenço que cobre apenas o cabelo e que não é abrangido pela lei. A vida das duas jovens cruza-se nas actividades do grupo Kvinder i Dialog (Mulheres em Diálogo, em tradução livre), ponto de encontro entre mulheres muçulmanas que usam hijab, niqab ou burqa. “Muita gente falava sobre nós, mas nunca connosco”, refere Ayesha. “Criámos esta organização para sermos nós a contar a nossa história.”
Desmistificar o niqab
Desde o início do ano, o grupo sediado em Copenhaga organizou eventos como palestras em escolas, open houses (com exposições e doces caseiros) e bancas de rua onde, além de tomar chá ou café, os transeuntes podiam experimentar o niqab. O objectivo era promover a aproximação entre as mulheres muçulmanas e a sociedade. “Muita gente que se opunha ao niqab mudava de opinião e dizia ‘Achava que eras obrigada [a usar o niqab], mas agora percebo que é uma escolha’”, recorda Ayesha Ibrahim. Com a entrada da lei, estas acções de rua ficaram um pouco em suspenso, mas o colectivo continua a promover protestos e iniciativas de sensibilização, apostando também, como nunca, no activismo nas redes sociais.
A imposição do niqab às mulheres por parte da família é uma das dúvidas mais frequentes. “[Quando me perguntam], digo-lhes que usar o niqab faz parte da minha religião e ninguém me pode forçar a pô-lo e a tirá-lo”, reforça. “É algo que vem de mim.”
O véu islâmico enquanto símbolo de opressão da mulher é uma ideia cultivada por alguns membros do governo dinamarquês. “Nós queremos igualdade de género na Dinamarca, apenas isso. Se queres vestir a burqa e o niqab, encontra outro lugar onde fazê-lo”, argumenta Naser Khader, membro do Partido Popular Conservador (PPC), citado pela revista Time. Aquando da aprovação do projecto de lei, o ministro da Justiça, Soren Pape Pousel, havia dito que cobrir o rosto em público é “incompatível com os valores da sociedade dinamarquesa e com o respeito pela comunidade”.
Ayse Ciftci, aluna da licenciatura em Língua Inglesa na Universidade de Copenhaga, ironiza a lei “opressiva que quer acabar com a opressão”. “O governo diz-nos que nos quer libertar, mas isso não faz sentido nenhum”, elabora. “Não se pode libertar alguém que já é livre, nós somos todas livres.”
A jovem, filha de curdos que vieram da Turquia, considera-se trilingue — fala turco, curdo e dinamarquês — e, até há bem pouco tempo, nunca tinha encontrado discriminação. “Os dinamarqueses são geralmente muito educados e receptivos a outras culturas e religiões”, afirma. “Antes, os racistas escondiam-se, mas agora a lei fá-los pensar que podem chegar à beira de alguém e tirar-lhe o niqab da cabeça.”
O racismo também une
Foi o que aconteceu a uma mulher de 28 anos que estava no centro comercial quando foi confrontada por outra que lhe arrancou o véu islâmico. “A polícia multou-a, mas a outra mulher também foi punida”, conta Ayse. As coimas vão das mil coroas às dez mil coroas dinamarquesas (cerca de 130 e 1300 euros, respectivamente). Rachid Nekkaz, magnata e activista argelino-francês conhecido como o “zorro do niqab”, ofereceu-se para pagar as multas das mulheres dinamarquesas, à semelhança do que já fez em países com medidas semelhantes como França ou Bélgica. “Face a essa notícia, já se fala em levar a lei mais longe e prender as mulheres que usem niqab”, revela Ayse.
O racismo veio à tona mas, segundo Ayse, “também uniu a população dinamarquesa, apesar das diferenças culturais e religiosas”. A 1 de Agosto, milhares de pessoas reuniram-se no centro de Copenhaga, entre muçulmanos e não-muçulmanos que cobriram o rosto com máscaras e lenços para uma marcha contra a proibição do véu islâmico integral.
A estudante opina que “as mulheres não vão tirar o niqab e deixar que o governo as discrimine”. “Não podemos esperar que um grupo de pessoas comprometa a sua identidade só para ser aceite”. Para estas mulheres, ainda há muito caminho a trilhar para “desconstruir a ideia de que os muçulmanos não contribuem para a sociedade”. “Só porque nos vestimos de forma diferente, não quer dizer que não pertencemos à população dinamarquesa”, termina. “Nós somos dinamarquesas.”