Elaborado o “mapa” mais completo do difícil genoma do trigo
Depois de 13 anos de investigação, eis a versão mais pormenorizada do genoma do trigo. Para os cientistas, estamos mais próximos de criar novas variedades deste cereal mais resistentes a pragas e climas extremos.
O trigo é um longo companheiro de percurso do humano. Foi domesticado logo a seguir ao surgimento da agricultura – há cerca de dez mil anos – e tornou-se uma das culturas mais cultivadas do mundo. Mas para que continue a acompanhar-nos temos de conhecer melhor a sua identidade genética. Agora, uma equipa de 202 cientistas de 73 instituições científicas anuncia na revista científica Science a primeira versão anotada, completa e de maior qualidade do genoma do trigo, ou seja, o “mapa” mais pormenorizado do ADN deste cereal. Nesta sexta-feira foram ainda publicados mais seis artigos científicos com descrições e usos da nova versão do genoma deste cereal e de como pode ser importante para a criação de novas variedades ou para percebermos certas doenças e pragas.
“As mais primitivas culturas do Crescente Fértil [região entre o Médio Oriente e o Nordeste de África], como o trigo, a cevada e as ervilhas, domesticadas há cerca de dez mil anos, derivaram de antepassados silvestres que ofereciam muitas vantagens”, escreve o professor de biogeografia Jared Diamond no seu livro Armas, Germes e Aço (Temas e Debates, 2015), que reflecte sobre o destino das sociedades. Que vantagens? “Eram já comestíveis e davam um elevado rendimento em condições selvagens. Criavam-se facilmente, bastando semeá-las ou plantá-las. Cresciam rapidamente e podiam ser colhidas poucos meses depois de serem semeadas, uma grande vantagem para agricultores incipientes ainda na fronteira entre os caçadores nómadas e os aldeões sedentários.”
Desde então, o trigo ultrapassou fronteiras. Actualmente, segundo os dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), é cultivado em seis continentes e foram produzidos 749 milhões de toneladas só em 2016. De toda a produção, 67% é para consumo humano. Em média, cada humano consome 65 quilos por ano e esta é maior fonte de calorias (19%) e de proteínas (20%) na nossa dieta. Contudo, é também uma cultura desafiante. Com a população a aumentar – estima-se que em 2050 sejamos 9600 milhões –, a FAO calcula que seja necessário um aumento de 60% na sua produção.
Perceber o seu genoma é um dos caminhos para atingir esse objectivo. Por isso, várias equipas de cientistas têm sequenciado o genoma do trigo. Mas têm sido rascunhos que precisavam de ser melhorados. Para que se criasse uma versão de grande qualidade, formou-se o Consórcio Internacional de Sequenciação do Genoma do Trigo (IWGSC), que reuniu mais de 2400 participantes de 68 países. Depois de 13 anos de trabalho, surgem agora os resultados e são a capa da Science: um genoma de elevada qualidade da espécie Triticum aestivum da variedade Primavera chinesa (Chinese Spring). “Não é uma variedade com valor agronómico. Foi usada para produzir uma sequenciação de referência do genoma porque Ernest Sears [geneticista que estudou o trigo] fez muito trabalho genético sobre ela entre 1950 e 1970”, indica Rudi Appels, cientista da Universidade de Melbourne (Austrália) e um dos autores do recente estudo.
O que se conseguiu agora? Conseguiu-se descrever detalhadamente o ADN dos 21 cromossomas do trigo – no fundo, são sete cromossomas repetidos três vezes, porque o trigo moderno surgiu da hibridização de três espécies ancestrais – e apresenta-se a localização exacta de 107.891 genes e de mais de quatro milhões de marcadores moleculares. Sequenciou-se ainda a informação que está entre os genes e os marcadores e que tem elementos regulatórios que influenciam a actividade dos genes. Tudo isto demorou 13 anos devido ao enorme tamanho do genoma do trigo – que é cinco vezes maior do que o genoma humano e 35 vezes maior do que o do arroz – e à sua complexidade. Tem 85% de ADN repetido.
“A sequenciação do genoma permitiu-nos olhar para o interior da maquinaria do trigo”, sublinha Rudi Appels. “E o que vimos foi uma montagem muito bonita que permitiu a variação e a adaptação a diferentes ambientes através da selecção, bem como a estabilidade suficiente para manter a estrutura básica para que consiga sobreviver sob várias condições climáticas.”
Jogo de cópia de genes
Com esta informação genética, há assim ferramentas para identificar genes e elementos regulatórios essenciais para desenvolver essas novas variedades mais resistentes a pragas e doenças, mais nutritivas, prontas a lidar com condições climáticas extremas e que sejam mais produtivas. Além disso, poderão ser criadas variedades mais refinadas para pessoas com intolerância ao glúten, por exemplo.
Embora tenham sido agora anunciados, os dados deste genoma (que são de acesso público) estavam disponíveis para a comunidade científica desde Janeiro do ano passado e já foram publicados mais de 100 artigos. A acompanhar este trabalho há mais seis artigos que usaram o novo genoma: um na revista Science, outro na Science Advances e quatro na Genome Biology.
“Examinámos em detalhe onde e quando os genes são expressos [activos] no trigo”, explica Philippa Borrill, do Centro John Innes, no Reino Unido, e uma das autoras do segundo artigo sobre o genoma do trigo na Science. “Foi particularmente entusiasmante porque o trigo tem uma média de três cópias de cada gene e tínhamos de observar se essas três cópias partilhavam padrões de expressão [actividade] semelhantes.” Isto poderá contribuir para o melhoramento do trigo. Por exemplo, dá informação se se deverá considerar todas as cópias de um gene ou apenas ter em conta uma delas.
Por enquanto, descobriu-se que a maioria das três cópias dos genes têm padrões de actividade semelhantes, o que significa que será necessário prestar atenção às três cópias para melhorar o trigo. Contudo, em cerca de 30% dos genes, as cópias têm padrões diferentes, o que poderá querer dizer que têm funções diversas e que poderão melhorar o trigo mais depressa. Philippa Borrill frisa que este é ainda um “primeiro passo” para que se identifiquem genes com características importantes para a agricultura, como a resistência a pragas, e que é preciso fazer mais estudos sobre este jogo das cópias de genes.
Descodificar a doença celíaca
Já a equipa de Odd-Arne Olsen, da Universidade Norueguesa de Ciências da Vida, foi em busca de genes conhecidos por codificarem proteínas responsáveis por reacções alérgicas (como a doença celíaca, uma doença auto-imune em pessoas com predisposição genética causada pela permanente sensibilidade ao glúten) ou problemas imunitários relacionados com o consumo de trigo. Agora publica o artigo na Science Advances, onde apresenta a identificação de 127 novos genes (e cerca de 700 conhecidos), assim como de 222 sequências genéticas que já eram parcialmente conhecidas.
“Mostramos que as condições de crescimento [do trigo] afectam o conteúdo de proteínas reactivas alergénicas”, indica Odd-Arne Olsen. Perceberam assim que a maturação da cultura em elevadas temperaturas aumenta a actividade das prolaminas (grupo de proteínas que se encontra na semente dos cereais) no grão relacionadas com a maioria das doenças celíacas. Já as temperaturas mais baixas ampliam a actividade de uma ampla gama de proteínas no grão relacionadas com um tipo de asma associado à inalação de farinha, conhecido como “asma do padeiro”.
Além disso, percebeu-se que os genes relacionados com a doença celíaca estão activos no endosperma, a parte do grão que é fonte da farinha. “Com toda esta nova informação, sabemos exactamente quais os genes do glúten que estão a causar reacções alérgicas, dando-nos uma ferramenta para remover ou modificar as sequências que codificam essas proteínas”, diz Odd-Arne Olsen, adiantando que isso poderá ser feito através de edição genética ou do melhoramento convencional de plantas para que se criem variedades menos alérgicas.
Mas tudo isto parece ser só o começo. Por agora, a equipa do IWGSC irá fazer uma versão do genoma destinada a cientistas e a quem quiser desenvolver novas variedades para melhorar o trigo. E mais projectos virão, como sequenciar outras variedades de trigo para que se represente toda a diversidade do mundo. Será este apenas o início de uma nova jornada do trigo?