Saltar à corda é um desporto e os Molinhas pulam com o mundo
O rope skipping não enche estádios, não esgota bilhetes e ainda não é federado em Portugal. Quem pratica o desporto, fá-lo “por gosto” e diz que “não é só saltar à corda”. Os Molinhas, de Guimarães, já trouxeram para casa medalhas, taças e recordes mundiais e europeus.
Acompanhar uma conversa deste grupo de atletas é tentar descodificar palavras e siglas. Não é que seja um dialecto nunca ouvido, mas, para leigos, é um mundo novo. “Cali, faz um 'kamikaze' de espargata”, pede Irene. “Ai, não sei se consigo!”, duvida. Mesmo de férias, e sem treinos em Agosto, consegue fazer as duas espargatas ao mesmo tempo que roda a corda sobre si. De seguida, exemplifica mais uns quantos truques, sem falhas. Pouco antes, Irene saltava tão rápido que a corda parecia formar uma espécie de bolha.
Uma prefere a liberdade do freestyle, a outra a exigência das provas de velocidade. Ambas são atletas de uma modalidade pouco conhecida por cá: o rope skipping. Junte-se às duas mais 60 jovens e crianças e temos o Clube de Rope Skipping das Taipas (o nome da vila onde foram formados, nas redondezas de Guimarães), mas desde 2009, data da sua formação, que toda a gente os chama Molinhas.
Tanto Irene Miranda como Cali — alcunha de Catarina Guimarães — passaram metade da vida a fazer isto: têm 20 anos. Uma década depois, explicam os bons resultados que agora se vêem: “É um conjunto de muito treino, empenho, dedicação e força de vontade.” E "de persistência porque há truques que demoram a aprender”, acrescenta Paulo Lima, de 19, a treinar há nove. O jovem atleta detém o recorde da Europa de maior número de saltos dados em 30 segundos: foram 206 pulos. Para além disso, lidera também a tabela da mesma prova de velocidade, mas durante três minutos — 486 saltos. É consistente nas diversas categorias apresentadas no treino que o P3 visitou. “Só faltou [praticar] a minha coreografia, que é ao som da ***Flawless, da Beyoncé”, conta. Explica ainda como funciona: “Temos de seguir a batida ou alguma variação da canção.” A cada flawless cantado, bate com a mão na coxa para marcar o ritmo. Percebido.
Rope skipping é saltar sem fronteiras
O resto da equipa também é de elite, não tivessem os Molinhas saltado para o campeonato mundial deste ano, na Flórida, EUA, para de lá trazerem dezenas de prémios. Para além das 42 medalhas nas pré-eliminatórias e das dez taças nas grandes finais, sagraram-se campeões mundiais de “equipa em corda individual” — um feito alcançado por Paulo, David Silva, Fernando Ferreira, João Vieira e João Rodrigues. O primeiro João, que tem 17 anos, prefere ser conhecido por Xavi para o distinguirmos do outro, o Rodrigues, de 18. A “química” que apontam ser fundamental para o sucesso foi construída a partir de 2010, ano em que entraram nos Molinhas. A mais nova é Anita Lopes, com 15 anos, que começou muito cedo, aos oito, “num clube de Braga”. Chegou às Taipas este ano. Todos fazem parte do último escalão da modalidade, os masters, que inclui atletas dos 14 anos para cima. Também há os minis, os benjamins e os infantis, com crianças dos cinco aos dez. E antes da última etapa temos os youth, pré-adolescentes dos 11 aos 13.
Anita senta-se, estica as pernas e dá pequenos saltos naquela posição, deixando a corda passar. Se não é para ficar impressionado com isto, então veja-se os rapazes numa coreografia que inclui um "subway": dois atletas fazem flexões ao mesmo tempo que saltam em duas cordas, e um deles passa por cima do outro. Mais? O “mágico”, técnica em que o skipper salta ao pé-coxinho e esconde uma das mãos atrás do joelho. Há o “elefante” (braços cruzados sob a perna, posição que lembra o focinho do animal) ou o "TS", que obriga o atleta a colocar os braços em forma de T nas costas. Sempre com a corda na mão — que pode ser de aço (sim, magoa e pode deixar marcas), vinil ou ambos. Há muitos mais truques, mortais, acrobacias e quase malabarismos com as cordas, mas o melhor é vê-los em competição ou em programas de talentos (ou no vídeo ali acima).
Em Portugal, salta-se há pouco tempo
Seguindo os critérios de Ângelo Santos, professor de Educação Física, Anita entrou a tempo: “O ideal é começar-se aos cinco, mas podemos estender até aos nove”. No rope skipping não há treinador, mas sim uma espécie de preparador físico, lugar ocupado no clube por Ângelo desde 2015. “É difícil coordenar e organizar a equipa”, diz. Irene avisa: “Os treinos com o professor Ângelo são duros” e, por vezes, “duram oito horas”. No entanto, não poupa elogios ao preparador físico nem a Sandra Freitas, a professora “que se tem dedicado ao máximo ao clube desde o início”.
Segundo a Associação Portuguesa de Rope Skipping (APRS), fundada em 2011, em Braga, foi precisamente em Guimarães que se formou o primeiro grupo de professores para a modalidade. Em 2011, ano da fundação da APRS, os skippers portugueses foram, pela primeira vez, a uma prova internacional: o IDDC – International Double Dutch Championships, em Paris. Um ano depois, em Guimarães, acontecia o campeonato europeu de masters e youth.
Irene e Cali foram a Paris, mas voltaram sem prémios. “Foi a primeira competição internacional, ficámos em último em todas as categorias”, diz Irene, despachada, que agora já se ri do desaire. “Mas também serviu para aprendermos, porque faz falta ir a competições internacionais”, acrescenta Cali, referindo ainda que “há países onde isto se pratica na escola desde sempre, como os Estados Unidos”.
Saltar à corda é uma prática ancestral: já se fazia na China há mil anos. Espalhou-se pela Europa, chegou às colónias americanas do século XVI através dos holandeses (daí o Double Dutch, que remete para a prática com duas cordas) e por lá ficou. O salto de popularidade aconteceu na década de 70 do século passado, mas só 20 anos depois surgiram as primeiras organizações. A European Rope Skipping Organisation organizou o primeiro europeu da modalidade em 1991, na Bélgica. Seis anos depois, a Federação Internacional de Rope Skipping (FISAC-IRSF) apresentava o primeiro mundial, que se realizou em 1997, na Austrália. Este ano, as duas fundiram-se na International Jump Rope Union, organização que integra provisoriamente a Associação Internacional de Desporto para Todos (Tafisa), o que para Nuno Dias, da APRS, representa “o primeiro grande passo no caminho para os Jogos Olímpicos”, o “grande objectivo” da modalidade.
Se do outro lado do Atlântico este desporto tem mais apoios e reconhecimento, em Portugal a realidade é outra. O objectivo agora é chamar mais crianças para a prática da modalidade. Tem corrido bem: os Molinhas recebem “20 novos atletas a cada ano”, e, em termos gerais, “o mesmo tem acontecido noutras zonas do país”. Os clubes de rope skipping já chegaram a Lisboa, a Leiria e à Maia. Para a associação, “é importante chegar aos 500 sócios inscritos em clubes”. O número redondo representará a passagem da associação a federação, algo que traz “inúmeros benefícios a nível financeiro, de condições e de competições”.
Saltar à corda é para sempre
Quando a APRS passar a federação, a vida dos skippers ficará “mais fácil”. Quase todos os integrantes do escalão masters estudam ou estão prestes a entrar na universidade. Todos têm a mesma queixa: “As provas coincidem sempre com a época de exames, e não há dispensa nem estatuto de atleta de alta competição”, resume Fernando, com Irene, Cali e Paulo a concordarem. O mesmo para Xavi, João e David, alunos do secundário: “Num dia tivemos um exame, no outro já estávamos a ir para uma competição”, alerta João. A solução e esperança é tornarem-se atletas federados.
O caso também é complicado quanto às arbitragens: “Ninguém quer tirar o curso”, atira João Lopes, no meio do treino. É pai de Anita, vê-a a saltar e nota-se-lhe o orgulho. O espectáculo das cordas arrastou-o para a modalidade e hoje é “juiz de rope skipping a nível mundial”. “Isto é um trabalho voluntário, porque não se ganha dinheiro e às vezes é difícil”, explica. Um curso intensivo é o quanto basta para se arbitrar uma prova, mas há pouca gente disposta a tal: em Portugal, há “apenas quatro com formação para arbitrarem internacionalmente”.
Mais árbitros, mais atletas e mais apoios contribuiriam para levar as cordas aos Jogos Olímpicos. O preparador físico acha que “é possível, mas é algo que levará alguns ciclos”: primeiro, é necessária “uma demonstração numa edição futura”. Só depois o rope skipping pode tornar-se “efectivo”. Os atletas que conversaram com o P3 sabem que os Olímpicos não são para eles, mas para quem vem a seguir. Ângelo ressalva: “Podem não ir aos Olímpicos, mas todos eles foram os pioneiros da modalidade por cá”.
Cali está a começar “um clube universitário de rope skipping” a partir do Ginásio Clube da Maia. Irene e Paulo treinam em Vila Real, onde estudam, e já tentaram fazer o mesmo por lá, mas ainda não tiveram sucesso. A tentativa de Fernando, por Coimbra, seguiu o mesmo caminho. Todos querem levar a modalidade para lá do ginásio da Escola Secundária de Caldas das Taipas. Mesmo com lesões. As provas de velocidade e resistência deram a Paulo uma “nas costas e outra no joelho” — faz fisioterapia com o colega Fernando. A Cali foi-lhe diagnosticada uma escoliose dorsal há muito tempo. Já rasgou músculos inclusive, tal como João. Não é por isso que os vemos parar — aliás, eles andam sempre de um lado para o outro, corda na mão a girar e com a certeza de que sim, “isto é para se fazer por muitos anos”. Até já há um escalão para maiores de 30 anos, e é possível que os vejamos por lá, a ensinar ou a saltar — e por que não os dois?