Urge desconstruir três mitos na crise dos refugiados
Se mais financiamento fosse atribuído a programas de prevenção de conflitos, poder-se-ia economizaranualmente mais de 70 mil milhões na gestão da crise dos refugiados.
Ainda que muito ditada por solavancos mediáticos, a discussão política sobre a crise dos refugiados tem estado presente, nos últimos anos, em todos os grandes debates internacionais. Mas, fazer este debate recorrendo a uma chave de leitura incompleta, centrada na circunstância de quem, na Europa, acolhe os refugiados e não de quem é forçado a fugir dos conflitos, mais não faz do que adiar soluções estruturais e fomentar discursos populistas.
Os números não podiam ser mais chocantes: mais de 15 mil pessoas perderam a vida a tentar atravessar o Mediterrâneo desde 2014 e existem hoje mais de 65 milhões de migrantes forçados, dos quais 22 milhões de refugiados. O mínimo que podemos fazer perante aquela que é considerada a maior crise de migrações e de refugiados desde a II guerra mundial é, desde logo, falar verdade, desconstruindo mitos e olhando para as causas estruturais da crise.
Urge, desde logo, desconstruir três mitos:
Em primeiro lugar, o mito de que as crises humanitárias são efémeras. Falso. Nos últimos 40 anos, apenas uma em 40 crises de refugiados se resolveram em menos de três anos. Normalmente, estas crises (veja-se o caso do Afeganistão, Somália, Sudão e Sudão do Sul) perduram décadas.
Em segundo lugar, o mito de que a actual crise dos refugiados e das migrações forçadas resulta essencialmente do conflito sírio. Falso. Além dos cinco milhões de refugiados sírios, existem mais 17 milhões de refugiados resultantes de outras crises espalhadas pelo mundo.
Em terceiro lugar, o mito de que a União Europeia é o principal destino dos refugiados, nomeadamente, oriundos da Síria. Falso. Mais de 86% dos refugiados deslocaram-se para países em vias de desenvolvimento (em especial na África Subsariana). Isto é, são os países mais pobres, e não os países europeus, que sofrem os maiores impactos das migrações forçadas. Por exemplo, o Uganda recebeu mais refugiados (vindos do Sudão do Sul) do que todos os refugiados sírios que entraram na Europa.
Logo, temos de enfrentar a crise das migrações com outra escala temporal – para trás, analisando as causas das crises e, para a frente, dando respostas estruturais que transcendam o imediato - e com outra escala espacial, olhando além do impacto no nosso “quintal”.
Os países desenvolvidos têm, pois, de estar à altura das suas responsabilidades. Seja acolhendo e integrando, nomeadamente na UE, os refugiados que fogem de contextos de guerra e de insegurança, seja apoiando (através de programas de financiamento e de cooperação para o desenvolvimento) os países mais pobres e que são principal destino dos refugiados.
Ir além do curto prazo
A ajuda humanitária e as políticas de acolhimento e de integração são fundamentais. Sem essas respostas de emergência e de curto prazo, o desastre teria sido maior. Mas, neste artigo, quero centrar-me, a propósito do recente relatório que publicámos na OCDE - Estados da Fragilidade 2018 - numa dimensão menos mediática destas crises: as causas. De que fogem os migrantes? E o que estamos a fazer para enfrentar essas causas?
A fragilidade dos países, numa perspectiva multidimensional, é o factor que mais impulsiona as migrações forçadas. Este relatório da OCDE analisa 58 países que enfrentam cinco tipos de fragilidade - política, social, económica, ambiental e de segurança - e identifica 12 grandes tendências de fragilidade, incluindo extremismo violento, mudanças climáticas e crime organizado.
Ora, neste contexto multidimensional de fragilidade, vale a pena sublinhar as tendências relativas ao agravamento da violência e dos conflitos. Em 2017, quase 600 mil pessoas morreram vítimas de violência e 26 mil foram vítimas de ataques terroristas. Estima-se que a violência tenha um custo económico global de 14,3 biliões de dólares anuais.
Este relatório demonstra que o contexto de fragilidade global se tem agravado. Mas não nos iludamos. Tal não resulta apenas do agravamento dos conflitos e dos fenómenos de violência. As alterações climáticas, a discriminação das mulheres, a degradação de recursos naturais, os fluxos financeiros ilícitos, a crise da dívida dos Estados, as desigualdades sociais e os défices democráticos, são outros factores relevantes de fragilidade dos Estados.
Hoje, cerca de 1800 milhões de cidadãos vivem em contextos de fragilidade. Se nada fizermos, mais de 80% dos cidadãos mais pobres do mundo viverão em países frágeis, tornando ainda mais evidente a interdependência pobreza-fragilidade. O papel das políticas de cooperação para o desenvolvimento e, em especial, da ajuda pública ao desenvolvimento (APD), reforçando estruturalmente as capacidades e condições de desenvolvimento dos países mais pobres, assume um papel central no apoio a estes 58 países que enfrentam causas profundas de fragilidade.
Se é verdade que a APD tem desempenhado um papel central no apoio a estes países mais frágeis (em 2016, os doadores atribuíram a estes países cerca de 43% de toda a APD, isto é, 68 mil milhões de dólares), não é menos verdade que esta ajuda tem sido excessivamente focada no curto prazo: a ajuda humanitária cresceu 144% nos últimos sete anos; 50% da APD atribuída aos 15 países mais frágeis é de natureza humanitária e de emergência; apenas 2% da APD se destina à prevenção de conflitos e apenas 10% em esforços de construção da paz. Por outro lado, o financiamento à construção de escolas, de hospitais e de outras infra-estruturas continua atrasado.
Estas tendências não traduzem, pois, um modelo adequado de cooperação para o desenvolvimento. Todos sabemos que construir a paz, enfrentar a fragilidade e os conflitos, e promover o desenvolvimento sustentável requer investimentos significativos e de longo prazo e não apenas intervenções humanitárias e de curto prazo.
Oferecer um futuro
Embora seja muito meritória a mobilização dos países doadores em torno de iniciativas de ajuda humanitária, a ambição da comunidade internacional tem de ser maior do que manter as pessoas vivas. Temos de oferecer aos refugiados e migrantes um futuro. Se usada de forma estratégica, a APD pode ser uma ferramenta poderosa para, no longo prazo, através de políticas de desenvolvimento económico, social e ambiental, prevenir conflitos e reverter os contextos de fragilidade.
A APD é, aliás, um dos poucos fluxos financeiros nos quais as pessoas em contextos frágeis confiam, já que se mostrou resiliente a tensões políticas e crises económicas, duplicando o seu volume de 2000 a 2017, ao contrário do sucedido com outras formas de financiamento.
Sem o reforço da cooperação para o desenvolvimento nos países mais frágeis não conseguiremos alcançar, até 2030, os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, sob o lema "não deixar ninguém para trás". Sendo que investir em soluções de longo prazo também faz sentido do ponto de vista financeiro. De acordo com o Banco Mundial e com as Nações Unidas, por cada dólar investido em prevenção, pouparemos 17 dólares despendidos na remediação de conflitos. Se mais financiamento fosse atribuído a programas de prevenção de conflitos poderiam ser economizados anualmente mais de 70 mil milhões na gestão da crise dos refugiados.
No fundo, aquilo que não formos capazes de investir em cooperação para o desenvolvimento, com políticas de prevenção em contextos frágeis, combatendo a pobreza e promovendo o desenvolvimento sustentável, acabaremos por gastar, de forma ainda mais significativa, em ajuda humanitária ou no acolhimento de refugiados e migrantes. Trata-se, pois de uma alteração de paradigma: da remediação para a prevenção; da ajuda humanitária para a cooperação para o desenvolvimento.
Director da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE