Ethan Hawke em Locarno: punk rock, espiritualidade e fama

O actor de Boyhood e No Coração da Escuridão veio à Suíça mostrar a sua nova realização e receber um prémio de carreira. E falou de um percurso “encantado” que conseguiu sempre escapar aos perigos da fama e se manteve fiel aos seus valores.

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Massimo Pedrazzini/Festival de Locarno

Antes de mais nada, vamos deixar já esclarecido que Ethan Hawke não sabe se vai haver um quarto filme com Julie Delpy para juntar à série dos Antes.... “Claro que pode perguntar-me, mas não tenho resposta para lhe dar porque não faço a menor ideia", diz o actor americano a um jornalista inglês. "Há uma simetria nesses três filmes de que gosto realmente – quando o Antes do Amanhecer começa vemos um casal a discutir antes de a câmara passar para mim e para a Julie Delpy, e quando a trilogia acaba nós tornámo-nos nesse casal. Mas consigo imaginar revisitá-los de outra maneira, num outro tipo de filme.” Pausa dramática. “Sabe que quando se estreou há um par de anos o Amor, do Michael Haneke, a Julie mandou-me uma mensagem a dizer: 'Bolas, já fizeram a sequela!'".

Ethan Hawke está bem-disposto, o Lago Maggiore por trás da varanda, dúzia e meia de jornalistas internacionais (entre os quais dois portugueses) sentada em semi-círculo à sua frente numa sala luminosa do Hotel Belvedere. Hawke veio a Locarno receber o Prémio Excelência do festival suíço, galardão de honra atribuído a uma carreira que está este ano em foco, com a sua aclamada interpretação em No Coração da Escuridão, de Paul Schrader, e com a estreia da sua quarta realização, Blazebiopic de um cantor-compositor country que a história não recordou como deveria.

“Li um artigo numa revista americana que dizia que [à conta desses dois filmes] este iria ser o melhor ano da minha carreira e que eu estava a viver um momento Matthew McConaughey”, ri-se Hawke. “O Richard Linklater mandou-me uma mensagem a dizer ‘Tu não podes ter um momento Matthew McConaughey! Para que isso te acontecesse tinhas de ter tido um momento em que ninguém quis trabalhar contigo e isso nunca aconteceu!’”.

Blaze e No Coração da Escuridão foram mostrados por Locarno, a par da sua anterior realização, o documentário de 2014 Seymour: An Introduction (“Há quem tenha crises da meia-idade e compre um Porsche ou se meta nas drogas. Eu tive uma crise da meia-idade e realizei um documentário sobre um pianista octogenário”), Boyhood, de Richard Linklater, e Clube dos Poetas Mortos, de Peter Weir. Hawke fala do australiano Weir (também autor de The Truman Show ou A Testemunha) como um dos seus dois mentores – o outro foi Joe Dante (Piranha, Gremlins), que o dirigiu em Explorers. “Tive uma sorte imensa por ter esses dois como mentores no início da carreira”, recorda o actor. "O Peter Weir é um maluco total pelo cinema de autor: 'Conheces Bresson? Vá, acorda, põe-te ao trabalho, nem sabes quem é o Fassbinder!’ E o Joe está-me a mostrar O Uivo da Fera e a dizer-me como os filmes de terror, feitos com arte e amor, podem ser um cavalo de Tróia – vamos ver um filme de lobisomens que na verdade é uma história sobre os traumas do Vietname. Foge é um bom exemplo disso: venham ver um filme-pipoca à meia-noite mas vão para casa a pensar no estado das relações raciais na América.” Hawke, aliás, tem escolhido a dedo as suas incursões no cinema de género, que incluem A Purga, Sinister ou Predestinado. “Adoro o lado punk-rock de o cinema de terror não ser o que parece ser! John Cassavetes dizia que não há alta arte nem baixa arte, só bons filmes e maus filmes.”

Ainda assim: Hawke admite que é estranho receber um prémio de carreira aos 47 anos. Mesmo que a sua filmografia – em que se incluem a trilogia Antes do Amanhecer/Antes do Anoitecer/Antes da Meia-NoiteDia de TreinoAntes que o Diabo Saiba que MorresteBoyhood – sugira, de facto, uma carreira impecável, estável, de certo modo “encantada”. “Tenho tido sorte, sim, mas uma das razões pelas quais essa sorte existiu é que tentei resolver todos os meus problemas muito cedo. Quando o meu primeiro casamento acabou, que foi um dos piores momentos da minha vida, trabalhei mais do que nunca. Voltei ao teatro, que para os actores é uma grande cura, porque é incrivelmente duro e difícil. E quando colocamos tudo de nós no trabalho a humildade surge naturalmente.”

Inevitavelmente, No Coração da Escuridão, que muitos consideram ser o papel da carreira de Hawke, domina um pouco a conversa. “Quando o Paul me enviou o guião, as primeiras páginas descreviam os livros nas prateleiras do reverendo Toller. Eram todos livros que a minha mãe me tinha dado. Era como se eu tivesse sido preparado para este papel. Tive muita sorte porque os meus pais são profundamente espirituais, e não me amariam mais ou menos por eu ganhar um prémio de representação. Quando somos novos achamos isso um pouco piroso, mas quando crescemos o suficiente percebemos que a nossa própria auto-importância nos afecta negativamente. É preciso encontrar o equilíbrio entre acreditarmos em nós próprios e mantermos um conjunto de valores do qual possamos sentir-nos orgulhosos”, explica.

Hawke cita directamente um dos teólogos referidos no filme, Thomas Merton: “Nos anos 1960, ele estava já a antever a obsessão pela celebridade, as máscaras que vamos criando para estarmos em público, e a sua escrita ajudou-me a lidar com a fama. Numa das últimas vezes que estive com o River Phoenix, ele estava a falar sobre o modo como as pessoas o viam, e como era difícil perceber quem se é realmente quando se está a tentar explicar às pessoas quem não se é… Sempre que alguém nos tenta meter numa gaveta isso corresponde a algo de falso, ou na melhor das hipóteses apenas parcialmente verdadeiro. E compreendi que eu não tinha o mesmo problema do River porque sempre soube que tudo isso era falso. É preciso assumir a falsidade do mundo como um facto incontestável, não nos deixarmos deitar abaixo e seguir em frente.”

É também por isso que se sente grato por um prémio como este, mas não o toma como prenúncio de nada. “Lembro-me que o Sidney Lumet me dizia: ‘Toda a gente me quer dar um prémio de carreira mas ninguém me quer deixar fazer outro filme!’”, diz entre risos. “Portanto, por um lado sinto que não mereço realmente nada este prémio. Por outro, o Rick Linklater diz-me que isto é só uma avaliação ao meio-tempo: 'Quer dizer que chegaste a um certo patamar, não tarda nada voltam todos a dizer mal de ti e que estás acabado. Basta-te sobreviver o tempo suficiente para passares à próxima eliminatória, em que te convidam para ser presidente do júri!’”

Com a carreira que Ethan Hawke continua a ter, isso não nos parece nada difícil.

O PÚBLICO está em Locarno a convite do Festival de Locarno

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