Enquanto isto, continuamos sem pinga nos chafarizes e com cada vez menos sombra
É lamentável e vergonhoso que, excepção feita às fontes monumentais da Alameda, Praça do Império e Rossio, tudo o mais esteja porco, vandalizado e escavacado desde há 20, 30 e 40 anos, e seco.
É nestas alturas de canícula, que os peritos vaticinam como potencialmente mais frequentes com o passar dos anos, que não se percebe, nem admite, que sendo Lisboa uma cidade abastecida por um aqueduto, rematado por mil e um chafarizes e bicas, destes e destas não verta nem pinga que nos permita meter a cabeça debaixo da torneira para refrescar nem que seja a moleirinha.
Chega a ser caricato ouvir-se os responsáveis públicos recomendarem-nos isto e aquilo a propósito da presente vaga de calor e depois o que nos resta para refrescar em termos líquidos? A torneira de casa ou um copinho de (ou será com?) água a pedido no café mais próximo, quiçá pagando-o como já acontece nalguns estabelecimentos, que para oportunismos desses estamos sempre prontos.
É assim verdadeiramente lamentável e vergonhoso que, excepção feita às fontes monumentais da Alameda, Praça do Império e Rossio (era o que mais faltava que estivessem secas...), tudo o mais esteja porco, vandalizado e escavacado desde há 20, 30 e 40 anos, e seco. E ninguém faz nada para inverter a situação.
É certo que Lisboa não é Roma, nem Belas é Tivoli, nem temos por cá a arquitectura romana de Acqua Vergine, nem Bernini, mas temos Mardel e as Águas-Livres e as suas mil e uma ramificações, ainda por cima recentemente (e pomposamente) colocadas na “lista indicativa” das nossas candidaturas à Unesco, mas que continuam sem obra à vista nem se vislumbra sequer qualquer preocupação em intervir no monumento, que o dignifique para orgulho de todos, antes apenas o habitual blá-blá-blá em que somos pródigos.
E é por isso inaceitável que os anos vão passando e as entidades com responsabilidades nestas coisas (EPAL e CML acima das demais) vão continuando a assobiar para o lado, sem serem chamadas a justificar-se e, mais importante, a agir. Em vez disso, vão deixando que a quase totalidade das bicas, chafarizes e fontes existentes em Lisboa continue sem deitar pinga, quanto mais a jorrarem água para melhor suportarmos a canícula. Antes se vão mantendo cobertos de tags, roubados do chumbo e do bronze dos seus manípulos e ornamentos, com a pedra tantas vezes partida, quando não cheias de entulho e lixo, e até fezes humanas, enfim, numa desgraça completa que nos devia envergonhar a todos, mas que, pelos vistos, não envergonha.
Mais inconformado se fica ao ler relatos como o recentemente republicado acerca da canícula vivida pelos lisboetas em Julho de 1939, em que “até o burro bebeu do mesmo chafariz que os lisboetas”. É que a desculpa habitual para a água não jorrar – a insalubridade da água – já não devia pegar. Passaram-se 80 anos! Não nos digam que não há tecnologia e saber suficientes para resolver esse problema de vez e deixar correr as águas! Porque dinheiro já todos sabemos que há, basta ver a quantidade dele que é deitada diariamente ao lixo e, já agora, na água desperdiçada por aí, quando se rega e a chuva cai em simultâneo, por exemplo.
Há excepções a aplaudir? Há. Recentemente, a CML recuperou o esplendor da água e da pedra no Chafariz de Dentro, colocando inclusivamente réplicas das míticas cabeças de cavalo em bronze que terão existido há muito tempo e davam nome ao chafariz-bebedouro. E anuncia como iminente o início de empreitada semelhante para o Chafariz da Esperança (MN), para depois se fazer igual ao Chafariz d’El-Rei, este aqui envolvido numa empreitada de maior fôlego e desejada há muito: as alcaçarias de Alfama, que sendo águas são-no de facto mas muito mais quentinhas...
Só que o que tem sido feito não chega. A CML e a EPAL têm meios suficientes para abraçarem a sério a causa da arquitectura da água na cidade (parece que já nem os célebres “vulcões” da Expo jorram magma em forma de H2O...), justificando assim as menções honrosas que sempre invocam, os summits que organizam (por ex., o Congresso Mundial da Água que a autarquia organizou há pouco tempo). E têm que se entender (e, também neste particular, Lisboa não difere muito do resto do país, basta lembrarmo-nos dos casos, também envolvendo águas, da Casa da Pesca e do Farol do Bugio, por exemplo, em que as várias entidades competentes não se entendem e os monumentos definham).
Haja, portanto, vontade de quem de direito, directrizes claras, entusiasmo e empenho!
E por falar em esbanjamentos, porque também tem que ver com a resistência à canícula, que dizer do desperdício de receitas das taxas de dormida e afins que tem resultado das intervenções da CML no âmbito do programa Uma Praça em Cada Bairro? Designadamente nas muitas e variadas (curiosamente, todas iguais) soluções paisagísticas, de “trazer por casa”, diga-se, que nos impingem em cada “inauguração” e que se traduzem, regra geral, por autênticos desertos em que não só não existe o elemento água como nem sequer há sombra!
Veja-se o caso da intervenção em Sete Rios (e que tamanha contradição!), o mais recente exemplo acabado desse paisagismo da treta, de “chapa 5”, em que as árvores (e os candeeiros, já agora) são entendidas como bibelots, muitas vezes descartáveis, palitos de um imenso paliteiro inóspito, “à torrina do Sol”, qual canícula qual carapuça, porque o que interessa são os 3-D do autor da coisa.
Nessas praças em cada bairro, nada de árvores de grande porte, que são perigosas, tombam facilmente, dão sombra a mais nas casas e nos toutiços dos incautos, atraem toda a sorte de passarada, que depois faz muito barulho e conspurca tudo e que, aliada aos terríveis sucos resultantes da natural floração (que é isso?) das árvores, que se prezam de ter porte, arruínam a chapa e os pára-brisas das caranguejolas dos moradores, acabadinhas de adquirir a crédito mas com ar condicionado, que refresca tudo de forma muito melhor em tempos de canícula, qual sombra qual quê.
E pobres meninos e meninas, já não bastava terem-lhes tirado os “perigosíssimos” baloiços de vertigens memoráveis, ou os foguetões em ferro (comemorativos do Sputnik – que é isso, algum jogo de computador?), que arranhavam (Hirudoid, que é isso?) ainda mais do que a gravilha do chão (só pisos confortáveis, s.f.f, que a empresa agradece), para agora lhes recusarem a sombra das grandes árvores, isto porque lhes pode cair um ramo (são umas velhacas as árvores) em cima ou, quem sabe, a passarada pode sujar-lhes o quico e depois alguém tem que sujar as mãos para o limpar.
Lá fora são uns atrasados, a terem árvores de grande porte em parques, praças e ruas. Que perigo, senhores. Cá dentro é que somos avançados, porque já prevenimos os cataclismos e nos preparamos para a canícula...
Resumindo, é triste que, estando Lisboa rodeada de água doce e salgada, na cidade do Aqueduto das Águas Livres se tenha interiorizado como inevitável o sermos todos não sardinhas suculentas (essas reservam-se para as Festas da Cerveja, perdão, da Cidade) mas carapau seco.