“O Governo continua a gerir a ADSE como se fosse a sua quinta”
João Proença, presidente do conselho geral e de supervisão da ADSE, lamenta que o Governo não respeite a autonomia do sistema de saúde da função pública e defende que o desconto dos beneficiários deve baixar em 2019.
João Proença é presidente do conselho geral e de supervisão (CGS) da ADSE, um organismo que funciona desde Outubro do ano passado e onde têm assento os representantes dos 1,2 milhões de beneficiários do sistema de saúde dos funcionários e aposentados do Estado. A ADSE, defende, continua a ter saldos positivos significativos, mas é preciso reforçar o controlo para evitar o consumo injustificado e a facturação excessiva. E nesse processo, lamenta, os hospitais privados têm tratado mal o seu principal cliente e têm tentado adiar a tomada de decisões. O responsável também não poupa críticas ao Governo, por continuar a gerir a ADSE como há dez ou 20 anos, quando o Estado ainda alimentava o sistema — algo que deixou de acontecer em 2014. A ADSE, alerta, “vive dos beneficiários e para os beneficiários”.
De 2014 em diante, a ADSE passou a ser financiada pelos funcionários e pelos aposentados do Estado. Essa mudança foi percebida pela opinião pública ou a ADSE continua a ser vista como um departamento do Estado?
Na opinião pública há a ideia de que o Estado decide se orienta despesas para a ADSE ou para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), quando isso já foi ultrapassado. Desde o primeiro semestre de 2014, o Estado não mete praticamente dinheiro no sistema. Em 2017, por exemplo, a ADSE teve uma receita global da ordem dos 600 e tal milhões de euros e o Estado financiou dois milhões de euros respeitantes a juntas médicas. A mensagem que deve ser interiorizada é que a ADSE vive dos beneficiários e para os beneficiários; e é um sistema solidário, em que o pagamento é em função não do custo provável, mas dos rendimentos dos beneficiários.
Os beneficiários têm a noção de que é preciso evitar consumos excessivos e racionalizar a despesa?
Não há essa noção. Não há noção de que, por exemplo, há um sobrecusto brutal para a ADSE com as TAC. No ano passado, a ADSE comparticipou mais de 900 mil TAC para 1,2 milhões de beneficiários. Detecta-se nalgumas áreas sobreconsumos e comportamentos abusivos. Quando um prestador de saúde marca uma consulta sem ser solicitada — e tem havido queixas nesse sentido —, é claramente um apelo ao sobreconsumo. Há situações que têm de ser corrigidas e isso passa por haver controlo.
E não há o risco de esse controlo implicar uma redução da oferta de serviços?
Alguns prestadores de saúde têm lançado o pânico de que se estão a diminuir os direitos dos beneficiários, mas não. A grande preocupação do CGS tem sido não diminuir os direitos e não aumentar os custos para os beneficiários. Muito cuidadosamente têm-se tomado medidas de controlo da despesa, foi publicada a primeira parte das tabelas do regime convencionado [preços que a ADSE paga pelos cuidados de saúde prestados pelos hospitais e médicos com os quais tem convenções], está em fase de publicação a tabela do regime livre [preços dos médicos sem convenção] e vai avançar-se para a publicação da segunda parte da tabela do regime convencionado de acordo com as regras que o decreto-lei de execução orçamental (DLEO) definiu.
As despesas com os cuidados de saúde financiados pela ADSE estão a subir a um ritmo oito vezes superior às receitas oriundas dos descontos dos beneficiários. A sustentabilidade está em causa?
A ADSE é financeiramente sustentável neste momento. Ora, é evidente que nenhum sistema de saúde aguenta quando o aumento de despesa é de 9% ou 10% ao ano.
É preciso tomar medidas para travar esta evolução?
É preciso tomar medidas para evitar sobreconsumos [por parte dos beneficiários] e uma facturação excessiva por parte dos prestadores de saúde.
No parecer sobre as contas de 2017, o CGS recomendava que a ADSE criasse um sistema de informação e reforçasse os meios humanos para haver um controlo mais eficaz da despesa.
A ADSE continua a ter superavits significativos e um saldo muito significativo, mas é fundamental que a ADSE crie rapidamente uma unidade de combate à fraude.
Na nova orgânica da ADSE, essa unidade nem sequer está prevista.
A nova orgânica foi proposta há um ano e meio pelo conselho directivo da ADSE e o CGS nunca foi ouvido sobre essa matéria. Temos alertado que a ADSE tem de reforçar os serviços de combate à fraude e de estudos. Outra área que tem de ser reforçada é um sistema informático que permita o cruzamento de dados [com a Autoridade Tributária e com a Segurança Social, que está previsto no DLEO] e libertar os funcionários para outras tarefas.
A dívida do Estado à ADSE, reconhecida pelo Tribunal de Contas (TdC), ascendeu a 179,7 milhões de euros no ano passado. Por que razão ninguém se responsabiliza politicamente por este assunto?
Já pedimos uma reunião ao ministro das Finanças e é uma das matérias que queremos discutir com os deputados na reunião que solicitámos à Comissão Parlamentar de Saúde. São reuniões que têm de se realizar antes do Orçamento do Estado (OE) para 2019. Não compreendemos que dívidas completamente ridículas não sejam pagas, como as juntas médicas que a ADSE faz a pedido dos serviços. Há outras situações que têm de ser discutidas de um modo diferente, como a dos 57 mil beneficiários titulares da ADSE que estão isentos de contribuições por terem pensões mais baixas. A ADSE é solidária, mas há outra solidariedade que deve ser assumida pelo Estado e o CGS tem um parecer que vai nesse sentido.
Sente que o CGS é ouvido?
O conselho está a funcionar há nove meses e tem sido uma corrida contra o tempo dar pareceres sobre várias áreas propostas pelo conselho directivo. Tem havido muitos debates, mas não tem havido tempo para tudo. E, por outro lado, só agora é que o conselho directivo está completo e alguns assuntos foram sendo atrasados nos últimos meses face à instabilidade criada [com a demissão do anterior presidente Carlos Liberato Baptista]. Agora temos um conselho completo e vamos ter uma mais forte cooperação. Essa cooperação sempre existiu no passado, mas o conselho estava incompleto.
Portanto, há uma cooperação entre o conselho directivo e os beneficiários. O problema é que o Governo não responde?
Há dois problemas: um é a necessidade de aumentar a capacidade de decisão dentro da própria ADSE; o segundo é que o Governo não seja um travão e o Governo tem sido um travão.
Está a falar da abertura da ADSE a novos beneficiários?
Esse é um decreto-lei que está pendente nas Finanças, mas não só. Não foi tomada qualquer medida em relação à discriminação dos beneficiários da ADSE no SNS, não se resolve a questão das dívidas do Estado.
A que se deve essa inércia?
Tem de perguntar ao Governo.
Mas qual é a avaliação que faz?
O Governo continua a gerir a ADSE como se fosse a sua quinta e não respeita a autonomia da ADSE. A dupla tutela [Saúde e Finanças] não facilita as coisas, porque desresponsabiliza cada uma das tutelas. Já tivemos reuniões com ambas e as coisas não avançam.
Um dos dossiers que não avança é a abertura a novos beneficiários?
O Governo transmitiu-nos que tinha muita urgência na abertura da ADSE a um universo alargado de beneficiários. Em Novembro, aprovámos um parecer em que defendíamos que deviam entrar apenas os trabalhadores do Estado com contrato individual e devia ser aberto um período extraordinário de inscrição para pessoas que renunciaram ou não se inscreveram no prazo fixado. Tornámos a abordar o tema em Janeiro e, de acordo com o conselho directivo, elaborámos um projecto de diploma que foi enviado ao Governo e está parado nas Finanças. De maneira injustificada, as Finanças dizem que tem de haver primeiro o estudo de sustentabilidade, mas quando era para abrir a todos não havia problema.
Em que ponto está o estudo de sustentabilidade que o CGS está a fazer?
O estudo está em fase final e temos esperança que dê maior capacidade de intervenção ao CGS. Há uma matéria extremamente delicada que tem de ser analisada que é a dos cônjuges. A ADSE permite a inscrição dos cônjuges, desde que não descontem para a Segurança Social e não sejam beneficiários de uma pensão do regime contributivo. Esta questão não era muito analisada antes de 2015, mas com o relatório do TdC passou a ser controlada e 20 mil pessoas deixaram de ser beneficiárias, algumas com idades avançadas, o que cria grandes problemas humanos.
Outra situação que nos preocupa é a dos mais de 700 beneficiários ou familiares internados em cuidados continuados que custam à ADSE muitos milhares de euros mensalmente. Em muitos casos, justifica-se a continuação nestas unidades, noutros a solução mais adequada é um lar ou outra. A ADSE tem de avançar com cuidado para resolver essa questão.
Uma das questões para as quais o CGS tem alertado é a dificuldade de os beneficiários de algumas regiões terem acesso a médicos com convenção com a ADSE. O que é que está a ser feito para mudar essa situação?
É um tema que faz parte sistematicamente da ordem de trabalhos do CGS e até já deu origem a mudanças na direcção da área das convenções da ADSE. Tem de haver regras e critérios muito claros que tenham em atenção a qualidade, a necessidade de melhor cobertura geográfica e por especialidades e também é necessária concorrência.
Há centenas de médicos dos grandes hospitais que não estão convencionados, o que é absurdo. Não podemos aceitar que grandes hospitais recrutem médicos jovens para estarem em full time para os beneficiários da ADSE. É discriminatório e essas práticas têm de ser combatidas.
Como vê a tensão entre a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) e a ADSE na negociação das novas tabelas de preços do regime convencionado?
A tensão é normal. A APHP representa os grandes hospitais privados e a ADSE é o cliente número um dos hospitais privados. Quando a ADSE tenta introduzir mais controlo, é normal que haja tensão. O que não é normal é que a APHP assuma uma prática conflitual e de desgaste da imagem da ADSE junto dos beneficiários, em vez de querer discutir os problemas. Quando a APHP diz que não tem tido reuniões com a ADSE, é falso. A ADSE marcou várias reuniões que eles não quiseram realizar. A APHP quer simplesmente adiar o controlo, a limitação dos custos e manter práticas que consideramos inadequadas. Se não houver diálogo, a segunda parte da tabela de preços do regime convencionado vai ser publicada segundo as orientações do DLEO. Não é possível manter esta situação de conflito. Aliás, é um caso único. Qualquer empresa cuida muito bem dos seus clientes, a APHP trata mal o grande cliente que é a ADSE e isso é inaceitável.
Por que razão acontece?
Por estratégia negocial. A posição da APHP tem dificultado as decisões da própria ADSE, é um facto, e nesse aspecto está a ganhar. Mas está a perder, porque eventualmente as decisões poderão não ser as mais correctas, porque não tem havido da parte da APHP colaboração. Lamento este clima que tem sido criado, porque prejudica a ADSE e os seus beneficiários.
O facto de o anterior presidente da ADSE ter saído por causa de um alegado envolvimento num esquema de fraude quando esteve à frente da Associação de Cuidados de Saúde da Portugal Telecom prejudica a imagem da ADSE?
É evidente que não beneficia a imagem da ADSE. A nossa preocupação é ter a ADSE livre de suspeitas e é por isso que as auditorias que estão a decorrer são importantes.
O desconto de 3,5% exigido aos beneficiários devia baixar?
Acho que sim. Num momento em que a ADSE ainda tem saldos positivos muito significativos, devia haver algum sinal relativamente àquilo que as pessoas descontam. Os 3,5% também não foram muito bem calculados na altura [em 2013, quando subiu de 2,5% para 3,5%]. Devia haver uma análise conjunta sobre o pagamento dos cônjuges, a questão dos isentos e a redução das contribuições.