Uma aldeia de hoje e de ontem a ver-se ao espelho em Melgaço
Duas exposições mostram a realidade de hoje e de ontem de Parada do Monte, em Melgaço, entrelaçada com a emigração. O projecto coordenado pelo geógrafo Álvaro Domingues está integrado na programação do festival Filmes do Homem.
Daniel Maciel pega na fotografia de casamento de Isabel e sorri: “Aqui está tudo.” Na imagem, uma das que estão, desde domingo, em exposição em Parada do Monte, Melgaço, vê-se a noiva no centro de uma paisagem em que se adivinha o verde ao fundo, há espigueiros em primeiro plano e um carro vermelho de matrícula suíça atrás dela. Tudo encabeçado por um fio de electricidade que corta o céu.
Ali está o passado e o presente, a emigração que atravessa toda a vivência da aldeia, desde as décadas de 1950/60, os vestígios de um passado rural — que já não existe, defende o geógrafo Álvaro Domingues, mas já lá vamos — e o conforto trazido pela modernidade, seja através da electricidade ou do carro vistoso, símbolo do sucesso alcançado em terras distantes. No fundo, tudo aquilo que os envolvidos no projecto Quem Somos os Que Aqui Estamos?, produzido pela associação Ao Norte e coordenado por Álvaro Domingues, procurou retratar.
Lá mais para a frente, para Outubro e depois, há-de surgir um livro sobre o trabalho deste ano que o geógrafo admite não saber ainda “o que será”. Por enquanto, Parada do Monte expõe-se aos olhares de quem passar pela Casa da Cultura de Melgaço ou pela sede da Junta de Freguesia de Parada.
No primeiro local está, desde 31 de Julho, uma exposição de fotografias de João Gigante sobre a vida actual da aldeia. Durante cerca de um mês o fotógrafo andou por Parada do Monte a descobrir “a terra média”, como é apelidada pelo autarca local, por ter a particularidade de estar algures entre o rio e o monte. As imagens fruto desse trabalho mostram um espaço que não ficou perdido numa imagem distorcida de um Portugal antigo e rural. Há velhos e crianças, animais a circular pelas ruas e uma serração, coros de igreja e uma padaria cheia de máquinas reluzentes, gente sentada ao computador e tractores em que cabem o condutor e o cão que o acompanha.
Quem são, então, os que ali estão em Parada do Monte? “São eles mesmos, são o presente. Há a ideia do passado, de memória, nostalgia, mas que nos transporta para o presente: somos um presente com perspectiva de futuro”, diz João Gigante sobre o que encontrou neste trabalho.
E, se, descendo à vila, os habitantes de Parada do Monte podem rever-se no espelho do presente, nem precisam de sair da freguesia (agora União de Freguesias de Parada e Cubalhão) para olharem para a bola de cristal do passado. É aí, na sede de junta de freguesia, que está, desde domingo, uma outra exposição, com curadoria do antropólogo Daniel Maciel, feita exclusivamente da recolha de fotografias antigas dos moradores. A imagem do dia de casamento de Isabel é quase a única em que há uma figura solitária, já que a primazia foi dada às fotografias de grupo, apresentadas, propositadamente, com legendas curtas. “A ideia é estimular a conversa das pessoas que vêm cá e olham e reconhecem alguém. Não quero ser eu a falar sobre isso, mas que sejam as pessoas da aldeia a fazê-lo, porque esta exposição também é delas”, diz o antropólogo.
Álvaro Domingues diz que Parada do Monte foi escolhida como a estrela deste ano do projecto Quem Somos os Que Aqui Estamos? por ser “um caso interessante”, graças à sua situação de “terra média” (sem ligação ao Senhor dos Anéis) e também por ter “um historial de emigração de longuíssima data”.
Isso faz dela um ponto de partida perfeito para desconstruir o que o geógrafo diz ser uma ideia errada do caminho traçado pelos emigrantes portugueses como pessoas que vão para um país trabalhar durante uns anos e depois regressam à sua terra natal. “Queremos perceber este processo, porque não é nada fechado, de emigração e retorno. Há uma flutuação. O que houve aqui foi uma emigração e um espalhamento por todo o mundo. Não é nada o esquema simples que se pensa”, diz.
Para mostrar um pouco do que é esse “espalhamento”, a exposição na aldeia inclui um mapa concebido pelo geógrafo e por Ivo Poças Martins com o nome Parada do Monte e Suas Redondezas Próximas e Distantes que mostra, lado a lado, a própria aldeia e locais como Carquefou, Paris, Sevran (todos em França) ou Vaca de Barro.
No mesmo espaço há ainda um ecrã em que são projectadas as chamadas “fotografias faladas” — relatos de pessoas que foram convidadas a contar a história de uma fotografia em que aparecem. A excepção é para uma fotografia de casamento em que quem conta a história não aparece retratada. Daniel Maciel explica que, simplesmente, não foi possível resistir a pôr todos a ouvir a história contada por Maria Angélica.
É que a mulher conta que não aparece naquela fotografia de casamento do próprio irmão porque estava “de luto” pela vida de emigrante que o marido estava a iniciar. “Era normal as esposas andarem de luto quando os maridos se tornavam emigrantes e manterem-se afastadas de festividades. Quando eles regressavam, vestiam os vestidos mais alegres e floridos”, conta Daniel. A outra particularidade da fotografia é que a noiva daquele casamento de 1975 foi a primeira da aldeia a abandonar essa tradição, quando o próprio marido, irmão de Maria Angélica, também se fez emigrante.
E este é só mais um ponto num processo “multifacetado” naquela aldeia que, apesar dos socalcos verdes que a envolvem, não é um qualquer pedaço da chamada “ruralidade”, defende Álvaro Domingues. “Parada do Monte é rural? Não. Aqui vive-se da agricultura? Não, já teria morrido de fome. É uma economia assistida, de reformas, subsídios, poupanças”, diz.
O geógrafo encara o trabalho em exposição nos dois espaços de Melgaço até Outubro como “um ensaio”, que “gostava que se pudesse fazer noutros sítios”. Por isso, para já, o espelho está em Parada do Monte, mas é bem provável que se mostre a outros rostos e realidades um dia destes.