Agora? Celebremos a vida de CR95
Como no célebre filme de Capra, também sem Celeste Rodrigues o fado seria outra coisa. E bem mais pobre.
Em Maio, celebrámos com ela o fado. Hoje, despedimo-nos de Celeste Rodrigues com uma visão mais clara do que foi a sua vida, desse Fado Celeste que sublimou os fados (e foram tantos) que ao longo da vida cantou e gravou. Já aqui se escreveu que cantar, na sua idade, era uma bênção, uma bênção do fado que com ela ganhava uma sobriedade e um bom gosto dignos de nota. É certo que só depois da morte de Amália, sua irmã mais velha, ela assomou à ribalta, mas não é menos certo que tudo isso era já intrínseco à sua carreira. Reagindo à morte de Celeste, Rui Vieira Nery disse que “foi já nos últimos 20 anos, depois da morte da Amália, que as pessoas de repente olharam para a Celeste como uma personalidade autónoma, sem a sombra do nome e da fama da irmã. E ganhou, no fim da vida, um reconhecimento que tardava.”
Isso é verdade, mas é curioso ver como, muitos anos antes, essa “sombra” já era uma evidência. Leia-se isto: “[Celeste Rodrigues] não tem o lugar que merece, única e simplesmente porque não quer, porque não acredita em si própria, porque se sente ofuscada pelo nome rutilante da sua irmã Amália.” Voz de um crítico? Não, pelo contrário. Apenas a introdução a um texto de uma revista de 36 páginas inteiramente dedicada a Celeste Rodrigues e publicada há meio século, no dia 1 de Maio de 1967. A revista, intitulada Álbum da Canção (pode ser vista e lida, na íntegra, no blogue Curiosidades de Imprensa e Afins), também serve de testemunho contrário: embora Celeste fosse “o mais antivedeta que possa imaginar-se”, já nessa altura tinha sido convidada para gravar na BBC de Londres e já tinha sido filmada por Ed Sullivan (em Lisboa!) para um dos seus célebres programas na televisão dos Estados Unidos. Não só isso. Por essa altura, já actuara no Brasil, na rádio e na televisão. “Como se vê, a minha carreira é muito simples. Limitei-me a cantar o fado, especialmente em casas típicas, e em programas da rádio e da televisão”, dizia ela no longo texto da revista. Recusou convites para o cinema e para o teatro (e se ela gostava de ambos, como então dizia num daqueles inquéritos “gosta/detesta” que a revista também publicava) porque não se sentia com coragem para enfrentar as câmaras ou pisar esses outros palcos. No fado sim, estava à vontade. “Canto porque gosto de cantar”, dizia, depois de afirmar: “Reconheço que não dou a importância que devia dar à minha carreira artística.” E foi nessa dualidade que sempre viveu, com o prazer da vida e deixando de lado o peso da fama. Numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, para o PÚBLICO, em 2014, disse Celeste: “Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar.”
Não mudou. Porque, dando incessante alento às novas gerações de fadistas, manteve essa simplicidade altiva de quem nada deve mas muito sabe. Às vezes exagerando, como fez na tal revista de 1967, ao dizer isto ao entrevistador: “Ao pé de Amália, eu não sou nada. Se eu tivesse realmente talento, todos me notariam, quanto mais não fosse para comentarem: ‘Tem um certo talento’. Assim, como não tenho qualquer réstia de génio, limitam-se a dizer: ‘É a irmã da Amália’. E eu acho muito bem.” Mas a verdade é que Celeste tinha muitos talentos e isso será lembrado, justamente, por mais do que uma geração de músicos e de públicos. Portugal, que tanto celebra o seu CR7 (Cristiano Ronaldo) bem pode celebrar também a sua CR95 (Celeste Rodrigues, 95 anos) naquilo que lhe é devido. Porque, como no célebre filme de Capra, também sem ela o fado seria outra coisa. E bem mais pobre.
P.S.: Por lapso, escreveu-se "Amália, sua irmã mais nova", agora correctamente rectificado para "sua irmã mais velha" (Amália Rodrigues nasceu em 1920, três anos antes de Celeste Rodrigues).