O que nos ensinou sobre o cérebro a lobotomia numa criança
Ao fim de três anos de uma operação em que lhe removeram um terço do hemisfério direito do cérebro, uma criança conseguiu recuperar funções como o reconhecimento de rostos.
Esta é a história de um caso considerado de sucesso de uma lobotomia num rapaz com quase sete anos. Como tinha epilepsia – e os medicamentos não estavam a fazer efeito –, a criança foi submetida a uma intervenção cirúrgica. Nessa cirurgia, foi-lhe removido cerca de um terço do hemisfério direito do cérebro para que ficasse sem convulsões. Após três anos de acompanhamento (e da operação), uma equipa de cientistas liderada pela Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, revela na revista científica Cell Reports que o hemisfério esquerdo compensou perdas de tarefas visuais como reconhecer caras e objectos depois de o rapaz ter ficado sem parte do hemisfério direito.
U.D. (nome fictício dado à criança pelos cientistas) tinha quatro anos quando sofreu as primeiras convulsões. A criança ficou com epilepsia depois de ter tido um tumor benigno no cérebro. Os médicos ainda experimentaram medicá-lo e fizeram-lhe outros tratamentos para controlar as convulsões, mas nada funcionava.
Já como último recurso, decidiram fazer-lhe uma lobotomia. Dessa forma, quando tinha seis anos e nove meses, os médicos removeram-lhe todo o lobo occipital (inclui o centro de processamento da visão) e a maioria do lobo temporal (recebe os sinais visuais e auditivos). Já os restantes dois lobos do hemisfério direito e o hemisfério esquerdo ficaram intactos.
Cerca de 13 meses após a cirurgia, os cientistas quiseram perceber qual o impacto da lobotomia em U.D. Por isso, nos três anos seguintes, seguiram-no com imagens de ressonância magnética funcional e avaliaram o seu desempenho em certas tarefas visuais e comportamentais. Verificaram assim que o hemisfério esquerdo começou a trabalhar pelos dois hemisférios e a processar caras, objectos e palavras. Ou seja, o cérebro da criança agora quase com 11 anos reorganizou-se para compensar algumas funções perdidas com a remoção de certos lobos.
Contudo, ficou sem outras funções como a recepção da visão a 180 graus, o que fez com que deixasse de ver do seu lado esquerdo. “O único défice é que não pode ver todo o campo visual. Quando está a olhar para a frente, as informações visuais no lado esquerdo não são processadas [porque o lado direito recebe a informação visual do esquerdo], sendo que pode compensar isso ao virar a cabeça ou mover os olhos”, explica Marlene Behrmann, autora do artigo e da Universidade Carnegie Mellon, num comunicado da sua instituição.
“Estes resultados dão-nos uma caracterização detalhada da plasticidade do sistema visual durante o desenvolvimento do cérebro da criança.” Ao PÚBLICO, a cientista sublinha que este estudo mostra dois aspectos importantes: “Mostra que funções do sistema visual podem ser restabelecidas e quais as funções que não podem ser compensadas.”
Além disso, como é um estudo longitudinal, esclarece como se consegue acompanhar as mudanças que ocorrem no cérebro e como as tais compensações podem acontecer. “Em indivíduos normais, o hemisfério direito é em grande parte (mas não apenas) responsável pelo reconhecimento facial e o hemisfério esquerdo é em grande medida (mas não exclusivamente) responsável pelo reconhecimento de palavras. No caso de U.D., ambas as funções estão presentes no hemisfério esquerdo.”
Como está agora U.D.?
Os cientistas realçam ainda que hoje as lobotomias são raras. Esta cirurgia, mais exactamente a leucotomia pré-frontal, foi desenvolvida nos anos 30 pelo neurologista português António Egas Moniz (1874-1955) — o que lhe valeu o Prémio Nobel da Medicina de 1949, juntamente com o suíço Walter Hess. Na altura, não havia medicação para as doenças mentais. Por isso, a leucotomia propunha-se a intervir na massa branca (constituída por axónios, prolongamentos dos neurónios) no lobo pré-frontal e fazer aí pequenos cortes para que as psicoses fossem tratadas. A primeira leucotomia foi feita a 12 de Novembro de 1935.
Foi o neurologista norte-americano Walter Freeman que transformou a leucotomia em lobotomia e começou a fazê-la em grande escala nos EUA. Esta nova técnica cortava mais massa branca dos lobos pré-frontais. Ao longo do tempo, ganhou má fama devido aos efeitos secundários graves que provocava e à forma indiscriminada, descuidada e desumana com que era aplicada.
Actualmente há entre 4% a 6% de indivíduos com epilepsia em que a medicação e outros tratamentos não têm efeito. É neles que se pode realizar a lobotomia, refere Marlene Behrmann. “Desses, entre 60% e 70% [crianças] ficam livres de convulsões depois da cirurgia”, informa a cientista. E realça que a esta operação mudou desde os anos 30: “Agora o procedimento é feito com grande precisão. Fazer exames de ressonância magnética permite aos cirurgião identificar onde é a região que dá origem às convulsões.”
No caso de U.D. correu tudo bem e agora não tem convulsões. Tal como antes da cirurgia, o seu QI é acima da média e as suas competências linguísticas são apropriadas para a sua idade. Na escola, recebe terapia da visão e senta-se do lado esquerdo da sala para ganhar uma maior percepção desse lado. Marlene Behrmann diz ainda que o rapaz continua a ser acompanhado: “Vamos fazer neuroimagens funcionais e estudos comportamentais aproximadamente a cada seis meses para conseguirmos monitorizar qualquer alteração.”
A cientista reforça ainda que há um longo caminho a percorrer. “Devem ser feitos mais esforços para perceber quais são os doentes com lobotomia que mostram recuperação, quais não mostram e porquê”, considera. “Também será importante saber se os doentes são mais propensos a recuperar as funções se for removido o hemisfério esquerdo ou o direito e se o sistema visual é mais robusto nos indivíduos mais jovens.”