A avó de Aloísio “criou dez filhos, viúva, com o caçula na barriga” e nunca deixou que lhes faltasse coisa alguma. “Linda, pequena, moreninha”, tinha energia de sobra. “Acordava às duas da manhã para botar fogo no forno a lenha e fazia mais de mil bolos de arroz”, conta o neto, no seu jeito cantado de falar.
Os filhos ajudavam e, quando os bolos ficavam prontos, vinham os boleiros, filhos de conhecidas, que ela contratava para saírem, com os tabuleiros à cabeça, apregoando pelas ruas de Goiás os bolos de fubá de arroz da Ritinha de Bráulio - “Óiiá ô boloo de arroiizêêê!!!”, cantavam os rapazes.
Era por Ritinha que todos conheciam a mulher que, como se tudo isto não bastasse, ainda “subia o morro para ajudar os necessitados” e que, nas recordações do neto, “vencia, rezava e agradecia a Deus por tudo”. É essa receita da avó, com um toque mais azedo que vem do fermento de garapa (o caldo da cana-de-açúcar), que Aloísio Godinho continua a fazer quando lhe dá para vender bolos de arroz. Mas hoje viemos comer os da Dona Inês, no Mercado de Goiás, acabadinhos de sair do forno, acompanhados com uma boa chávena de café, para começarmos bem o dia.
De onde vem a tradição do bolo de arroz, Aloísio não sabe exactamente. “Pode ter chegado a Goiás dentro do aparelho azul pombinho. Tem uma lenda que diz que chegou uma receita em mandarim dentro desse aparelho de porcelana chinesa, que veio para a boda de uma família e que só mais tarde a receita foi traduzida”. E, como parece acontecer em Goiás, dos bolos passámos para as histórias e de repente fomos parar à mais famosa poeta da terra, Cora Coralina. É dela o poema que lembra a história desse serviço de loiça:
Um aparelho de jantar – 92 peças.
Enorme. Pesado, lendário.
Pintado, estoriado, versejado,
de loiça azul-pombinho.
Encomenda de um senhor cónego
De Goiás
para o casamento de seu sobrinho e afilhado
com uma filha de minha bisavó.
Se dentro vinha ou não a receita escrita em mandarim, Cora não diz. Mas os bolos quentes sabem bem e rimos ao ouvir Aloísio mostrar como se apregoam estes e outros doces, quando se leva um tabuleiro à cabeça.
Goiás, a antiga capital do estado brasileiro de Goiânia, é como uma cidade encantada, toda feita de doces e poemas.
Tínhamos chegado na véspera, ao pôr do sol, àquela hora a que luz se torna dourada e, no carro, Aloísio anunciara logo que não havia nada mais lindo do que a sua cidade. Não podemos dizer o contrário — seria faltar à verdade. Goiás esperava-nos, em sossego, sem pressa de revelar os seus encantos, sabendo que nos conquistaria logo naquele caminho até à casa onde iríamos ficar, com a pequena ponte sobre o rio, o largo da igreja onde estacionámos, a vizinha que, sentada no alpendre, esperava que pousássemos as malas, abríssemos as janelas para arejar a casa, e nos juntássemos a ela a falar disto e daquilo enquanto a noite caía serenamente.
Duas portas mais à frente, outra vizinha, Zilda Ferraz da Maia, trabalhava na cozinha em volta dos tachos de cobre, remexendo os pedaços de frutas em calda de açúcar. Voltaríamos à sua casa no dia seguinte para encontrar as bancadas da cozinha cheias de frutas cristalizadas.
Seguimos pelas ruas empedradas de Goiás e descobrimos que em cada casa há uma doceira. D. Augusta é, garantem-nos, uma das melhores. Convida-nos a entrar, atravessamos a sala de estar mergulhada numa semiobscuridade, com a televisão sintonizada num jogo de futebol, e chegamos à cozinha onde a luz entra pela janela e tudo é azáfama de produção de doces.
Do pequeno forno saem tabuleiros com os pastelinhos mais famosos da terra — há quem os compare aos pastéis de nata portugueses, mas estes são de massa areada e recheio de doce de leite. Noutro tabuleiro alinham-se, perfeitos, os limõezinhos galegos também recheados com doce de leite. Uma das especialidades de D. Augusta são as rosas de coco, costuma até ensinar a fazer a quem quer aprender, mas hoje, por acaso, não as tem feitas. Acabaremos por as conhecer à noite, num jantar em casa de Aloísio, mas já lá iremos a essa história.
Antes disso, há outras casas para visitar. A porta dos licores do Dodô está fechada, mas insistimos e Nice Souza Coelho vem abrir. É filha de Dodô, nome pelo qual era conhecido Salvador, o artesão destes licores. Nice faz um sorriso triste, diz que já ouve mal e queixa-se de ter muito trabalho e pouca freguesia, mas acede a abrir a loja e, com orgulho mal disfarçado, dá-nos a provar os licores, de jabuticaba, jenipapo, murici, pequi, figo, mutamba, caju. Nas prateleiras de madeira das paredes da loja, tudo está como no tempo do pai, os velhos pacotes de detergente Omo, as pastas de dentes, as caixas de fósforos, os cestos de verga e as estatuetas, como se alguém tivesse fechado a porta de madeira azul há muitos anos e só agora a tivesse voltado a abrir.
Cidade de mulheres
Goiás é uma cidade de mulheres e isso torna-se mais evidente à medida que a vamos conhecendo melhor. Será a presença inspiradora de Cora Coralina? Passamos novamente pelo mercado onde fica a loja das Mulheres Coralinas. Sentamo-nos numa mesa no exterior para ouvir Ebe Lima Siqueira contar-nos a história deste movimento que quis resgatar mulheres que trabalhavam como garis (varredoras de rua) ou como paneleiras (fazendo panelas e pratos em barro) ou noutros ofícios e “capacitá-las nos saberes das mãos, artesanato, bordados”, ao mesmo tempo que exploravam a poesia de Cora.
Este trabalho é também uma forma de reconciliar a cidade com a poeta, que saiu daqui em 1911, “grávida e acompanhando um homem casado”. Esse homem, o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, viria a ser seu marido e pai dos seus seis filhos (dois dos quais morreram bebés) e ela ficaria longe de Goiás durante 45 anos. “A cidade não lhe perdoou e quando voltou apenas uma família a recebeu”, conta Ebe.
Mas Cora, que entretanto assumira definitivamente o pseudónimo (o seu nome de nascimento era Anna Lins dos Guimarães), precisava de Goiás para a sua escrita e, nunca deixando de fazer doces, publicou o seu primeiro livro, Poema dos Becos de Goiás e estórias mais, em 1965, quando tinha já 75 anos. Morreu em Goiás, na Casa Velha da Ponte (hoje um museu dedicado a ela) em 1985, com 95 anos.
Aloísio ainda se lembra dos ralhetes que às vezes ouvia de Cora, quando, brincando com os outros meninos, “aprontava”, e dos castigos que tinham como objectivo fazê-lo ganhar “propósito”.
Alice Gonçalves Noronha é uma das “paneleiras” que faz parte das Mulheres Coralinas. Tem um sorriso aberto e uma boa disposição que lhe garante a juventude, apesar dos 71 anos e de uma dor nas ancas que não lhe permite trabalhar o barro como costumava. Mesmo assim, apoiada em Aloísio, vem até à parte exterior da sua casa e, junto ao forno onde coze as peças de barro, mostra como se molda uma taça e como se fazem os enfeites em redor, que parecem pequenas rosas.
“De início tinha vergonha de ser vocalizadora”, diz, do trabalho que faz com as Mulheres Coralinas. “Agora já não. Gosto muito de vocalizar e de escrever, tenho um caderno com a minha poesia, mas vocalizo mais as da Cora e as da Leodegária de Jesus, com quem me identifico muito.”
Leodegária foi outra poeta de Goiás. Era negra (como Alice) e escreveu o seu primeiro livro de poesia aos 15 anos, publicando-o em 1906, quando tinha apenas 17. Aluna do Colégio de Sant’Ana, era frequentadora do Clube Literário Goiano “com sede em um dos salões do sobrado de Dona Virgínia da Luz Vieira, uma espécie de mecenas das artes goianas”, e era amiga, entre outras, de Cora Coralina, conta a autora e investigadora Maria Clara Dunk na Revista Cajá. Nesses tempos, escreve Dunk, “nas reuniões de grupo, que incluíam festas, bailes e jantares, as convidadas usavam roupas de tecido cor-de-rosa e conversavam em francês”, criando um espaço para as mulheres numa sociedade “que não estava habituada a vê-las assumirem actividades intelectuais”.
Andamos por Goiás e parece que por trás de cada porta se esconde uma cozinha cheia de coisas boas. Em casa da Gracinha são as empadas, outra das especialidades da terra, que se alinham em tabuleiros, uns prontos a entrar no forno, outros prontos a sair. Empadas há muitas, mas garantem-nos que estas são especiais — e nós confirmamos, porque não saímos dali sem comer pelo menos duas —, sendo que a diferença está toda nos ingredientes (“a carne de porco vai para a panela com a alfavaca”, apanhada no quintal, e leva ovos, batatas, frango, ervilhas, palmito) e, sobretudo, no molho que escorre a cada dentada. “O molho é a alma da empada”, assegura Gracinha.
Mesmo depois das duas empadas, ainda (como não?) passamos pelo restaurante Braseiro, onde Ana Maria Peres mantém as panelas sobre o fogo de lenha, para que tudo vá cozinhando lentamente, ganhando sabores. Há guariroba com frango, carne de porco, almôndegas, quiabos, e vem ainda para a mesa carne de lata (preservada na gordura, tradição do tempo em que não havia frigoríficos). Tudo feito com um gosto pela cozinha que, no caso de Ana Maria, vem dos tempos em que era pequena e, como todas as meninas de Goiás, brincava de fazer quitutes, essa “cozinha de quintal, com panelinhas de barro” que às vezes não saía bem, mas que “a gente comia de qualquer jeito”.
Uma terra de açúcar
Há em Goiás, no meio de tantas delícias, uma tradição doceira muito especial: os alfenins. Não é qualquer uma que consegue trabalhar o açúcar neste ponto que o transforma numa pasta branca moldável, da qual, com a ajuda de uma tesourinha, nascem depois pássaros e outros animais em miniatura, pombas do Divino Espírito Santo e o que mais a imaginação permitir. D. Sílvia Curado é a mestra do alfenim em Goiás. Passamos por casa dela, mas está ausente da cidade, por isso combinamos voltar no dia seguinte, às oito da manhã.
A casa de D. Sílvia é um fascínio. Não há um espacinho que não esteja preenchido com alguma coisa ligada à festa do Divino. A pomba do Espírito Santo enche todas as paredes, em representações coloridas. Há bandeiras, estandartes, santos, santinhos e tantas outras coisas que não temos tempo de ver tudo porque, entretanto, D. Sílvia já aí vem, queixando-se dos problemas de saúde e pedindo para acenderem o fogão a lenha. Senta-se junto a nós e, enquanto fala das festas do Divino e explica como aprendeu a fazer alfenins, agarra num conjunto deles e vai pintando com tinta vegetal o bico dos pássaros e os centros das flores. “Quando era pequena, vinha o menino com a bandeja de alfenim, vendendo. Aí, os avós e os tios compravam para a gente”, recorda. “Mas só tinha uma senhora que fazia. Vou falar para você porque não tem muita gente que faça: é por causa das mãos, da agilidade. Essa senhora me ensinou e disse ‘modela um pássaro para mim’. Eu só lembrava da cobra, tinha ódio da cobra, mas adorava a cara do veadinho. Modelei o pássaro e foi o meu primeiro alfenim. Hoje estou com 86 anos e tem 60 anos que faço alfenim.”
Para trabalhar o açúcar “a mão não pode ser quente, tem que ser fria e tem que vigiar o tempo, quando faz frio, não adianta, você faz, tá bonito e murcha todinho”. Esta é uma tradição que, tal como as festas do Divino Espírito Santo, vem de Portugal, e, sobretudo, dos Açores, o único outro sítio onde também existem ainda mulheres a fazer os alfenins. D. Sílvia sabe disso, tem curiosidade em saber mais, mas nunca veio a Portugal e não sabe contar como esta arte chegou a Goiás.
O que sabemos é que esta é uma terra de açúcar. À tarde vamos visitar a fazenda Bom Bocado, ali mesmo à saída de Goiás, onde Domingos Francisco de Assis e o filho João cultivam cana-de-açúcar, fazem garapa, melado, rapadura e açúcar mascavado, além de um requeijão delicioso. Aprendemos a técnica, que é também uma arte: moída a cana, sai a garapa, que é posta a ferver num enorme recipiente de cobre. Vai-se tirando a espuma de cima, e espera-se que atinja o ponto certo para se deitar noutro recipiente comprido de madeira, a cuia, onde é batida até se transformar numa densa pasta caramelizada, que é depois posta em formas de madeira onde se vão formar os “tijolos” de rapadura.
Na Rocinha, outra fazenda, conhecemos Jorcelina, o marido João e a vizinha Sandra, que também fazem rapadura — de uma linda cor dourada — e farinha de mandioca. Passamos uma manhã a ajudá-los, à conversa, enquanto lavamos e descascamos a mandioca, para a triturarmos e depois prensarmos (numa prensa hidráulica inventada por João, para facilitar o trabalho) e, por fim, desfazemos para obter a farinha.
Trabalhamos como se não fosse nada, a conversa a fazer voar o tempo, enquanto João lança no ar a espuma da garapa a ferver, uma e outra vez, com o cheiro do caramelo a invadir tudo e a abrir-nos o apetite para o almoço. À tarde, só Aloísio fica a preguiçar, porque nós voltamos ao trabalho, agora para tostar a farinha, num grande tabuleiro de metal colocado sobre o fogo de lenha.
Aloísio merece o descanso porque é ele quem vai fazer o jantar na sua casa de Goiás. A ajudá-lo está Joana, que não se atrapalha com os vários tachos que tem ao mesmo tempo ao lume para fazer o tradicional arroz Maria Isabel e os acompanhamentos. Mexe um, tempera o outro, põe um pouco nas costas da mão para provar. Não há perigo, vai ficar tudo absolutamente delicioso: o arroz tropeiro, favorito dos bandeirantes que desbravavam caminhos e chegaram até Goiás, a carne seca para durar toda a viagem, um feijão com farofa, uma abóbora com jiló, o tomate em vinagrete. “Este é um jantar totalmente caipira, estamos caipiramente comendo”, diz o nosso anfitrião, nessa língua de poeta que parece ser só sua.
Aloísio ficou com os doces, os suspiros de araruta, a ambrosia e as lindíssimas rosas de coco, uma arte de criar delicadas flores, levemente coloridas, a partir apenas do coco, da água do coco e de açúcar.
No supermercado local comprámos duas garrafas de vinho português e, com elas, jantamos no jardim da casa de Aloísio, debaixo das árvores entre as quais cresce a valiosa baunilha do cerrado, por entre os cheiros doces da noite e a voz do cozinheiro-poeta a declamar a poesia de Cora Coralina, a história do soldado carajá que um trovão fez correr, tudo nu, liberto das fardas e de tudo, de volta para o rio Araguaia, as memórias dos sobrados de Goiás, as histórias contadas pela bisavó, o amor por essa cidade de “ruas estreitas,/ curtas,/ indecisas,/ entrando,/ saindo umas das outras”.
Depois de uma noite assim, como pode Goiás não ficar em nós?