A misteriosa bolsa que apoiava mulheres artistas com mais de 40 anos já tem rosto

Durante 22 anos, ninguém sabia quem estava por trás do programa Anonymous Was a Woman. A artista Susan Unterberg deu agora a cara para poder continuar a discutir a filantropia, a desigualdade de género e o apoio entre mulheres.

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A obra "Mirrored Masks" de Marisa Morán Jahn, uma das bolseiras de 2017 Marisa Morán Jahn

Há 22 anos que um misterioso programa norte-americano atribui bolsas a mulheres artistas com mais de 40 anos. Durante mais de duas décadas, o programa Anonymous Was a Woman distribuiu 5,5 milhões de dólares por 220 artistas do sexo feminino, ajudando-as a progredir. O nome por trás do programa era desconhecido até este fim-de-semana, quando a artista Susan Unterberg revelou ao New York Times a sua identidade de benfeitora. “É uma óptima altura para as mulheres falarem”, disse, e defenderem a importância da filantropia, do apoio entre mulheres e do estado da arte no que toca ao género.

O nome do programa, Anonymous  Was a Woman, é uma referência ao facto histórico de que muitas mulheres assinaram o seu trabalho criativo ao longo da história como “anónimo” para que ele fosse avaliado de forma justa — a igualdade de acesso à oportunidade e a determinadas actividades é uma constante ao longo dos séculos. É por seu turno uma referência à escritora Virginia Woolf, como explica o New York Times, e ao seu ensaio de 1929 Um Quarto Só Para Si, em que reflecte precisamente sobre o acesso à educação e o domínio masculino do mundo literário.

Em 2018, e em 1996 quando Susan Unterberg e a sua irmã Jill Roberts decidiram usar a fortuna do pai, o filantropo e magnata do petróleo Nathan Appleman, para este fim, a realidade nas artes plásticas motivou-as a agir. As mulheres artistas “não têm exposições nos museus com tanta frequência quanto os homens, não geram os mesmos preços no mundo da arte. E isso não parece estar a mudar”, resume a artista-mecenas ao New York Times.

Os números já bem conhecidos e novamente enfatizados no momento #MeToo são recuperados pelo diário – nas suas vastas colecções, os principais museus europeus e norte-americanos têm apenas 5% de obras de artistas femininas e entre 2007 e 2013, segundo dados do National Museum of Women in the Arts, só 27% das exposições de monta de cerca de 70 instituições se centraram em artistas do sexo feminino. Há semanas, foi notícia a aquisição de uma obra pela National Gallery de Londres. Não tanto por se tratar do auto-retrato a óleo de Artemisia Gentileschi, mas porque esta foi a primeira aquisição de uma obra de uma mulher em 27 anos pela conceituada instituição.

As 220 mulheres que receberam bolsas da Anonymous Was a Woman candidatavam-se às mesmas explicando o ponto em que estavam na sua carreira. As condições eram a idade acima dos 40 anos e o facto de o seu trabalho não ter sido devidamente ou sustentavelmente reconhecido pelo sector. Inicialmente, nem era precisa uma candidatura e eram contempladas com o valor da bolsa com algum mistério, como noticiava o mesmo New York Times em 1998. A idade-critério, à época, era "mais de 30 anos", mas entretanto a fasquia subiu para os 40 anos.

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All Things Bright and Beautiful Amy Sherald

Se seleccionadas, recebem 25 mil dólares. Como relata o jornal norte-americano, muitas delas avançaram rumo a importantes exposições a solo em grandes instituições ou eventos como a Bienal de Veneza ou o Guggenheim. Uma delas, Amy Sherald, recebeu a bolsa e pouco depois foi convidada para pintar o agora famoso retrato oficial de Michelle Obama. Outras vencedoras foram Louise Lawler, Tania Bruguera, Carolee Schneemann e Mickalene Thomas.

Da escultura à pintura, passando pela fotografia ou instalação, todas artistas contempladas candidataram-se em “encruzilhadas críticas” da sua carreira. O programa começou em 1996 quando outro, o National Endowment for the Arts, um fundo federal, extinguiu as suas bolsas individuais (o financiamento deste programa, entretanto, motivou preocupações da comunidade artística nos EUA aquando da eleição de Donald Trump).

Susan Unterberg manteve-se nas sombras porque, descreve-se, é uma pessoa recatada. Continuou o seu próprio trabalho como artista, foi reconhecida pela sua fotografia com aquisições para grandes museus americanos, mas quer agora, aos 77 anos e em pleno momento de debate e exposição sobre as questões da igualdade, participar com todo o seu currículo na discussão pública sobre o apoio às artes, o mecenato e os obstáculos ao trabalho das artistas.

Na esteira do momento #MeToo e no febril período após as denúncias contra Harvey Weinstein no final de 2017, uma série de artistas e responsáveis por museus pronunciaram-se sobre o assédio sexual no meio, mas também sobre desigualdade generalizada e contra “aqueles em posições de poder que controlam o acesso aos recursos e oportunidades”.

Em Portugal, e por ocasião de uma exposição das artistas activistas Guerrilla Girls em 2017, o PÚBLICO fez as contas à representatividade nas principais instituições artísticas e concluiu que da colecção de Serralves constam obras adquiridas de 814 artistas homens e 239 mulheres e que durante a direcção de Suzanne Cotter, entre 2013 e 2015 as aquisições de obras de mulheres aumentaram 40%. A colecção do Museu Berardo começou com 862 obras das quais 65 são de artistas mulheres e novas aquisições levaram a mais 230 obras de 56 artistas, dos quais 16 mulheres. Na Colecção Moderna da Gulbenkian há 268 mulheres artistas num total de 1253 artistas. Nestas e noutras instituições, o número de exposições de ou sobre artistas mulheres é minoritário.

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