“No cemitério medieval de Cacela Velha já se tratavam os recém-nascidos com dignidade”

Campo-escola reuniu arqueólogos e estudantes em Cacela Velha para um mês de escavações. Procuravam uma ermida cristã e encontraram um bairro islâmico. Para o ano voltam – será assim até 2022 - porque há ainda muita coisa que não sabem. Onde seria o porto há mais de 600 anos? Será que depois da conquista houve muçulmanos que ficaram?

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Escavação da sepultura cristã de uma mulher Maria João Valente
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Vista geral da escavação no início dos trabalhos Maria João Valente
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Estudantes portugueses e canadianos participaram nos trabalhos Maria João Valente
Rocha ígnea, Solo
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Pormenor da escavação. Nível de derrube das casas islâmicas (telhas, potes, muro) Maria João Valente
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Escavação de sepultura cristã junto a um muro islâmico Maria João Valente
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Sepultura de um homem jovem com cerca de 1.80 m Maria João Valente
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Foto geral da escavação do Poço Antigo perto do fim dos trabalhos Maria João Valente
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Maria João Valente (à dta.)
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Fragmento de cerâmica decorada do período almóada Maria João Valente
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Vista geral da escavação do Poço Antigo no início dos trabalhos Maria João Valente
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Sistema de canalização de uma rua Márcio Beatriz
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Pormenor do desenho da Sepultura 57 Maria João Valente
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Cristina Tété Garcia Barb Winter

Poucas escavações terão uma vista tão deslumbrante como a de Cacela Velha. Desce-se o caminho estreito e empedrado que passa junto ao terreno onde a equipa de arqueólogos e estudantes de Arqueologia trabalha desde as primeiras horas da manhã e ganha-se de imediato a ria, depois a estreita língua de areia da ilha que a separa do mar e onde se chega a pé na maré vazia. Em frente está a água, à esquerda sepulturas cristãs e vestígios de ruas do antigo bairro islâmico, à direita a fortaleza cujos baluartes resistem a custo à erosão da costa e as casas, quase todas de veraneio, desta povoação que é hoje muito mais pequena do que era há mais de 600 anos.

Cacela Velha, transformada de meados de Junho a meados de Julho num campo-escola arqueológico com universitários portugueses e canadianos e até alunos do secundário de Vila Real de Santo António, é um livro de história que ainda tem páginas em branco e que um novo projecto de investigação, Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: Território e identidades em mudança, quer ajudar a escrever, dando continuidade a trabalhos ali realizados em 1998 e 2001.

A câmara de Vila Real de Santo António, a que a pequena povoação pertence, é um dos parceiros deste projecto que inclui a Universidade do Algarve (UAlg), onde Maria João Valente é professora, e a Direcção Regional de Cultura (DRC), que tem nos seus quadros Cristina Tété Garcia, ambas coordenadoras da equipa de investigação que até 2022 vai procurar determinar, entre outras coisas, quão antiga é a ocupação islâmica de Cacela, onde ficaria o seu porto ou a necrópole muçulmana, e que mudanças houve na alimentação dos seus habitantes ao longo dos tempos.

Este ano a campanha arqueológica concentrou-se no cemitério medieval cristão e numa área contígua. A equipa composta por 35 pessoas, incluindo investigadores e alunos da UAlg e da Universidade Simon Fraser, do Canadá, procurava vestígios da antiga ermida de Nossa Senhora dos Mártires, que antecedeu a igreja medieval (século XIII) que seria edificada dentro de muros e sobre as ruínas da qual seria erguida, em 1518, a actual matriz de Cacela Velha, reconstruída no final do século XVIII, depois de ter sido seriamente afectada pelo terramoto de 1755. No entanto, no local onde previam encontrar o antigo templo, os arqueólogos acabaram por pôr a descoberto o bairro islâmico que terá sido abandonado antes da conquista cristã (1238-40) e que, depois, terá dado lugar ao cemitério, usado até ao século XV ou XVI.

“Contávamos que junto ao cemitério cristão, que já tinha sido escavado em anos anteriores, estivesse a ermida, mas demos com vestígios daquilo que acreditamos ser o bairro portuário fundado no início do período almóada [século XII]”, diz Maria João Valente, admitindo que, tendo em conta os materiais encontrados, aquele sítio arqueológico é muito mais complexo do que à partida pensavam. 

Dada a sua situação geográfica, Cacela era uma zona de tensões, de avanços e recuos durante a conquista, explica. O que hoje se sabe sobre o bairro, ainda muito pouco, pode ser um reflexo dessa condição de fronteira: “Sabemos que foi planeado porque as casas estão distribuídas por socalcos, organizadas, e são muito parecidas umas com as outras. Também não foram reconstruídas nem aumentadas, o que pode querer dizer que não foi ocupado durante muito tempo.”

Abandonado em época ainda a determinar, foi depois ocasionalmente ocupado por grupos mais pequenos, não se sabe ainda se árabes ou já cristãos. Deixa de ser usado de todo para sobre ele se criar o cemitério medieval por volta de 1260-80, estimam os investigadores. “Se viermos a confirmar esta cronologia, o bairro desaparece logo 20 ou 30 anos a seguir à conquista”, defende Valente, acrescentando que hoje já se conhecem duas ruas do bairro islâmico e que essas apontam para uma terceira que, muito provavelmente, iria dar ao porto, que não foi ainda localizado, mas que não deverá ficar longe.

O caminho que hoje leva a praia atravessa o bairro, assim como a necrópole cristã. “Hoje acreditamos que o porto seria mais próximo da desembocadura da ribeira e não a meio da lagoa. Mas só saberemos daqui a anos. Para já, estamos concentrados neste espaço junto à fortaleza. Queremos saber onde começa e acaba a necrópole cristã e descobrir onde é a islâmica. Queremos determinar a arquitectura do bairro muçulmano, que terá sido criado com um destes objectivos ou mesmo os dois: servir o porto e acolher a população crescente, que já não cabia na alcáçova [fortaleza ou castelo].”

Apogeu islâmico

Os primeiros a estabelecerem-se neste território de Cacela Velha de forma consistente foram os romanos, que a usam como base militar, embora alguns defendam que já antes era ponto de passagem para navegadores cartagineses e fenícios. Foi no período islâmico (a partir de 713), no entanto, que se tornou mais importante, começando a decair já no final da ocupação muçulmana, perdendo desde então dimensão e habitantes até se transformar no que é hoje — uma pequena localidade à entrada da Ria Formosa que não esquece o seu passado muçulmano e onde vivem dez pessoas.

“As primeiras populações islâmicas que chegam a este território, no século VIII, são muito rudimentares, pequenas e pobres. Fixam-se em terra. Só no século X se dá um povoamento sistemático do litoral, aproveitando locais onde os romanos já tinham estado”, explica Cristina Tété Garcia, que com Maria João Valente lidera a equipa no terreno, lembrando que a fortaleza da povoação foi das últimas a serem conquistadas pelos cristãos. “Afonso III tem dificuldade em encontrar pessoas que quisessem fixar-se neste território depois de expulsos os muçulmanos porque é uma zona que fica longe de tudo”, diz. Acaba por entregar Cacela à Ordem de Santiago, que muito nela investe, embora já quase nada reste das obras que ali manda fazer.

Melhorada ao longo de séculos, a fortaleza, tal como a igreja matriz do Renascimento, teve de ser reconstruída pós-terramoto de 1755. É pequena, tem uma planta em forma de estrela e dois baluartes sobre o mar. “É urgente este trabalho porque temos medo do que a erosão pode fazer a estas zonas – ao que já conhecemos e ao que ainda está enterrado, como o porto. Mesmo a fortaleza enfrenta riscos sérios”, garante a arqueóloga, apontando para a arriba onde está implantada.

SUBTÍTULO

Os alunos que este ano trabalharam no campo arqueológico de Cacela Velha dedicaram boa parte do seu tempo ao cemitério cristão que, de acordo com os documentos históricos, terá sido usado até ao século XVI. A forma como os corpos são depositados – em covas escavadas na terra e sem caixão – leva as arqueólogas a suporem que as pessoas ali sepultadas não seriam de uma condição social elevada. “Encontrámos 11 novas sepulturas humanas [em campanhas anteriores tinham já sido identificadas 56] – e uma curiosa, de um gato – e só numa havia um caixão. Nele estava um esqueleto que tinha ao pescoço um pendente com uma concha de vieira, o que nos faz levantar a hipótese de se tratar de um cavaleiro da Ordem de Santiago”, diz Maria João Valente, explicando em seguida que há sepulturas com mais do que um corpo e que só o estudo das ossadas determinará ao certo o número de indivíduos.

Este estudo — serão feitas datações por radiocarbono e análises paleogenéticas, entre outras — permitirá ainda saber se as populações ali residentes eram daquele território ou se chegam do Norte com a Ordem de Santiago, que tipo de relação de parentesco tinham aquelas pessoas, de que é que se alimentavam ou de que doenças morriam.

Analisar estes esqueletos, e os que vierem a surgir depois de localizada a necrópole islâmica, vai trazer muita informação sobre os habitantes logo a seguir à conquista. Será que os muçulmanos desaparecem todos daqui ou há muitos que ficam e se misturam com os colonos cristãos? “Isso não sabemos ainda responder, mas podemos dizer, pelos esqueletos que já levantámos, que há uma mortalidade infantil relativamente elevada e que neste cemitério medieval cristão já se tratam os recém-nascidos com dignidade. Encontrámos duas sepulturas de crianças acabadas de nascer ou mesmo de fetos e os corpos foram ali deixados com todo o cuidado.” Isto numa época em que a mortalidade infantil é muito elevada, lembra a investigadora da UAlg, e “a maioria dos recém-nascidos era deitada em fossas ou valas comuns”.

Para o ano, o plano para o campo-escola de Verão está já definido: escavar com mais detalhe o bairro islâmico, onde viveriam pessoas que se dedicavam ao mesmo tempo à agricultura e à apanha de peixe e de marisco, e procurar a necrópole muçulmana. “Queremos trabalhar os vivos e os mortos”, resume Valente, admitindo que a principal preocupação é agora o financiamento do projecto, orçado em cerca de 300 mil euros (para o período 2018-2022).

Os custos do trabalho de campo da equipa portuguesa (40 mil euros), composta por 15 pessoas, estão já assegurados pela câmara de Vila Real de Santo António, mas é preciso reunir o dinheiro que falta para as análises de laboratório essenciais ao estudo dos materiais, para o restauro das peças e para a divulgação (criação de um centro interpretativo em Cacela Velha e eventual musealização de uma das casas do bairro). “Divulgar é fundamental para que se possa partilhar o que aqui se descobriu. Estamos a candidatar-nos a projectos nacionais e internacionais e temos também parcerias com outras universidades. Os alunos canadianos voltam só em 2020 mas, tal como este ano, asseguram os seus custos.” Vêm para mais umas férias de trabalho em que a aprendizagem traz pelo menos dois bónus com que poucos podem rivalizar – a luz e o mar de Cacela Velha.

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