Inspectora que teve conta offshore ficou a salvo de infracção
Inspecção de Finanças recusou mostrar inquérito pedido à PGR na sequência do caso Swissleaks e só divulgou conclusões depois de o PÚBLICO recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.
A inspectora de Finanças que em 2015 foi descoberta nas listas secretas de antigos clientes do banco HSBC na Suíça, por anos antes alegadamente ter tido uma conta associada a um offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, ficou a salvo de punição disciplinar na Inspecção-geral de Finanças (IGF) porque o instrutor de um inquérito pedido à Procuradoria-Geral da República (PGR) considerou não haver, à data, violação do interesse público, nem dos deveres especiais a que os inspectores de Finanças estão vinculados através do seu Código de Ética.
A inspectora em causa, Filomena Martinho Bacelar, é quadro da IGF, serviço público a quem cabe assegurar o controlo estratégico da administração financeira do Estado, e nos últimos anos, já depois das revelações do Swissleaks, tem contado com a confiança do inspector-geral, Vítor Braz, para continuar a chefiar as equipas de auditoria dos contratos das Parcerias Público-Privadas (PPP) e das concessões. Uma opção que já motivou queixas ao ministro das Finanças, mas que Vítor Braz respalda nas conclusões do inquérito administrativo pedido à PGR.
O magistrado do Ministério Público que instruiu o inquérito, além de analisar os dados bancários e fiscais de Filomena Martinho Bacelar, ouviu os inspectores da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) que investigaram os portugueses apanhados nos ficheiros do Swissleaks, onde também eram referenciados dois familiares directos da funcionária.
Foi possível confirmar esses factos depois de o PÚBLICO apresentar uma queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) pelo facto de a IGF se ter recusado a dar acesso ao inquérito elaborado pela PGR.
Depois de em 2017 dar conta aos seus leitores de que a inspectora continuava a auditar as PPP, o PÚBLICO requereu em Janeiro de 2018 acesso ao inquérito que está guardado na IGF, mas a inspecção liderada por Vítor Braz recusou divulgá-lo, o que obrigou o PÚBLICO a apresentar uma queixa naquela comissão contra o ministro das Finanças (a quem formalmente foi feito o requerimento, uma vez que a IGF, organismo com autonomia administrativa, está na sua directa dependência).
A CADA viria a dar parcialmente razão ao jornal, ao recomendar ao ministério que revesse a sua posição e divulgasse as conclusões cortando apenas a parte da informação com “matéria reservada”. Até aí, a IGF sempre se recusara a dar acesso ao inquérito completo; e nas respostas dadas ao PÚBLICO sobre o assunto cingia-se a garantir que a PGR analisara todas as questões relevantes e todo o enquadramento normativo. E citava apenas 24 palavras do que dizia ser a conclusão do inquérito.
Dados sigilosos
O PÚBLICO começou por pedir acesso ao inquérito da PGR, dirigindo um requerimento ao ministro das Finanças a 10 de Janeiro deste ano. Primeiro, a IGF negou acesso invocando como razão o facto de o documento conter dados pessoais e elementos protegidos por sigilo fiscal e bancário. Perante a resposta da IGF, foi preciso fazer um novo requerimento, pedindo cópia do inquérito expurgado dos dados sujeitos a sigilo. E uma vez que a IGF também referia que as conclusões “relativas à actividade da IGF” eram “matéria passível de divulgação” e que elas já tinham sido tornadas públicas, o PÚBLICO pediu ainda cópia dessas conclusões.
De novo a IGF viria a recusar acesso a este novo requerimento: ignorou o pedido de acesso ao processo expurgado de dados sigilosos; e relativamente ao segundo pedido (acesso às conclusões), insistiu que o processo da PGR tinha analisado “todas as questões relevantes e todo o enquadramento normativo (interno e externo) dos factos, tendo essa entidade externa e independente concluído expressamente que: (…) ‘nada existe do ponto de vista legal que obste ao pleno exercício da lic.ª Filomena Moutinho Bacelar das atribuições inscritas no seu estatuto profissional”. Ressalve-se que o nome correcto da inspectora é Filomena Martinho Bacelar (e não Moutinho Bacelar) e que, mais tarde, já com as conclusões em mãos (três páginas A4), foi possível verificar que o inquérito faz referência a “estatuto funcional” (em vez do “estatuto profissional”).
Ainda antes de tomar uma decisão por causa da queixa do PÚBLICO, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos ouviu o Ministério das Finanças e este apresentou os seus argumentos para justificar o facto de a IGF não permitir ao PÚBLICO o acesso ao documento.
Foi aí que o gabinete de Centeno afirmou: “Estamos a falar de um documento/processo que não foi elaborado pelo Ministério das Finanças e que está disponível apenas em papel, o qual contém vários suportes electrónicos anexos em envelopes fechados e tem quase 300 folhas, entre documentos com identificação de contas bancárias, dados fiscais e pessoais; expediente diverso e autos de declaração de diversos funcionários da Administração Tributária e Aduaneira responsáveis, ao tempo, pela investigação do designado ‘caso Swissleaks’, o qual estará em investigação pelo Ministério Público”.
Argumentou o Ministério, em apoio da IGF, que, perante a complexidade dessa informação, “o trabalho de análise dos elementos reservados/confidenciais deste processo teria de ser efectuado por inspectores e os elementos a expurgar representariam um elevado volume de informação, tarefa que implicaria, objectivamente, ‘um esforço desproporcionado’ que ultrapassa a simples manipulação dos documentos, com escassos resultados em termos de dimensão e compreensão do texto final a disponibilizar”.
Deveres dos inspectores
A abertura do inquérito fora anunciado a 12 de Março de 2015 quando a TVI trouxe a público revelações do Swissleaks. E na altura a IGF dizia ter pedido o inquérito, “apesar de se tratar de um assunto do foro familiar sem relação” com a actividade profissional da inspectora. Entre outros factos, a TVI noticiara que a alegada conta na Suíça estava associada ao offshore Bordel Investment Holding Limited, sediado nas Ilhas Virgens Britânicas. Instada pelo PÚBLICO a esclarecer se a investigação da AT já está concluída, Filomena Martinho Bacelar não respondeu em tempo útil ao pedido de esclarecimento enviado para o gabinete de imprensa do ministro das Finanças.
Para já, o acesso às conclusões permitiu perceber que o inspector do Ministério Público refere que “as consequências penais de uma conduta censurável ao primeiro nível [a nível criminal] sempre poderiam ressoar no plano disciplinar, por violação de qualquer um dos deveres gerais” dos trabalhadores em funções públicas, como o interesse público, o dever de lealdade ou deveres especiais da função de inspecção.
Nesses deveres especiais, afirmou o instrutor do inquérito, têm especial importância as obrigações previstas em quatro pontos do Código de Ética da IGF. Nenhum dos princípios destacados corresponde, porém, àquele em que se diz que “os trabalhadores devem agir sempre com integridade e acima de qualquer suspeita, evitando colocar-se em situações que, da sua actuação ou comportamento, possa resultar um juízo público que coloque em causa quer a credibilidade da IGF, quer a sua própria honestidade”. O código prevê ainda, na sua introdução, que aos funcionários da IGF se “impõe que, no exercício da sua actividade, ou fora dela, assumam e difundam uma cultura ética e um sentido de serviço público, com vista a assegurar e fomentar uma imagem de responsabilidade, independência e integridade, valorizando, deste modo, quer a qualidade, rigor e credibilidade do serviço público prestado, quer o perfil dos trabalhadores enquanto activo mais valioso da IGF”.
Afirma o instrutor do processo que “apreciada isoladamente a conduta [da inspectora] sempre se nos depara no momento actual [Julho de 2015] como insusceptível de valoração disciplinar com fundamento em insuficiência notória de indícios de infracção dessa natureza”, isto é, de ter havido uma violação dos deveres do trabalhador em funções públicas. A referência do magistrado à expressão “no momento actual” é importante, por uma razão: a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas dita que uma infracção disciplinar “prescreve no prazo de um ano sobre a respectiva prática” e só quando consubstancia também uma infracção penal é que se aplicam os prazos “estabelecidos na lei penal à data da prática dos factos”.
Por isso o magistrado escreve neste inquérito a Filomena Martinho Bacelar: “Caso em que a oportunidade de exercício da acção disciplinar, legalmente respaldada nos prazos prescritivos estabelecidos pelo artigo 178.º,1 (segmento final) Lei do Trabalho em Funções Públicas, encontraria acolhimento nos coetâneos prazos de prescrição do procedimento criminal que a moldura penal da conduta censurável viesse a preconizar”. Daí que, na vertente disciplinar, a conclusões do magistrado do Ministério Público sejam as de que, “actualmente [2015], com os dados disponíveis e com o enquadramento urdido, nada existe do ponto de vista legal que obste ao pleno exercício [da inspectora] das atribuições inscritas no seu estatuto funcional”.
Acção em tribunal
Foram estas as justificações completas que a IGF demorou a aceitar revelar. Do primeiro pedido de acesso ao inquérito à autorização para obter cópia das conclusões passaram quase seis meses. A CADA viria a 22 de Maio a não acolher os argumentos do PÚBLICO quanto ao acesso à totalidade do inquérito (considerou que a destrinça do inquérito para proteger os segredos bancários e fiscais ultrapassaria a simples manipulação de documentos), mas deu razão ao PÚBLICO relativamente à divulgação das conclusões, recomendando que a IGF as fornecesse retirando apenas as referências com “matéria reservada”. Argumentos: “Pode haver efectivamente determinados dados ou elementos das conclusões abrangidos pelo sigilo fiscal, bancário ou de outra especificada reserva, mas isso não leva a que praticamente todas as conclusões devam ser retiradas; apenas o que se refere a essas matérias é que poderá ser alvo de expurgo”.
Não bastou, porém, a posição da CADA para que a Inspecção-geral de Finanças comunicasse a sua decisão final fundamentada no prazo de dez dias previsto na lei. Foi preciso o PÚBLICO voltar a lembrar a decisão da CADA a 8 de Junho. E só na sequência disso o gabinete de Mário Centeno faria um ofício, a 25 de Junho, a dar ordem a Vítor Braz para que a IGF respondesse “directamente”.
Entretanto, ainda antes de a inspecção enviar uma carta ao PÚBLICO a afirmar, já no início de Julho, que o documento se encontrava disponível para ser levantado, e face à ausência de resposta, o PÚBLICO viu-se obrigado a dar entrada a 26 de Junho com uma petição no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa para intimar o ministério a prestar aquelas informações (algo que a IGF viria a fazer ainda antes de o gabinete de Centeno ser disso notificado).