Afinal quem ganhou o Mundial, França ou África?
Os dois, responde Trevor Noah. Humorista celebrou a vitória de "África" e foi criticado pelo embaixador francês nos Estados Unidos. O filósofo Achille Mbembe também entrou na polémica.
A polémica começou no dia em que a França ganhou o Mundial. Nas redes sociais discutia-se quem tinha dado a vitória a França, já que a equipa era maioritariamente composta por jogadores negros. Das respostas, vinham comentários como "quem diz que os jogadores são africanos é racista", "quem nega a africanidade dos jogadores é racista".
O influente humorista sul-africano Trevor Noah publicou no Twitter um cartoon em que se vê um barco com refugiados a erguer a taça para a França. Um dia depois da vitória, fez uma piada no popular programa de televisão americano The Daily Show, que apresenta: “Yesssss! Estou tão contente! África ganhou o Mundial, África ganhou o Mundial, África ganhou o Mundial! Percebo que têm que dizer que é a equipa francesa, mas olhem lá: não se ganha aquele bronzeado no Sul de França. A França é a equipa de África na reserva, uma vez que Nigéria ou Senegal perdem, começamos a torcer por ela.”
A piada incendiou os ânimos e levou o embaixador francês nos Estados Unidos, Gerard Araud, a emitir um comunicado divulgado na quarta-feira, onde acusava Trevor Noah de “negar o ‘francesismo’ dos jogadores”: “Ouvi as suas palavras sobre a ‘vitória africana’ e nada podia ser menos verdade”, afirmou. “Legitima a ideologia racista que defende que a branquitude é a única definição de se ser francês.”
Na sua resposta, Gerard Araud diz que 21 dos 23 jogadores nasceram em França, embora alguns sejam filhos de pais “que podem ter vindo de outro país”. “Foram educados em França, aprenderam a jogar em França e são cidadãos franceses. Têm orgulho no seu país, França." Mas o embaixador não se ficou por aqui, aproveitou para criticar os Estados Unidos dizendo que França “não se refere aos cidadãos com base na origem racial, étnica ou religiosa”. E acrescentou: "Para nós não há identidades hifenizadas, as origens são uma realidade individual.”
A resposta do comediante, galardoado com um Emmy, foi rápida — e bem mais longa do que a piada. Lendo parte da carta com um sotaque afrancesado, Trevor Noah comenta a passagem em que o embaixador refere que a origem dos jogadores é um reflexo da diversidade francesa: “Não quero ser um idiota mas acho que é mais um reflexo do colonialismo francês.” Gargalhada.
Afirma que percebe que em França "muitos nazis usam as origens dos jogadores" para dizer que não são franceses e mandá-los para “a sua terra”. “Vindo de África, sei que os negros em todo o mundo estavam a celebrar a africanidade dos jogadores franceses num sentido positivo.” E que houve críticas a quem os chamou de africanos: “Mas por que é que não podem ser as duas coisas?”, interroga o comediante. “O que se quer dizer é que, para se ser francês, tem que se eliminar tudo o que é africano?”
No seu estilo incisivo, criticou os políticos, “principalmente em França”, quando falam de imigrantes que estão desempregados ou que cometeram um crime dizem “imigrantes africanos”; mas quando esses mesmos imigrantes dão a vitória no Mundial à França “já nos devemos referir a eles como franceses”. “Lembram-se do homem africano que foi subir a um prédio e resgatar uma criança e lhe deram a cidadania francesa? Quando estava no chão era africano, assim que resgatou a criança era francês. E se deixasse cair a criança era africano.”
Trevor Noah deixa um recado para quem o acusa de racismo: “O contexto é tudo. Há coisas que algumas pessoas podem dizer. Há uma grande diferença entre eu dizer ‘então, preto?’ e um branco dizer ‘então, preto?’ Quando digo que eles são africanos não o estou a fazer para excluir mas para os incluir na minha africanidade. Digo: ‘estou a ver-te, meu irmão, como alguém de ascendência africana'. Por isso vou continuar a celebrá-los como africanos porque acredito que os pais são de África e podem ser franceses ao mesmo tempo. Se os franceses dizem que eles não podem ser as duas coisas, então eles têm um problema, não eu.”
Achille Mbembe: "africanos não ganharam o Mundial"
Com a polémica, até o filósofo camaronês Achille Mbembe escreveu sobre o assunto num texto intitulado Tributo negro à França. Partilhou-o no Facebook, num post que introduziu dizendo que "os africanos ou África não ganharam o Mundial", mas sim a França. "As vitórias não se partilham", afirmou. "Na equipa há jogadores franceses de origem ou ascendência africana (...). É preciso reafirmar: estes jogadores de ascendência africana são franceses de corpo inteiro." Mbembe citou também Barack Obama que, em Joanesburgo, congratulou a vitória celebrando a diversidade da equipa.
No texto, Mbembe explicava: não vou fingir que "a nossa" presença na selecção não significa nada ou que não tem impacto nas grandes lutas simbólicas e políticas actuais. "Franceses de nascimento ou de aquisição, a maioria está consciente do facto de ser a manifestação viva de uma contradição da sociedade de consumo, que anseia o seu enriquecimento repentino mas não hesita em estigmatizá-los." E acrescenta: "Sabem que, de cada vez que vestem a camisola da selecção, por muito que cantem a Marseillaise até ficarem roucos, uma boa fatia da opinião — não necessariamente francesa — fará sempre a pergunta sobre de onde vêm e o que fazem ali; perguntará como é que uma nação tão civilizada pode fazer-se representar no mundo por tantos vagabundos disfarçados."
Entre os vários comentários feitos no Facebook, o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, professor na Universidade de Basileia (Suíça), enunciava "três equívocos e meio sobre a França" nos quais incluía o de dizer que "é racista reclamar a vitória da selecção francesa para a África": "Não, não é. Racismo é valorizar uma pessoa quando ela é útil para você. Para cada Pogba que joga pela França, há milhares de 'Moussas' indesejados, há dezenas de políticas viradas não só contra esses grupos como também contra quem acredita na ideia da Europa e procura refúgio lá. Racismo é continuar a tirar proveito do colonialismo ao mesmo tempo que, através de uma estrutura económica mundial desigual, continuam a comprometer as possibilidades de desenvolvimento dos outros. Porque não permitir a livre circulação de pessoas, sobretudo de todas as pessoas oriundas de países que foram colónias? Porque não? Não estaria mais de acordo com os ideais universais que eles apregoam o tempo todo? Não seria essa uma manifestação clara de que a cor da pele não conta?"