Médicos internos: “A vida aqui é puxada”
Ao longo de quatro a seis anos, os médicos internos são formados não só para a especialidade, como para lidar com o cenário duro em que se pode transformar um hospital. É agora que Vera e Teresa aprendem a conseguir voltar no dia seguinte.
Quando recém-formados em Medicina perguntam a Vera Pedro como é fazer a especialidade no hospital de Beja, a médica, a meio do internato, atira-lhes uma metáfora: “Na maioria dos hospitais centrais a máquina está a andar e vocês só têm que entrar nela. Aqui não, têm que pegar e fazer por vocês.” Aos 26 anos está no terceiro de seis anos de especialização em cirurgia geral no Hospital José Joaquim Fernandes.
Quando concorreu ao internato, tinha que escolher entre o Alentejo e os Açores. Prevaleceu o que ficava mais perto de casa, em Alcobaça. Para trás ficou também Coimbra, onde se formou, e Leiria, onde fez o ano comum – primeiro de práticas após a formação académica. A diferença é grande. “Notei mal cá cheguei que aquela expressão ‘o Alentejo esquecido’ é mesmo verdade. Temos doentes que demoram mais de uma hora a cá chegar. Os cuidados de saúde primários não dão resposta e eles chegam-nos numa fase muito avançada da doença."
Ali não é raro que uma pessoa com um cancro do estômago ou do cólon chegue pela primeira vez ao hospital quando o tumor já obstruiu o esófago ou o intestino. Já não há possibilidade de fazer um tratamento curativo e são operados de urgência. Muito se deve à falta de um programa de rastreio no Alentejo para este tipo de neoplasias e à baixa literacia médica de uma população muito isolada e envelhecida. Questões com esta – e as carências físicas e humanas do próprio hospital – mostraram-lhe um país "que não imaginava que ainda existia".
Quase todos os dias começam às 8h30 com a visita aos doentes internados. Uma ou duas vezes por semana faz 12 horas de urgência. Passa duas manhãs no bloco operatório, intercalando consultas, rondas para colocação de cateteres e o seguimento dos internados no resto da semana.
A escala dita-lhe as tarefas do dia, mas Vera é chamada pelos enfermeiros cada vez que passa no corredor do internamento com 40 camas. Ora faz um penso, ora vê um doente cujo estado de saúde se deteriorou. E é assim até que às 12h entre o colega que vai assegurar a urgência interna (o que nem sempre está garantido).
No dia em que o PÚBLICO a acompanha, é no corredor que se fazem, ao longo da manhã, as reuniões urgentes. Numa delas, Vera discute com dois especialistas a viabilidade de operar uma utente de idade avançada com um caso agudo de hemorragia digestiva.
Há dias mais agitados. Como aqueles em que faz 12 horas de urgência noturnas e continua no dia seguinte com a tarefa que lhe é atribuída. "A vida aqui é puxada. É preciso ter uma capacidade de abstracção e autodefesa danada”, diz o director clínico da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, que integra o hospital. “Quando alguém entra na urgência não imagina aquilo que já passámos antes. Não imagina que já perdemos uma criança de três anos por quem fizemos tudo o que podíamos. Ao longo de seis anos, tentamos preparar os internos, aos poucos, para tudo isto”, sublinha José Aníbal Soares.
Por esta altura, Vera está a meio de uma transição, descreve o médico, também ele cirurgião formado em Beja: à medida que se aproxima do fim da especialidade mais as suas responsabilidades se aproximam das do médico que a orienta.
Perda de capacidade formativa
No final do ano, o hospital deve começar a formar mais sete internos, todos em diferentes especialidades – o número mais baixo de vagas dos últimos três anos. E José Aníbal Soares alerta “há mais de dez anos” que a capacidade formativa vai continuar a diminuir. Motivo: 54% dos médicos têm mais de 55 anos. Em serviços como o de ortopedia, apenas um clínico conseguirá acompanhar até ao fim um internato de seis anos. Os restantes reformam-se entretanto.
Sem orientadores, não há formação, que pode ir de quatro a seis anos. “O acompanhamento de um interno é diário. Obriga o orientador a estudar, exige-lhe muita disponibilidade mental."
“Às vezes temos que ser frios. Se não não conseguimos voltar no dia seguinte.” Teresa Ferreira, interna na Unidade Hospitalar de Portimão, está há cinco anos a aprender a "mandar as noites de urgência para trás das costas", a relativizar. “Como tudo, é um caminho”, diz a médica de 34 anos, em breve especialista em medicina interna. Desde cedo que admira os médicos “na linha da frente”, os que “não vêem só o coração ou os pulmões, mas o todo”. Nem por isso a escolha foi óbvia.
Quando se candidatou, em 2013, havia vagas para todos. Não como agora, em que, à partida, 700 candidatos podiam ficar de fora. Dividida entre medicina interna e medicina geral e familiar, sabia aquilo que não queria. “O mais importante é conhecermos as nossas limitações. Inicialmente gostava muito de ortopedia até os ver a pôr um ombro no sítio. No serviço de obstetrícia, durante um parto, saiu a placenta e saí eu também”, descreve. As dúvidas dissiparam-se durante o ano comum.
Atrás da formação, foi descendo o país. Da Universidade do Porto, ao ano comum no Médio Tejo (Abrantes, Tomar e Torres Novas), até à especialidade em Portimão, próximo do local onde o marido acabava de assinar um contrato de trabalho.
Nunca se sentiu desamparada, nem mesmo quando era a única do serviço escalada para a urgência. “Se não está um especialista, está um colega no fim do internato. Há sempre alguém.” A falta de profissionais em Portimão é real, mas o “bom ambiente entre internos e o apoio” dos clínicos dilui algumas das dificuldades, acredita.
Nesta quarta-feira, dia em que o PÚBLICO visita este hospital do Algarve, nem parece Verão. A afluência às urgências é reduzida. Há várias camas vagas. “Está tudo a rolar sobre rodas. As escalas são feitas com antecedência. A de Setembro já está na forja”, assegura Luisa Arez, directora do serviço de medicina interna das unidades de Portimão e Lagos. Os internos são fundamentais para manter a máquina a trabalhar. Entre os dois hospitais são 12 para 19 especialistas, a grande maioria ali formada.
A futura internista está na recta final. Depois de deixar o hospital em Dezembro tem dois meses para escrever um relatório e em Abril faz o exame de conclusão da especialidade. Talvez por isso o seu futuro esteja mais planeado do que o de Vera. Já comprou casa e, se o hospital a quiser, ali fará carreira. Já Vera, que tem o namorado em Lisboa, tem a questão em aberto. Quando terminar o factor família pode falar mais alto e levá-la a seguir o percurso de 70% dos internos formados em Beja nos últimos anos: ir embora depois de concluir a especialidade. “Só o tempo dirá.”