Pela primeira vez a arqueologia náutica vai ter casa própria (e é perto do rio)
CNANS regressa a Lisboa até ao fim do ano. Nos próximos cinco meses há que terminar as obras e fazer a mudança para Xabregas. Reinstalação deverá custar quase 1,4 milhões de euros. Agora é urgente reforçar-lhe a equipa e dar-lhe formação.
O armazém da antiga Fábrica de Tabacos tem entrada por duas ruas — a de Xabregas e a da Manutenção. Dois pequenos pátios interiores, de um e de outro lado, servem de antecâmara a um espaço desafogado que o antigo Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS) — o tal que deixou de existir formalmente em 2007, mas que nunca saiu da cabeça nem do vocabulário de muitos dos que trabalham em património arqueológico — deverá passar a ocupar a partir do fim do ano.
O edifício está dividido em duas alas, uma das quais para o centro da náutica e ainda em obra (uma área bruta de 1800m2), a outra já terminada e destinada ao arquivo morto da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), entidade que tutela a arqueologia, e ao armazém das lojas que este organismo tem nos museus, palácios e monumentos que gere em todo o país (cerca de 1000m2).
O projecto para a readaptação deste espaço cedido à DGPC pela Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, por uma renda mensal de oito mil euros, foi apresentado esta terça-feira, durante uma visita guiada à obra, para a qual foram convidados os deputados da Comissão Parlamentar de Cultura e os jornalistas.
Luís Filipe Castro Mendes, ministro da Cultura, e o subdirector-geral do Património, João Carlos dos Santos, também autor do projecto de arquitectura que permitirá requalificar este armazém, insistiram na ideia de que, com esta instalação do CNANS em casa própria, não se dará apenas resposta a uma “justa aspiração” dos arqueólogos que tem já uma década, virar-se-á a página na forma como os bens arqueológicos vindos do meio aquático são tratados em Portugal.
“O CNANS não é um museu de arqueologia náutica e subaquática, mas um centro de recolha, conservação e estudo”, disse Castro Mendes. Depois de reinstalado, acrescentou o subdirector-geral, é necessário recentrar a sua missão, aplicando uma “política rigorosa de gestão do serviço” que lhe permita, completou o ministro, devolver os bens que já foram tratados às “comunidades a que pertencem”, deixando de ser olhado como um “depósito”.
Da periferia para o centro
Criado há 20 anos – nasceu em 1997, quando a arqueologia tinha direito a um instituto só para ela na orgânica de um ministério da Cultura que era também ele uma estreia – o CNANS mudou-se em 2009/2010 de instalações emprestadas na Avenida da Índia (onde é hoje o Museu dos Coches de Paulo Mendes da Rocha e Ricardo Bak Gordon) para o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL), em São Julião do Tojal, uma situação que deveria ter sido provisória, mas que se mantém até hoje.
A saída da arqueologia náutica deste mercado de Loures (ocupava um armazém de 3200m2 que partilhava com o já referido arquivo morto da DGPC e com o depósito das lojas) precipitou-se quando o senhorio pediu que deixasse a área que então ocupava para a arrendar a uma empresa, permitindo-lhe ficar com uma parcela até que Xabregas pudesse receber o espólio ali guardado (14 mil peças arqueológicas, muitas delas de relevância nacional e até internacional, como as pirogas do rio Lima, com mais de dois mil anos).
“Pela primeira vez o CNANS vai estar autónomo”, numa “sede própria e em definitivo”, insistiu João Carlos dos Santos, como que em resposta às muitas vozes críticas que se levantaram nos últimos meses contra a demora da DGPC em dar resposta ao abandono a que a arqueologia náutica foi votada por sucessivos governos e à situação “alarmante” (uma das muitas palavras usadas) em que o acervo se encontra desde que começaram as obras no armazém do MARL para acomodar a Science4you na totalidade do espaço que até aqui partilhavam.
A sua nova casa perto do rio – numa área da cidade em que a autarquia e os investidores privados estão a apostar, o que poderá deixar muito promotor imobiliário do mundo dos condomínios com a sensação de oportunidade perdida – terá 1800m2 (mais 300m2 do que o que o CNANS tinha no MARL, garante o subdirector) e ficará próxima das universidades onde trabalha a maioria dos investigadores que a ele recorre, em vez de estar, como até aqui, a cerca de 20km do centro da capital.
A operação de reinstalação, cuja conclusão começou por ser anunciada para Junho e depois para Outubro, está orçada em 1,4 milhões de euros: 850 mil para a obra em curso e 500 mil para a complexa operação de mudança dos bens e equipamentos, cujo concurso público será lançado “brevemente”.
Aberto ao público
O novo CNANS terá, explicou o autor do projecto, um mezanino onde ficarão instalados o centro de documentação, uma pequena biblioteca, a área administrativa e um espaço para os investigadores trabalharem. É de lá que se terá uma visão mais geral de tudo o que ficará arrumado no piso térreo, o principal: uma área com tanques de imersão (onde as peças aguardam tratamento) e outra de impregnação (fase curativa e indispensável ao processo de secagem que levará a que os materiais possam ser expostos fora de água), a instalar numa estrutura modelar em ferro que terá também espaço para reservas de materiais orgânicos e inorgânicos; uma câmara frigorífica, que não existia no MARL; uma nova estufa; um laboratório; uma máquina de liofilização (processo de desidratação que decorre numa câmara onde as madeiras são primeiro congeladas e depois aquecidas em vácuo para sublimar a água sem que esta passe pela fase líquida) recentemente adquirida por 90 mil euros; e o pórtico que permite fazer a manutenção de objectos mais pesados, que estava na Avenida da Índia e que nunca chegou a ser transferido para o MARL, porque não caberia.
Para que o novo CNANS possa vir a ser uma casa aberta ao público em geral, para além de “uma estrutura de grande qualidade para o espólio arqueológico náutico e subaquático”, segundo o ministro, contará também com uma sala polivalente para conferências, exposições temporárias e acções de formação.
A formação dos técnicos deste serviço da DGPC foi, aliás, uma das preocupações expressas esta terça-feira pela deputada comunista Ana Mesquita. A compra da liofilizadora e o regresso do pórtico exigem competências de que a diminuta equipa do CNANS – dois arqueólogos, dois assistentes técnicos e um conservador restaurador – não dispõe.
Estes funcionários, garantiu Catarina Coelho, principal responsável pela arqueologia na DGPC, receberão a formação necessária para trabalhar com os novos equipamentos, mas também para pilotar embarcações e conduzir viaturas com atrelados.
E para quando a contratação de mais pessoal, algo urgente de acordo com o Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (Starq)?
“Caminhamos passo a passo”, disse Castro Mendes, reconhecendo que é preciso trabalhar nesse sentido, mas lembrando que, já durante este processo de saída do MARL, se contrataram mais duas pessoas. Para já, o que está a ser feito é procurar, no âmbito do programa de mobilidade da função pública, arqueólogos que estejam nas autarquias e que possam ser transferidos, explicou Paula Silva, directora-geral do Património. Este processo pode ser, no entanto, moroso.
“É patente a escassez de trabalhadores especializados no serviço. Com mais de 20 funções atribuídas, com uma área superior a dois milhões de km2 para supervisionar, com mais de sete mil ocorrências patrimoniais para proteger [embora a esmagadora maioria esteja apenas referenciada em termos documentais] e com cerca de 14 mil peças arqueológicas para conservar, é impossível que o CNANS cumpra a sua missão com uma equipa tão reduzida”, escreveu recentemente o Starq.
Espólio da Lisboa ribeirinha
É preciso lembrar, têm vindo a alertar os arqueólogos nos últimos anos, que o Estado tem no seu caderno de encargos a salvaguarda, o estudo e a promoção do património náutico e subaquático que se situa em território nacional, na zona económica exclusiva (uma das maiores do mundo) e na plataforma continental. E isto sem esquecer as embarcações naufragadas nas águas de quase 60 países que, tendo pavilhão (bandeira) português, são tecnicamente território nacional (neste lote estão, por exemplo, as do sultanato de Omã).
A estas dificuldades acresce outra — a da acomodação e tratamento da torrente de materiais resultante das escavações que, nos últimos anos, têm marcado sobretudo a Lisboa ribeirinha (Campo das Cebolas e Boqueirão do Duro, por exemplo). “Não vai ser possível receber todo o espólio que está ‘à porta’”, reconhece a responsável da DGPC pela arqueologia, “mas a nossa capacidade [de acolhimento] vai aumentar porque, com esta transferência, vão ser descartadas peças [que estão no MARL] sem relevância científica.” Catarina Coelho garante ainda que os serviços estão a trabalhar com os técnicos da Câmara de Lisboa numa “política de descarte e de conservação pelo registo” que permita reduzir drasticamente o volume de materiais a guardar e a tratar.
“A partir de agora [do fim do ano] o CNANS vai deixar de ser um espaço estático. As peças vão entrar, ser tratadas e sair”, garante a directora-geral, assegurando ainda que está “para muito breve” outra transferência que diz respeito à arqueologia: o Laboratório de Arqueociências vai passar a morar no Palácio Nacional da Ajuda.
Notícia alterada às 11h05 para corrigir a distância de São Julião do Tojal a Lisboa