A guerra comercial estalou
A estratégia macroeconómica adoptada pela Zona Euro é uma estratégia “beggar-thy-neighbour”.
Os EUA têm algumas razões para se sentirem “incomodados” com os seus principais parceiros comerciais, embora não pelas razões que aponta Donald Trump. A política orçamental dos EUA tem sido mais expansionista do que a da Zona Euro e basta esse facto, em combinação com um desenvolvimento mais forte, mas não pujante, da economia americana, para contribuir para excedentes da balança corrente crescentes da Zona Euro. Entre 2008 e 2017, os EUA cresceram 31,7% em termos nominais (15,3% em termos reais) enquanto a Zona Euro cresceu 16% (5,7% em termos reais).
Devido ao crescimento mais acentuado da economia americana, as exportações da Zona Euro para os EUA têm tendência a crescer mais que as exportações dos EUA para a Zona Euro.
Porém, em contraste com o que ocorria no passado, o défice da balança corrente dos EUA caiu de 4,7% do PIB em 2008 mantendo-se entre 2,2% e 2,7% do PIB entre 2012 e 2017. Ou seja, os EUA foram capazes de estabilizar o défice da balança corrente, em percentagem do PIB, apesar de registarem taxas de crescimento económico muito mais elevadas do que a Zona Euro.
Acresce que os excedentes crescentes da balança corrente da Zona Euro, por si só, não significam que esta se tenha tornado mais competitiva que a economia dos EUA.
No entanto, a prazo, podem de facto traduzir-se em ganhos de competitividade para a indústria exportadora europeia. Por exemplo, se o crescimento das exportações da Zona Euro resultar em economias de escala crescentes e níveis mais elevados de investigação e desenvolvimento (I&D) para empresas europeias, bem como em menores economias de escala e menor I&D para empresas americanas concorrentes, então tal estratégia macroeconómica pode vir a traduzir-se em ganhos de competitividade para empresas da Zona Euro vis-à-vis empresas dos EUA.
Ou seja, a estratégia macroeconómica adoptada pela Zona Euro é uma estratégia “beggar-thy-neighbour”, mercantilista, em que se resolvem problemas internos à boleia e à custa do desenvolvimento económico e social dos parceiros comerciais, como os EUA.
Mas o interessante mesmo é constatar os efeitos da “estratégia de austeridade” da Zona Euro (ou, talvez melhor, da “estratégia de austeridade de Wolfgang Schaüble”?) que o gráfico revela.
A Zona Euro passa de uma balança corrente equilibrada em 2009-2011 de -0,1% do PIB, para um excedente de +3,5% do PIB em 2017, mais elevado do que o da China (+1,2% do PIB em 2017), com quase todos os países a registarem uma balança corrente aproximadamente equilibrada ou excedentária em 2017. A Zona Euro tornou-se “alemã”.
Afigura-se, no entanto, que a actual “guerra comercial” representa o fim desta era de comércio livre sob a égide da Organização Mundial do Comércio.
Os EUA, a potência dominante, regista significativos défices comerciais e, como se sabe, a administração Trump está insatisfeita com os actuais desequilíbrios, embora parte desse défice seja explicado pela deslocalização da produção para países estrangeiros – nomeadamente China – por parte de multinacionais americanas.
No entanto, as multinacionais americanas têm a supremacia em indústrias chave do futuro, em particular as relacionadas com as tecnologias de informação. Por exemplo, em sistemas operativos para computadores e “smartphones”, em plataformas sociais, em sistemas de análise e tratamento de enormes quantidades de dados e em patentes fundamentais para indústrias de telecomunicações móveis e outras.
A era do comércio livre, que agora parece estar a chegar ao fim, caracterizou-se por inimagináveis economias de escala com, às vezes, uma única (ou muito poucas) empresa fornecedora de produtos essenciais para a cadeia de produção global.
As ameaças de Trump, tanto em relação à guerra comercial, como em relação a um novo regime de sanções económicas contra o Irão, abriram uma caixa de pandora que tornam o actual enquadramento insustentável.
Imagine-se que Trump impunha uma tarifa às exportações do sistema operativo Windows da Microsoft ou do sistema Android da Google. Ou que impõe sanções a empresas ou países que comprem petróleo ao Irão, por absurdo, mandando a Microsoft ou a Google desligar os sistemas operativos a operar nessas empresas, ou nos governos desses países. Ou mandando desligar remotamente os aviões Boeing e Airbus adquiridos por empresas desses países. Como é que, nessas empresas e países, se pagavam salários e impostos? Como é que os bancos poderiam transferir dinheiro? Como é que se viajava?
O cenário acima é pouco plausível, mas a possibilidade teórica existe. E nenhuma grande potência económica, nenhuma multinacional não americana pode estar tão dependente, como está hoje, de decisões do Presidente Trump.
Também os EUA sentem a dependência de produtores estrangeiros em inúmeros sectores e, particularmente em resultado da importância do sector da defesa, pretendem promover o desenvolvimento de indústrias consideradas estratégicas no seu próprio país.
O caminho será os EUA promoverem o crescimento dessas indústrias e as outras potências, em que se inclui a UE, desenvolverem empresas que concorram com as grandes multinacionais americanas, sobretudo na área das tecnologias de informação e das telecomunicações.
Porém, tal ambição será dificilmente compatível com o actual enquadramento da União Europeia e da Organização Mundial do Comércio nomeadamente porque a vantagem “competitiva” (concorrencial) das multinacionais americanas é tão grande que é muito improvável que empresas do sector privado se consigam afirmar nesses sectores sem apoios públicos e sem mercados protegidos da concorrência americana.
O desenvolvimento de produtos e empresas nas áreas das tecnologias de informação que possam “competir” com empresas americanas só poderá ser concretizado com uma alteração drástica da política industrial da Zona Euro e da União Europeia. Provavelmente, exigirá estados “empreendedores”, com novas empresas públicas que invistam enormes somas ao longo de anos, registando elevados prejuízos, para desenvolver novos produtos e plataformas nessas áreas. Mas, afigura-se, que será esse o caminho mais provável.
Um caminho que se traduzirá numa redução das trocas comerciais a nível global, com menos economias de escala e porventura menor eficiência, é certo, mas com maior concorrência em indústrias chave, mais emprego qualificado e não necessariamente mais agressivo nas relações comerciais entre países… Uma nova Pax no comércio internacional?
Nota: Esta coluna interrompe durante as próximas quatro semanas.