Contar histórias sobre desenhos: os diagramas na geometria grega antiga

Ao contrário das matemáticas modernas, que giram em torno de equações, as gregas giram em torno de diagramas.

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Detalhe da Escola de Atenas, fresco pintado entre 1509 e 1511 por Rafael (1483-1520) na Stanza della Segnatura, no Vaticano. A figura com uma túnica vermelha, que está a desenhar um diagrama com um compasso, representa Euclides e, por extensão, a geometria grega antiga DR

No século III antes de Cristo, o geómetra grego Euclides escreveu os Elementos, um livro que se tornou um modelo de rigor científico pelo menos até ao século XIX. Obras aparentemente tão distantes como os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Isaac Newton (1687) ou a Ética de Baruch de Espinosa (1677) seguiram fielmente a estrutura dedutiva euclidiana. Ao contrário da maioria dos problemas matemáticos mesopotâmicos inscritos em tábuas de argila, nos quais normalmente encontramos instruções para resolver problemas práticos, os teoremas dos Elementos têm por objectivo demonstrar o que neles se afirma. Para Euclides, o importante não é apenas informar o leitor de que os quadrados construídos sobre os catetos de um triângulo rectângulo são iguais ao quadrado da hipotenusa desse triângulo, mas sim demonstrar inequivocamente que assim é, fazendo uso, e só, de alguns postulados e resultados previamente demonstrados.

Investigações recentes em história da matemática antiga revelam que, apesar de associarmos a demonstração dedutiva a um conhecimento universal, válido em qualquer tempo e espaço, o seu nascimento e funcionamento são produto de um contexto histórico, cultural e político muito específico. Mais do que perguntar-se pelo conteúdo do que dizia Euclides, o historiador Reviel Netz questiona-se sobre a forma e o mecanismo de funcionamento do que o geómetra fazia. E a sua resposta é surpreendente. Os matemáticos gregos desenvolveram e usaram basicamente duas ferramentas cognitivas para deduzir: por um lado, os diagramas, e por outro, uma linguagem padronizada. Isto é, deduzir era desenhar uma figura e contar uma história sobre esta.

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Diagrama da proposição número 21 do tratado Sobre as Espirais como está no “palimpsesto de Arquimedes”: o texto de um livro de orações do século XIII (a preto) sobrepõe-se a uma cópia do século X (a vermelho) das obras do matemático grego do século III a. Wikimedia Commons/Museu de Arte Walters/CC BY SA 3.0

Comecemos pela parte visual. Ao contrário das matemáticas modernas, que giram em torno de equações, as gregas giram em torno de diagramas. No entanto, os diagramas que os geómetras gregos traçavam na areia ou desenhavam nos pergaminhos eram muito diferentes dos modernos. Em primeiro lugar, não reproduziam fielmente de forma pictórica aquilo que representavam, mas limitavam-se a indicar as suas características topológicas gerais. Por exemplo, no diagrama da imagem aqui publicada, o que é descrito no texto como uma espiral é representado como uma sequência de arcos pertencentes a diferentes círculos, e algumas das linhas rectas representam o que no texto é descrito como arcos. Isto é possível porque, ao contrário dos diagramas modernos, os antigos não eram meramente ilustrativos. O diagrama não era autónomo e tinha um papel fundamental na lógica do argumento. A sua correcta interpretação dependia do texto, e vice-versa, facto que infelizmente fica obscurecido na grande maioria das edições modernas dos textos matemáticos antigos, que “corrigem” os diagramas para “adequá-los” ao texto.

Passemos agora à parte textual. A linguagem da geometria grega recorria a uma terminologia muito restrita e sem ambiguidades de significado, assim como a uma sintaxe codificada e repetitiva, reminiscente das fórmulas mnemónicas dos rapsodos que cantavam os versos dos poetas épicos. O objectivo era trazer à superfície a necessidade das relações entre os elementos da dedução e convencer de forma irrevogável quem aceitasse as regras deste particular jogo intelectual.

Estas ferramentas cognitivas nasceram num contexto particular que favoreceu estes desenvolvimentos e não outros: uma cultura aristocrática que via as matemáticas como um jogo intelectual. A comunidade de matemáticos gregos era um conjunto muito reduzido e geograficamente disperso de homens de classe alta que dedicavam o seu tempo de lazer a explorar demonstrações matemáticas, que, sem dúvida, foram produto de um ambiente cultural no qual as técnicas de persuasão do outro em debate público eram cruciais.

Desta forma, as matemáticas não são algo abstracto e independente da cultura humana que as cria, mas um produto social em constante transformação feito por indivíduos e sociedades com motivações e formas de ver o mundo muito específicas. Se nos aventurarmos pelo mundo complexo mas rico da história, veremos emergir as matemáticas antigas não como conceitos abstractos que flutuam no mundo platónico das ideias, mas como esforços de pessoas concretas que fazem incisões numa tábua de argila ou pensam com diagramas na areia.

Uma versão mais aprofundada deste texto foi publicada em 2014 na revista  Investigación y Ciencia , número 49.

Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação

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