Sobre o (des)emprego científico
A nossa escolha é entre cumprir a lei e fechar, ou não cumprir e arcar com as consequências.
A filosofia habitual de gestão em ciência é “não fazer ondas”, e tratar de problemas conhecidos de uma minoria mediante contactos discretos. Cada centro tem a sua história, e o Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC), uma associação privada sem fins lucrativos, associada, mas não parte integrante, da Universidade de Coimbra (UC) tem um grave problema, que não criou. Esse problema é o Decreto-Lei 57 (DL57), chamado “do emprego científico”. No nosso caso específico (sublinho) poderá ser do desemprego. Passo a explicar.
O DL57 pretende eliminar décadas de abuso do estatuto de bolseiro, que (como o de professor convidado) deve ser utilizado pontualmente, como era suposto. É preciso outra solução para carreiras científicas menos precárias, mas, em simultâneo, exigentes e com avaliações independentes, que tenham consequências. Algo que não parecemos querer em Portugal (em nenhuma área), focando sempre a discussão nos motivos pelos quais uma qualquer avaliação seria injusta, em vez de debater como a tornar justa.
Para começar a eliminar a precariedade, o DL57 prevê que muitas bolsas, antes pagas pela agência nacional, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), passem a contratos de trabalho, pagos pelas instituições onde se realiza a investigação, como o CNC. De elementar justiça.
Mas mesmo quem pouco perceba de leis laborais sabe que não se pode conceder contratos a pessoas específicas sem concurso público. Para resolver este paradoxo, e em vez de encarar verdades difíceis e criar um concurso competitivo, nas suas primeiras versões (nomeadamente a chamada “norma transitória”) o DL57 evocou quer a elegibilidade assente em razões burocráticas (uma iteração da lamentável “antiguidade”) quer uma variação do “concurso com fotografia”. Ciência não é isto, e apesar de correções posteriores esta é uma herança infeliz numa luta justa.
Por outro lado, um contrato custa 1,5 vezes mais do que uma bolsa (acresce ao salário a segurança social e fundo de reforma, porque a situação de bolseiro deveria ser pontual). No CNC a folha salarial aumentaria em dois milhões de euros por ano. Mas, dir-me-ão, os salários da norma transitória do DL57 serão reembolsados pela FCT. Leram bem: em vez de nos transferirem a verba, a maioria do financiamento em ciência é por reembolso: gastamos dinheiro que não temos, para depois o receber de volta. Faz sentido?
Mas seremos reembolsados quando? Muitos meses depois, como tem sido regra na FCT, que nos obriga a pedir dinheiro emprestado (e a pagar juros) para gerir o dia-a-dia, mas nunca paga juros dos seus próprios atrasos? Ou teremos, como já afirmou o ministro Manuel Heitor, de “ser resilientes e encontrar alternativas”, admitindo dificuldades nos reembolsos? Aí o problema será (só) das instituições, que assinaram um contrato onde não consta o nome da FCT, que indiretamente promoveu a sua assinatura. No nosso caso temos tido lutas constantes com a FCT para validar despesas, e atrasos de meio ano em reembolsos; temos razões objetivas para desconfiar. E, apesar de ajudar a formar todos os anos dezenas de mestres e doutores que pagam propinas na UC (valor acima de 500 mil euros por ano), como o CNC não está formalmente na universidade não há justificação para esta nos adiantar verba que não passa por lá. Nem temos uma fundação por trás que o faça. Esse é o drama particular do CNC e de outros centros semelhantes.
Claro que, como toda a gente, os cientistas cometem erros, e devem ser responsabilizados. Tomei posse em 2014 e o CNC tinha assumido anos antes grandes projetos financiados a 85% porque eram “oportunidades únicas”, e “alguém mais tarde ajudaria”. Em 2014 era preciso pagar os 15% em falta e nenhum “alguém” (FCT, UC, Pai Natal...) se mostrou disponível. Com razão: a responsabilidade não era sua. Sem culpa direta tivemos de resolver, mas logo que possível abrimos concurso para postos de trabalho, incluindo recentemente cinco novos contratos para posições de quadro. E contratámos Investigadores que suprem necessidades permanentes da instituição, como é suposto. Uns até seriam abrangidos pelo DL57, outros não, mas não pensámos nisso: eram de quem precisávamos. Deve um centro como o CNC, que nunca sabe bem com que conta, ter a responsabilidade de criar este tipo de carreiras? Não, mas alguém tem de o fazer, quando as alternativas (nas universidades) dificilmente atrairão os melhores, apesar daquilo que é defendido por muitos reitores.
Nada disto é novo, desde 1990 que o CNC cria emprego científico de quadro, pagando salários a 21 doutorados, mais pessoal administrativo e de apoio, num total de 62 funcionários. E esses salários estarão todos em risco se contratarmos os 35 investigadores elegíveis pelo DL57, e o reembolso da FCT demorar mais de dois meses. Ora, os prazos da FCT para quem já iniciou o processo têm sido muito superiores. E salários são custos fixos com implicações legais, não podemos ser seletivos e dizer aos que acabaram de chegar que só lhes podemos pagar o salário se a FCT nos reembolsar o anterior. Não pagamos a uns, não pagamos aos outros; nem a fornecedores nem a ninguém. E, apesar de termos um magnífico orçamento, fechamos por falta de tesouraria em menos de três meses, lançando no desemprego 62 pessoas mais 35. E alguns (até na UC) não ficarão tristes, porque muitas vezes é a inveja, e não o sonho, que comanda a vida.
Já o disse ao senhor primeiro-ministro, ao senhor ministro, ao senhor presidente da FCT, ao magnífico reitor da UC: a nossa escolha no CNC é, sem qualquer exagero, entre a ilegalidade e a insustentabilidade. Entre cumprir a lei e fechar, ou não cumprir e arcar com as consequências. Acrescento que sou funcionário da UC (não do CNC) e estou em final de mandato, o mais simples seria cumprir o DL57 sem fazer ondas. Mas com que cara encararia os outros (e a mim próprio)? Peço desde já desculpa aos investigadores do CNC abrangidos pelo DL57, esperando que percebam a situação. Como compreendo que, caso se justifique, ajam judicialmente. Mas, ou a FCT reforça o nosso projeto estratégico para recursos humanos no montante de, pelo menos, 50% das despesas que teremos num ano com o DL57, ou não abrimos esses concursos. Também aceitamos que, se assim o entender, a UC nos ajude de modo semelhante. Ajudem a resolver o problema que criaram a quem já provou querer promover emprego científico mesmo sem DL57, uma lei (muito mal) feita para resolver um abuso vergonhoso.
Dir-se-á que umas dezenas serão meros danos colaterais numa luta de milhares. Pode ser. Mas quando se é o dano colateral não se pode ficar calado. Até porque apresentamos publicamente relatórios de atividades e contas anuais auditados (a FCT não o faz); não podemos fugir. Nem queremos, porque acreditamos num futuro para a ciência portuguesa. Se não acreditássemos tínhamos seguido a filosofia habitual.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico