"Ministério Público não voltará ao que foi", garante Marques Vidal
Joana Marques Vidal, que falava num jantar no hotel Sheraton, em Lisboa, recusou abordar sua saída do cargo, mas não se furtou a tomar posição sobre outras matérias.
Ainda que se vá embora da Procuradoria-Geral da República, Joana Marques Vidal garante que o Ministério Público (MP) "não voltará atrás".
"Não voltará ao que foi", prometeu a Procuradora-Geral da República a quatro meses de terminar o mandato, e quando já se percebeu há muito que o Governo não tenciona sugerir a sua recondução ao Presidente da República.
Joana Marques Vidal, que falava num jantar-debate no hotel Sheraton, em Lisboa, recusou abordar sua saída do cargo, mas não se furtou a tomar posição sobre muitas outras matérias, com uma desenvoltura surpreendente perante a discrição que assumiu ao longo dos quase seis anos de exercício do cargo.
Questionada sobre se todo o trabalho que fez cairá por terra se sair, respondeu: "Penso que há uma concepção do MP que não voltará atrás, não voltará ao que foi. Pus a máquina a funcionar". E admitiu mesmo que não será fácil deitar fora a sua herança. “O Ministério Público tem um prestígio que não tinha antes – e não tem só a ver com os processos mediáticos”, anotou, referindo-se a transformações organizacionais levadas a cabo no interior do país.
Não se inibiu, mesmo assim, de deixar algumas críticas internas: aos dirigentes, que podiam fazer mais esforços para que os subordinados cumprissem prazos, e a toda uma classe que não aprendeu ainda a trabalhar em equipa. “O nosso Código de Processo Penal tem mecanismos que permitem encurtar a duração dos inquéritos”, assinalou a magistrada, para quem “deve haver mais rigor no controlo hierárquico dos prazos”. Também defendeu que magistrados de diferentes jurisdições trabalhem em equipa nos processos de maior complexidade.
"Gritante falta de meios"
No que toca ao combate à corrupção, apontou baterias à classe política: era importante que as práticas e o discurso dos dirigentes do país demonstrassem uma “profunda repulsa” pelo fenómeno. Infelizmente, lamentou, a questão está “praticamente ausente” desse discurso. Depois existe outro problema, continuou:
"Há uma clara e gritante falta de meios na Polícia Judiciária" para lidar com este e outros crimes, sejam eles humanos ou materiais, como por exemplo equipamentos informáticos.
Uma falta de meios que se estende, na sua opinião, à falta de quadros no Ministério Público e, no que à fiscalização das declarações de rendimentos dos políticos diz respeito, à capacidade de fiscalização do Tribunal Constitucional. Para Joana Marques Vidal, neste último caso seria preferível criar uma entidade autónoma para lidar com as questões relacionadas com o património de todos os titulares de cargos públicos. Que poderia funcionar junto do Ministério Público.
Ao longo destes seis anos nunca foi abordada por governantes para que os informasse do andamento deste ou daquele processo, assegurou. Mostrando-se uma intransigente defensora da separação de poderes, falou por várias vezes da necessidade de manter a autonomia da classe que dirige, sob pena de perversão do Estado de direito. E de possíveis ingerências nessa independência.
Numa altura em que a Assembleia da República se prepara para alterar os estatutos quer dos juízes quer do Ministério Público, a Procuradora-Geral da República fez questão de dizer que não se pode deixar que eventuais punições disciplinares dos magistrados tenham como consequência a interferência em processos concretos. Ou que “criem temor” entre a classe. “Também não se deve alterar as funções e competências do Ministério Público”, preconizou.
Joana Marques Vidal não põe de lado a hipótese de o país dar alguns passos em matérias controversas como a delação premiada ou o enriquecimento ilícito, embora com cautela. Mas não as considera medidas essenciais no combate à corrupção: “São mais um instrumento”. Já a ideia da criação de um tribunal especializado em criminalidade económico-financeira, à semelhança do que sucede em Espanha, não lhe agrada: primeiro porque entende que a Constituição não o permite, e depois porque a especialização dos magistrados em determinado tipo de crimes pode “perverter a sua capacidade de distanciamento”, levando-os a empolá-los.