Gaivotas em terra, problemas à vista: e soluções, há?

Instalaram-se nas zonas urbanas e não estão apenas de passagem. Se nada for feito, haverá cada vez mais gaivotas nas cidades. Porque migraram estas aves para as urbes? Os perigos, dilemas e soluções — com um olho em geografias onde o cenário se repete.

Quando começou a viajar para Portugal, algures no início do milénio, os telhados lusos tinham ainda poucos ninhos de gaivotas. Mas Peter Rock já avisava para o que aí viria — ou não estivesse ele a testemunhá-lo no Reino Unido, onde desde os anos 80 estudava as movimentações destas aves. Em Novembro passado, de visita a Portugal, o cenário encontrado era já “completamente diferente”. E quase vinte anos depois o ornitólogo repete o aviso: “Vocês ainda vão ver muito mais gaivotas a sobrevoar os telhados no vosso país”, diz ao P3 numa entrevista telefónica.

No Reino Unido, a relação das gaivotas com as zonas urbanas terá começado nos anos 60. Por cá, a presença começou a ser notória no Norte do país na década de 90. Cronologia simplificada pela voz e memória de Rui Rufino, ornitólogo que trabalhou por mais de duas décadas no Instituto de Conservação da Natureza e que criou, em 2000, uma consultora para áreas de interesse natural. Por que razão aconteceu essa migração do mar para terra? “As gaivotas são animais oportunistas: aqui não têm predadores e têm alimentação”, simplifica. “Não precisam de mais nada”, completa o biólogo Paulo Fontoura, ao repetir a mesma ideia. O problema, diz, não é as gaivotas estarem em terra. É o “descontrolo completo” que se vive actualmente.

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Alessandro Bianchi/ Reuters

Antes de qualquer medida, concordam os especialistas ouvidos pelo P3, é preciso um estudo estruturado e científico sobre o assunto: “Se não soubermos a dimensão do problema será uma perda de tempo”, enfatiza Peter Rock, dizendo que por cá estamos ainda uns “25 a 30 anos atrás do Reino Unido”. Estas gaivotas urbanas permanecem ou migram, de que se alimentam, como se comportam e se reproduzem? O ponto de partida para a acção precisa de saber as respostas para questões como estas.

Em 2011 — com as queixas a subirem de tom e por iniciativa do presidente da autarquia portuense Rui Rio — foi traçado um diagnóstico do que se passava no Porto. Já na altura, o Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) falava de uma “realidade preocupante”, lê-se no relatório, onde se sublinham “questões de qualidade ambiental e de saúde pública”. No documento ficava registado que a redução dos impactos negativos só era possível com “eliminação ou redução acentuada da disponibilidade de alimento para as gaivotas” e da “tentativa de eliminação de zonas de pouso (telhados, beirais, mobiliário urbano, etc.) através da colocação de dispositivos físicos (redes, cabos e espigões) ou da instalação de dispositivos sonoros em zonas de elevada concentração de gaivotas”.

Algumas recomendações — como uso de ruídos para afastar animais ou colocação de dispositivos em alguns edifícios públicos para impedir que eles poisassem — foram implementadas. Mas o problema persistiu. Aumentou. No Porto, como no resto do país, estão em causa sobretudo duas espécies: a gaivota-de-patas-amarelas (L. cachinnans) e a gaivota-d’asa-escura (L. fuscus), sendo que apenas a primeira se reproduz. Quase sempre nos telhados, local inacessível e seguro, e com alguma rapidez: cada gaivota “põe, em média, três a quatro ovos por ciclo” (geralmente entre Abril e Junho) e “cria dois a três filhotes”, aponta Rui Rufino, acrescentando que estes animais podem viver até aos 35 anos, mais coisa menos coisa. Mas há outro factor a tornar as zonas urbanas apetecíveis: com a subida da temperatura verificada nas cidades, “as gaivotas podem nidificar mais cedo”, sublinha Peter Rock, que tem monitorizado as gaivotas em Bristol colocando-lhes uma espécie de anel que permite acompanhar a sua localização e conhecer os seus hábitos.

Estamos perante um problema, dizem os especialistas e admite o PAN, que já levou ao Parlamento a questão dos “pombos”, mas não fez ainda nenhuma proposta para as gaivotas. “Não negamos que está a perturbar a vida de algumas pessoas”, diz Bebiana Cunha, “mas é precisa uma solução ética”. Que é como quem diz: controlar sim, abater não.

Ainda que essa seja talvez a solução mais eficaz e possa não ser possível pensar num plano sem abater “alguns animais”, atalha o biólogo Paulo Fontoura, o sucesso deve compor-se conjugando um conjunto de medidas. Armazenar bem o lixo, não ter alimento disponível no exterior das casas, fazer campanhas para não alimentar as aves, apostar em sistemas dissuasores, substituir ou retirar ovos, dar contraceptivos.

“O Peter Rock dizia que as gaivotas são ratos do ar”, diz Paulo Fontoura, que se cruzou com o ornitólogo em alguns eventos: “Todos os problemas que os ratos causam as gaivotas podem causar.” Mesmo que não seja um problema inicialmente, mais cedo ou mais tarde será, aponta Rui Rufino: “Porque se tornam agressivas, porque sujam os telhados e monumentos, porque fazem barulho...”

A Câmara de Lisboa, diz o gabinete de comunicação numa curta resposta por e-mail, “não dispõe de estudos” sobre o assunto e “também não tem registo de ocorrências [de ataques]”. Rui Rufino tem uma ideia do que se passa na capital. Em 2017, fez um levantamento do número de gaivotas existentes na cidade e a estimativa a que chegou foi de 125 casais, “sabendo que o número é certamente superior, pelo menos 150, porque a contabilização é muito difícil de fazer”. Em 2018, não fez censos mas a percepção que tem é que o numero está a “subir” — “como tem acontecido de ano para ano, de resto”.

Na capital, as maiores colónias ficam na Docapesca e na zona dos Jerónimos. Mas as gaivotas “estão em todo o lado, a entrar gradualmente na cidade”. Para o ornitólogo, o momento de “reabilitação urbanística” vivido na cidade é uma boa oportunidade para atacar o problema: “Pensar em como evitar que as gaivotas façam ninhos nos telhados e em novas soluções para caixotes que não deixem lixo à vista”, sugere.

No Porto, a câmara “não tem dados” que sustentem o aumento do número de animais, mas depois de reuniões com o CIIMAR, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e a Área Metropolitana do Porto, está em fase de “avaliação” uma nova abordagem ao problema.

No terreno, há já algumas medidas. Para fazer frente às “reclamações relacionadas com a saúde e a segurança pública”, a autarquia “adquiriu equipamento de protecção individual para os colaboradores a fim de permitir a retirada de ninhos em situações pontuais”, divulgaram, acrescentando que tal acção está devidamente coordenada com o ICNF. No conjunto de acções a serem implementadas estão ainda a “proibição da alimentação de animais errantes nos espaços verdes e na via pública”, a “aplicação de métodos de nidificação e o pouso das aves em edifícios municipais, nomeadamente a colocação de pinos metálicos e a realização de acções de sensibilização e informação quando se identificam situações irregulares de alimentação de animais errantes, nomeadamente gaivotas”.

Quanto mais gaivotas mais ataques

Numa conversa sobre estes animais — inspiração para várias criações literárias (quem não se encanta pela História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar, de Luís Sepúlveda?) e provérbios talvez fora de prazo (gaivota em terra tempestade no mar) — não é difícil recolher testemunhos sobre ataques mais ou menos amistosos. Passar com comida na mão perto de uma gaivota pode ser arriscado. Cruzar zonas de ninhos, sobretudo em épocas reprodutivas, ainda mais. A propósito, aconselha José Teixeira, do CIIMAR: quem encontrar um ninho não deve, em qualquer situação, tentar removê-lo. “Será com toda a certeza atacado.”

Mas afinal: estão as gaivotas a tornar-se mais agressivas? Peter Rock desmistifica — e com exemplos portugueses. “Há muito tempo as gaivotas cresciam longe dos seres humanos, como na colónia das Berlengas. Quem passar na zona onde as gaivotas estão a pôr os ovos é atacado. A diferença é que agora as gaivotas estão nas cidades e atacam as pessoas porque elas estão ali. Atacam porque os ninhos estão próximos. Fazem o que sempre fizeram”, explica. E remata: “Quanto mais gaivotas houver nas cidades, mais ataques são esperados.”

A autarquia portuense não disponibiliza números, diz apenas que as ocorrências registadas “reflectem a variabilidade sazonal relacionada com a época de reprodução e anos secos e quentes”.

É esse o ponto “mais relevante”. Convicção de José Teixeira, que coordenou o estudo prévio que o CIIMAR fez para a CMP em 2017: “É preciso incidir na reprodução”, até porque “as gaivotas têm tendência para se reproduzir no sítio onde nascem”. Nesse capítulo, a solução mais usada tem sido a de substituir os ovos por ovos artificiais: “Dessa forma as gaivotas abandonam o ninho durante a época de reprodução e não têm nova postura durante essa época”, explica.

Para o PAN, a resposta também passa pela “remoção de ovos, substituição por ovos falsos e aposta em locais para onde se possa atrair as gaivotas e dar-lhes anticoncepcionais”. Isto para além da colocação de picos que impeçam que os animais façam ninhos em locais indesejados e o uso de sons que os afastem. “Não podemos é aceitar o caminho do abate”, diz Bebiana Cunha, sublinhando a necessidade de contrariar a “visão antropocentrica” vigente na nossa sociedade e de apostar na economia circular e separação do lixo.

Lá fora, as soluções tanto passam pelas mais comuns, já acima descritas, como por outras mais ou menos polémicas, mais ou menos duvidosas, mais ou menos sérias. Há uns anos, em Helsínquia, a câmara local chegou a contratar duas pessoas que tinham como missão manter as gaivotas longe das pessoas: apanhando o lixo do chão e impedindo os transeuntes de alimentarem as aves. Na Austrália, um restaurante decidiu disponibilizar pistolas de água junto às mesas para os clientes se “defenderem” das aves. No Reino Unido, houve quem propusesse a compra de drones para acabar com gaivotas. Como? Pondo os objectos voadores a sobrevoar e pulverizar os ninhos com produtos químicos anticoncepcionais. Houve “de tudo” no Reino Unido, completa Rui Rufino: abate, retirada de ovos, contraceptivos, falcões para espantar as gaivotas. “Mas nada disso resolve o problema”, diz. Resignemo-nos, pois, a um mal menor. Sem esquecer que rapidez é um factor decisivo: “Não há solução, há formas de controlar.”

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