O ano é o de 2012. Depois de Barcelona (e uma festa), um casal nu aterra no Porto num “lindo dia” de chuva. Aproxima-se 31 de Dezembro, afinam-se os planos para a noite de passagem de ano. À escusa de uma amiga-mãe, que tem de trocar os planos de “grandes festanças” por uma “cena caseirinha”, a personagem principal pensa “Que difícil que é ter filhos... acho que não curtia nada abdicar do meu tempo... as festas...”. E pede um gin tónico “fachavor”.
O casal segue para Trás-os-Montes, onde despertam alguns sinais. Uma ida à casa de banho mais repentina, um estômago onde tudo “cai mal” (culpa das “festas”, claro), peito maior, nada de período. Um teste desfaz a dúvida. “Ah 2012, não nos deixavas sem mudar de paradigma”, diz a futura mãe. “Raio dos Maias”, reage o futuro pai. “Nós nem temos casa... nem cidade...”, diz ela. Vira-se a página. “Estamos grávidos em Bragança.” Assim começa (a) Gravidez, de Júlia Barata. Quem sabe se com estes traços também não se desenham outras tantas gestações.
Lançado em Portugal no final de 2017 pela Tigre de Papel Editora, depois da edição argentina pela Musaraña Editora, Gravidez é a primeira novela gráfica de Júlia Barata, após várias edições próprias e participações em antologias — uma delas Zona de Desconforto (2014), da Chili Com Carne, onde aliás tivemos pela primeira vez um pequeno vislumbre desta história. É um livro de banda desenhada “catártico”, resultado de quatro anos de trabalho, em que a autora faz uma espécie de “exercício pessoal de exorcismo”, totalmente autobiográfico, sobre o que é isto de estar grávida, de ser imigrante noutro país, de assumir o papel de mãe pela primeira vez. Com uma certeza: “A gravidez pode ser a melhor coisa do mundo, mas também tem arestas”, conta, ao telefone com o P3.
Com 36 anos, a arquitecta vive hoje em Buenos Aires, com o companheiro, Alejandro, e o filho, agora com quatro anos e meio, que vemos nascer ao longo das páginas do livro vermelho. Nascida em Coimbra, passou por Maputo, Porto, Lisboa, Roterdão e Barcelona, até chegar à Argentina grávida de cinco meses. Foi quando estava (finalmente) internada no hospital que começou a rabiscar aquilo que viria a ser esta banda desenhada. “Foi”, recorda, “um gesto um bocadinho escapista, uma fuga para não pensar naquilo”. Depois começou a fazer rewind e a desenhar em todo o lado, de um modo quase “visceral” — nem as caixas do leite escapavam. Germinou assim 40 moleskines deitados, o formato da BD que foi agora lançada.
Para falar sem "pruridos"
Até ao final feliz, que sim está lá, há todo um livro muito pouco "politicamente correcto” que, num certo “tom cómico punk”, como escreve Maria Condado na contracapa, explora a escala de cinzentos de ser mãe numa terra estranha. “A Disney não me atrai muito”, diz, entre risos, a autora. Nota-se. “Estas coisas estão pejadas de dúvidas, de incertezas, de questionamentos que às vezes são difíceis de falar.” E há mil e uma questões para resolver, mil e uma realidades para conhecer pelos futuros pais. Da procura de "uma casa para alugar" à busca por uma “mãe de aluguer”. Da escolha entre o sistema de saúde público e o privado. Das (expressivas) filas no hospital à possibilidade de um parto em casa, à figura da doula, à dor do parto. “Também para romper com certos standards sociais de que a gravidez é a melhor coisa que aconteceu no mundo. É uma realidade que é diferente para cada um.”
Pelo meio, fala-se do sistema hospitalar, de como se poderia “humanizar” um momento que, por vezes, é demasiado impessoal. Apesar de todos os preparativos, dos cursos pré-parto, da ideia, bem difundida na Argentina, de “humanização do parto”, não foi fácil dar à luz. “Foram os acasos da vida. Calhou-me o domingo, de madrugada. E em vez de me calhar a bola de pilates, as velas, a playlist, calhou-me uma mulher que era uma bruta.” Que na BD aparece de tesoura na mão a dizer “Raios que é gordo, este. Pumba, corto aqui um bocadinho para ajudar. Agora se for preciso parto-lhe a clavícula e vais ver se não escorrega bem!”
O parto, “violento”, pode ter provocado uma hemorragia supra-renal ao recém-nascido, que teve de ficar numa incubadora — com toda a angústia que esse processo trouxe aos pais. Mas atenção, alerta Júlia: “Não sou uma vítima do mundo.” Pelo meio há ecos de outras histórias, de outras mulheres. “Numa situação muito mais precária do que a minha. Mulheres que tinham de enfrentar uma operação ao coração do bebé, mulheres que não tinham dinheiro para pagar o hospital, nem o leite. Essas histórias também me puseram um bocado no meu lugar.”
Até ao final, o casal “grávido” continua nu, “sem roupas, sem camadas”. Vulnerável. Afinal, este é um livro para “espiar o medo”, os “demónios” pessoais da autora. Sempre a preto e branco, preto no branco, com traços verdadeiros, fluídos, algo crus, ainda que nenhum desenho seja o original. Não foi pensado para ser um “manifesto”, mas quem sabe se pode ajudar. “É um objecto que parte de uma catarse pessoal, mas fico contente quando tem uma repercussão. Espero que [ajude a] que as mulheres tenham uma voz e possam falar das coisas que acontecem sem pruridos.”
E o futuro? Para além do trabalho como arquitecta, Júlia está a desenvolver uma segunda novela gráfica, invariavelmente autobiográfica (“adorava fazer ficção, mas às vezes a realidade supera”) sobre a família, a que cria e a que a criou. Vai lançar um novo número das pequenas tiras Cotidiano de Lujo. Não tem planos concretos para voltar a Portugal, para voltar a partir, “nada está fechado”. Vai continuar a desenhar, no seio do “fervilhante” circuito de historietas de mulheres artistas da América Latina — a mais conhecida há-de ser Power Paola. Mulheres que desenham, que se juntam para desenhar, que abordam temas por vezes ausentes das BD — como a despenalização do aborto — e outros. “Até que não exista comic feminino”. Apenas comic.