Durante uma grande parte da minha vida cresci, como a maioria, a acreditar em histórias que, passadas "de boca em boca", se tornaram verdades. Cresci com a ideia de que em Portugal só existiam dois partidos políticos legítimos: o PS e o PSD. Depois, existiam os comunistas que eram uma manifestação do diabo, e o resto, bem, o resto era paisagem. Na minha adolescência comecei a ouvir sobre os perigos do anarquismo, um sinónimo de desordem, de violência, de confusão; e o anarquista — o eterno irresponsável violento (também os há, evidentemente). Mas nem tudo na vida devem ser certezas absolutas; talvez sejam, a bem da verdade, certezas relativas.
Certa vez li o ensaio Desobediência Civil, de Thoureau, e fiquei impressionado. Pouco mais tarde comecei a prestar mais atenção ao anarquismo e aos movimentos libertários, descobri o Anarchist Research Group na Universidade de Loughborough, depois li o livro Sociedade Sem Escolas, de Ivan Illich, e percebi que o anarquismo é penetrado por tantas correntes que o tornam diverso e muitas vezes controverso. Considerem-se a título de exemplo o anarquismo cristão, o anarcocapitalismo ou o anarcocomunismo. No entanto, não é menos correcto aferir que todas as correntes anarquistas identificam um conjunto de violências que afectam diretamente as nossas vidas e nem sempre estamos conscientes de que assim o é.
Proudhon referia-se, por exemplo, a uma "trindade do absolutismo": o Estado, o Capital e a Igreja, cabendo à "santíssima trindade" acorrentar o corpo, a vontade e a razão. E Kropotkine, no livro A Moral Anarquista, complementa com "os inimigos inveterados do pensamento — o governo, o legislador e o padre (...)". Naturalmente, a identificação das opressões a que me refiro são de cariz estrutural e, como é óbvio, é necessária uma leitura mais cuidada e atenta das obras para que uma análise mais profunda seja possível.
Muitos dirão que estamos perante ora uma ideologia radical e fracturante da sociedade em que vivemos, ora uma utopia que é, nada mais nada menos, um sonho. Recorrendo às palavras de Eduardo Galeano, que relatou um episódio ao qual teve o privilégio de assistir: "Ele disse que a utopia está no horizonte e disse mais: eu sei que nunca a alcançarei, que se eu ando dez passos, ela se distanciará dez passos, quanto mais a procure menos a encontrarei, porque ela vai-se distanciando quanto mais me aproximo. Boa pergunta, não? Qual é a sua utilidade? Pois a utopia serve para isso, para caminhar.” É claro que aderir a uma ideologia, seja política ou religiosa, é uma possibilidade como outra qualquer, mas além do "preto e do branco" a que muitos desejam que a vida corresponda, é importante não esquecermos as zonas "cinzentas". O que quero dizer é que transformar a nossa vida e os nossos dias em gavetas poderá ser, na verdade, um alimento para a frustração. Afinal, a vida é o nosso bem mais precioso e incerto e todos os planos que fizermos podem alterar-se repentinamente.
O anarquismo proporciona algumas lições importantes. Uma das suas premissas assenta na acção directa. Trocando por miúdos: se queres, faz tu, esquece a representatividade e a intermediação. Se há algo em que acreditas, avança e faz. O anarquismo recusa a autoridade e, por isso, repulsa a representatividade, razão pela qual não existem partidos políticos anarquistas. É claro que, colocando a ênfase no indivíduo, considerando que deve mover-se pelas suas convicções e recusando a autoridade, aparentemente qualquer possibilidade colectivista ou associativa parece condenada à partida. Contudo, uma outra premissa do anarquismo assenta no apoio mútuo. Trocando por miúdos: se encontras nas minhas convicções as tuas vontades, e se há similaridades nas lutas que empreendo para atingir um objectivo, junta-te a mim. Um excelente exemplo do que acabo de descrever é o anarco-sindicalismo que, surgindo no final do século XIX, permitiu que os trabalhadores se unissem para garantirem não só uma rede de solidariedade para enfrentarem as dificuldades que a dureza do trabalho e da vida se lhes colocava, como uma forma de lutarem pelos seus direitos. É claro que aconteceram muitas transformações no que se refere à evolução do sindicalismo que não vou aqui avançar.
Vivemos numa sociedade cada vez mais subjugada pela representatividade. Uma "anomia" promovida pelas instituições que parecem ter-nos convencido de que as nossas vidas podem prosseguir com as marés porque eles estão lá para decidir o que é melhor para cada um de nós. E que nem precisámos de nos incomodar ou interferir porque eles sabem o que fazem. É motivo para perguntar: em quanto do bem que me queres cabe o bem que queres para ti?
É, provavelmente, um dos maiores contributos do anarquismo, reforçar a importância de uma participação activa na sociedade em que vivemos com vista a transformá-la. A necessidade de empreender acções que confrontem os sistemas instalados, que possibilitem que alguns zombies sejam insuflados de vida, que possam trazer uma esperança que contrarie uma morte em vida. Porque não há nada mais perigoso do que abdicarmos das nossas vidas, que aceitemos vivê-las adormecidos, e que façamos os mesmos caminhos e sigamos as mesmas ordens sem nunca perguntarmos "Porquê?" nem nunca combatermos a resposta "Porque sim". Se os empreendimentos individuais mudam os sistemas? É uma excelente pergunta. Duvido. Mas, tenho a certeza que movem apoios e arreliam os sistemas.