Alunos surdos “ansiosos” pelo primeiro exame feito a pensar neles
Português Língua Segunda é a novidade nos exames nacionais do ensino secundário. A prova culmina implementação do programa da nova disciplina, aprovado há sete anos.
Diogo Fonseca detém-se por instantes à procura do gesto certo. “Ansioso” – era isso que queria dizer. “Estamos um bocado ansiosos com esta mudança”, prossegue. Este jovem de Peso da Régua é um dos 44 alunos que respondem amanhã ao exame nacional de Português Língua Segunda (PL2), uma prova feita especificamente para alunos surdos. É a primeira vez que se realiza.
Num gabinete da escola João Araújo Correia, no centro da cidade duriense, Diogo partilha um lugar à mesa com Maria Oliveira, que é sua colega no curso profissional de Multimédia, e Ana Filipa Alves, estudante num curso científico-humanístico. São estes os três alunos daquele estabelecimento de ensino que vão fazer o exame nacional de PL2.
A novidade está a deixá-los apreensivos. Sentada numa das pontas da mesa, Maria Oliveira conta que tem “medo de ficar desiludida com o que vão perguntar” no exame. Se a prova de amanhã for semelhante às anteriores – até ao ano passado, os alunos surdos respondiam a uma adaptação do exame de Português –, não tem dúvidas de que a vai “conseguir fazer”. Se for diferente, o dia pode correr mal, desabafa.
No exame de amanhã, Maria precisa de uma boa nota. Quer entrar na Escola Superior de Educação de Coimbra e PL2 é a sua prova específica – cumpre a mesma função do exame de Português para estes alunos. Ana Filipa e Diogo também pretendem seguir os estudos para o ensino superior, ela em Gestão, ele em Informática ou Multimédia.
Sendo esta a primeira vez que este exame nacional se realiza, não existe nenhuma prova que sirva de modelo para preparar o estudo. A informação disponibilizada pelo Júri Nacional de Exames faz o professor da disciplina, Benjamim Matos, pensar que a nova prova será semelhante em termos de estrutura à que se realizou até ao ano passado. É com base nisso que tem preparado os estudantes para o exame.
Educação bilingue
Se é certo que a novidade deste ano deixou os alunos ansiosos, aquilo que “mais preocupa” é mesmo a composição que vão ter que escrever no exame – que é integralmente escrito. A explicação é dada por Ana Filipa Alves, a mais extrovertida dos três alunos da Régua: os alunos surdos têm dificuldades com o vocabulário, que é habitualmente mais reduzido dadas as especificidades da Língua Gestual Portuguesa (LGP), e também se sentem pouco à vontade com a expressão escrita. “A estrutura da LGP é muito diferente da do Português”, expõe.
Em 2011/12, os alunos surdos passaram a ter um programa próprio de aprendizagem do Português, que tem aplicação do 1.º ao 12.º ano. A disciplina de PL2 segue um modelo de educação bilingue, considerando-se a LGP a língua materna e a Língua Portuguesa escrita e falada como segunda língua. A língua tem, para estes alunos, uma abordagem mais literal e menos simbólica, pelo que, por exemplo, o trabalho de interpretação de um texto literário é adaptado às suas características.
Há dois anos, foram introduzidas as primeiras provas nacionais na disciplina, no 9.º ano. E agora, pela primeira vez, há um exame nacional do ensino secundário de PL2. “É mais uma medida que contribui decisivamente para uma escola que se quer inclusiva e em que a todos é garantido o acesso pleno ao currículo”, sublinha fonte do Ministério da Educação ao PÚBLICO.
No corredor que leva do gabinete onde Maria, Ana Filipa e Diogo trabalham com o professor há um grande placard de cortiça, coberto com uma estrutura envidraçada. Está vazio, mas por cima do mesmo há pequenas cartolinas coloridas com o alfabeto da LGP.
A escola João Araújo Correia é a sede do único agrupamento de referência para alunos surdos em todo o interior do Norte do país. Além dos três que este ano chegaram ao final do ensino secundário, há mais 13 que chegam de diferentes pontos da região: Lamego, Alijó, Chaves.
Como se diz eutanásia?
Tal como aconteceu ao longo do ano lectivo, Benjamim Matos trabalhou nas últimas duas semanas com estes alunos num pequeno gabinete. Ao seu lado está sempre uma intérprete de LGP – que também vai poder estar na sala de exame para ajudar estes estudantes –, já que o docente não é capaz de se expressar na língua dos alunos.
Nas sessões de preparação para o exame, o professor deixou de lado as funções sintácticas ou a análise dos textos. Tentou falar com os alunos sobre a actualidade do país. Falou-lhes de ambiente e poluição, por exemplo. O tema da redacção no exame pode ter a ver com algo que esteja na ordem do dia.
O professor de PL2 receia que os alunos não se sintam à vontade para responder. “Eles estão privados do acesso à informação”, explica. Ana Filipa confirma: “Eu tenho que aproveitar as aulas de português para tirar dúvidas sobre o que vejo nas notícias.” Na televisão, a intérprete de LGP parece-lhe “tão pequena” que nem sempre consegue acompanhar a informação.
Na manhã em que se encontraram com o PÚBLICO, Benjamim Matos e os três alunos centraram as atenções na discussão em torno da legalização da eutanásia, que foi chumbada pelo Parlamento há duas semanas. “Essa palavra é difícil”, atira Maria Oliveira. Não há um sinal em LGP para a designar, é preciso assinalá-la com base no alfabeto próprio. “Legalização” – repete.