Tudo sobre a minha irmã
Benoît Jacquot e Isabelle Huppert são, dizem, eles, irmãos de cinema. Eva, a sua sexta colaboração, falso film noir à volta do conceito de identidade, chega esta semana às salas.
Numa sala discreta do hotel Adlon, em Berlim, o realizador Benoît Jacquot, sentado em frente a um pequeno grupo de jornalistas, fala da sua cumplicidade de longa data com a actriz Isabelle Huppert. Uma cumplicidade que é, também, diz ele, uma fidelidade – “uma fidelidade verdadeira, baseada na estima que temos um pelo outro, e pela proximidade que temos a todos os níveis. A Isabelle é para mim – e creio que ela dirá o mesmo – uma irmã de cinema.”
Pouco tempo mais tarde, noutra sala do Adlon, perante um outro grupo de jornalistas, uma Isabelle Huppert bem disposta, afável, divertida, pega nas palavras de Jacquot como se tivesse sido ela a dizê-las. “Sim, o Benoît é meu irmão de cinema,” confirma. “De certo modo, pertencemos a uma mesma família. Sinto-me muito próxima dele, ao ponto de não precisarmos de...” Faz uma pausa. “Nunca discordamos. Confio nele, e ele confia em mim. É como com Claude Chabrol, ou Paul Verhoeven, ou Michael Haneke – com eles, é uma relação que vai, até, para lá da confiança.”
O pretexto para tantas efusões mútuas? Eva, que esteve a concurso no festival, e que chega esta semana às salas portuguesas. É a sexta colaboração entre a actriz e o realizador, após Villa Amalia (2009), La Fausse suivante (2000), Pas de scandale (1999), L’école de la chair (1998) e As Asas da Pomba (1981). Na década decorrida desde Villa Amalia, Huppert ascendeu ao estatuto de melhor actriz do mundo, rodando com Hong Sang-soo, Brilhante Mendoza, Claire Denis, Mia Hansen-Løve ou Catherine Breillat, e que culminou na sua nomeação para o Óscar por Ela, de Paul Verhoeven. (Ainda há pouco a vimos em Madame Hyde, de Serge Bozon, que lhe valeu o prémio de melhor actriz em Locarno.). No interim, Jacquot (n. 1947), o autor de Sade (2000) e senhor de um percurso discreto mas altamente pessoal pelo cinema francês, assinava Adeus, Minha Rainha (2012), 3 Corações (2014) ou Diário de uma Criada de Quarto (2015), com Léa Seydoux no papel que Jeanne Moreau desempenhara na versão de Luís Buñuel.
É por aqui que se faz uma de várias pontes possíveis entre os percursos de Huppert e Jacquot e Eva: o novo filme adapta um romance negro de James Hadley Chase, Eve, já levado ao cinema em 1962, com Jeanne Moreau no papel principal, sob a direcção de Joseph Losey – que dirigiu Huppert no seu penúltimo filme, Uma Estranha Mulher (1982), dois anos antes de morrer. Mas tanto Jacquot como Huppert mantiveram o filme de Losey à distância ao preparar Eva. A actriz afirma não o ter visto, talvez para não sentir a sombra de Moreau a pairar sobre a sua visão da personagem. “Em todo o caso, não é um dos filmes mais recordados de Losey, nem dos seus melhores”, defende Jacquot. “Vi-o há muito tempo e nunca mais o revi, mas sei que não é dos meus Losey preferidos, mesmo gostando muito do cineasta.” (A ironia é que Eva, recebido com frieza e até alguma desilusão em Berlim, também não ficará como um dos grandes filmes de Jacquot.)
Já em contrapartida o livro de Chase, escritor cuja obra o realizador considera portadora de uma “perturbação, de uma escuridão bastante festiva, de uma ambiguidade constante”, foi directamente convocado pela sua vedeta. “É verdade que o livro me andou a perseguir durante anos, mas não o reli antes do filme,” sorri Jacquot. “Foi o meu co-argumentista, Gilles Taurand, quem o leu, e trabalhámos o guião a partir da experiência de leitura dele e das minhas recordações. Só voltei ao livro durante a rodagem, e a pedido da Isabelle – porque ela achava que havia coisas interessantes que iriam enriquecer a personagem e que tínhamos deixado de fora”.
Eva, então. Como sugere o nome bíblico, uma mulher fatal, um fruto proibido. Uma call girl de luxo na província francesa que se cruza um dia com Bertrand (Gaspard Ulliel, o Yves Saint-Laurent de Bertrand Bonello), dramaturgo que acaba de ter um grande sucesso com a sua primeira peça. Algo interpela Bertrand nesta mulher que não revela o seu verdadeiro nome aos clientes (Eva é “nome de palco”), que vive de “fingir” ser outra pessoa, de assumir outras identidades. Talvez porque Bertrand é, também ele, um “impostor”: ele também foi prostituto, até ao momento em que um cliente lhe morre à frente, deixando em cima da mesa o manuscrito inédito e acabado de uma peça, que ele roubou e fez passar como sua. Eva e Bertrand vivem ambos uma mentira, mas de modos diferentes. Huppert: “Bertrand sente-se atraído por Eva porque ela é uma espécie de 'duplo' dele, mas completamente diferente. Ele sente-se fascinado pela capacidade que ela tem de ser forte, por ela ser tão diferente dele, não ter uma vida intelectual. Ela é puro instinto. A relação que criam acaba por ser muito tóxica.”
E também muito teatral. Não é por acaso que o texto que Bertrand roubou é uma peça; que a relação com Eva começa durante a digressão da peça, num momento em que ele luta com a necessidade de escrever algo novo; que cada cena do filme tem qualquer coisa de pequena encenação perante uma audiência. Jacquot, que tem trabalhado como encenador de teatro e de ópera, assume essa dimensão de representação ao longo do filme. “É algo que me interessa muito,” diz, “criar com estes actores, nestas situações, uma realidade permanentemente afectada pela improbabilidade, pela dúvida, pelo desdobramento, uma realidade que está sempre em confronto com a sua própria negação e irrealidade. O princípio do filme é que toda a gente tem duas caras.”
E Huppert deixou essa dimensão também seduzi-la no papel. “Ser prostituta é como usar um fato em cena,” lança. “Não digo que seja exactamente como uma actriz; a ideia da máscara não é sempre usar uma máscara visível, bem pelo contrário. Mas eu não definiria Eva como 'dúplice'. Ela não é obviamente manipuladora nem cínica, é alguém de dividido e de certa maneira frágil. É uma história sobre a identidade, sobre quem somos realmente, e também sobre duvidar de nós próprios. Bertrand constrói a sua vida sobre uma mentira, sabe que roubou algo e que a sua vida mudou à conta disso. Mas talvez todos nós construamos uma vida sobre uma mentira. Quem sabe?”
Escusado será dizer que não há em Eva personagens simpáticas ou felizes. “Detesto as personagens simpáticas no cinema!” ri-se Jacquot. “Isso não me interessa, é uma ficção. Todos sabemos que as personagens de bad boys são romanesca e cinematograficamente mais interessantes, é um lugar-comum. Cary Grant interessa-me mais que James Stewart...” E Huppert tem feito carreira com personagens que desafiam a lógica das catalogações. “São a ambiguidade e a complexidade que me interessam nos papéis, porque nunca estabelecem limites,” explica a actriz. “Pelo contrário, são uma abertura, uma possibilidade de levar a personagem em muitas direcções. Mas sabe, são os papéis que vêm ter comigo, não sou eu que os vou buscar…” Sorri. “Não sei porque é que mos propõem, mas tenho consciência de ser percepcionada desse modo. Independentemente da complexidade ou da ambiguidade ou da perversidade, o que me interessa é relacionar isso com os sentimentos dos espectadores. Quando fazemos um filme esperamos a certa altura tocar as pessoas, falar com elas, fazê-las pensar sobre si próprias. É esse o prazer de fazer um filme. O cinema é a ferramenta ideal para revelar essa ambiguidade, essa complexidade. Os cineastas que foram mais importantes para mim – quer seja Michael Haneke, ou Benoît, ou Claude Chabrol – souberam sempre guardar a distância certa das histórias e das personagens para não se tornarem excessivamente sentimentais.”
Regressam a cumplicidade e a confiança que ligam Huppert a Jacquot, que a fazem incluí-lo no seu “círculo íntimo” de cineastas a quem nunca se diz não. Quem mais faz parte desse círculo?, pergunta-lhe uma jornalista. “Michael Haneke. Hong Sang-soo, sempre que ele quiser.” Faz um aparte entre risos: “De qualquer maneira, os filmes dele também nunca me tiram muito tempo! E, definitivamente, Serge Bozon.” E alguém com quem ainda não tenha rodado? “Há dois realizadores com quem ainda não rodei e quero muito: Andrei Zvyagintsev e Paul Thomas Anderson.”
É por estas e por outras que Benoît Jacquot diz – regressando à fidelidade – que Huppert é uma das grandes actrizes (assim mesmo, com ponto final e tudo): “Para mim, e ao longo das décadas que levamos a trabalhar juntos, ela continua a ser exactamente a mesma pessoa. Tem a mesma perspectiva sobre a representação, os mesmos interessantes, as mesmas frustrações, e continua a ser exactamente a mesma. E tenho certeza que a Isabelle é a actriz francesa a ter, mais do que uma carreira, uma obra, ao mesmo nível que falamos da obra de um cineasta ou de um escritor. Desde a Jeanne Moreau, precisamente.” Pausa. “E talvez ao mesmo nível da Catherine Deneuve. Mas não há mais nenhuma. Só estas três.”
E Isabelle Huppert, diz o quê? “A única coisa que me mete medo é fazer um filme estúpido com um realizador estúpido.” Ri-se.