Contra o Porto Vintage em sangrias, marchar, marchar
Acho muito bem que se dessacralize o consumo do vinho do Porto. Mas um vintage numa sangria não será radical de mais? Pode ser um Ruby Reserva ou, vá lá, um LBV?
A crónica de Miguel Esteves Cardoso na última Fugas sobre o divórcio dos portugueses com o vinho do Porto deve ter deixado os puristas deste fortificado com os cabelos eriçados. Onde já se viu fazer sangrias com Porto Vintage, como propõe MEC?
MEC acha “estranhíssimo que em Portugal não se beba vinho do Porto”. A queixa está mal formulada, pois os números não lhe dão razão. Em 2017, Portugal foi o principal mercado de vinho do Porto, o que acontece pela primeira vez desde 1678. Se Miguel Esteves Cardoso dissesse, como provavelmente quis dizer, que os portugueses não bebem muito vinho do Porto, estaria certo. Quem, de repente, passou a beber vinho do Porto em Portugal foram os turistas estrangeiros. São eles que estão a salvar o sector. Também são os turistas que nos estão a tornar, estatisticamente, num país de bêbados. Os 53 litros de vinho por habitante que bebemos no ano passado — somos o país com o maior consumo per capita do mundo — foi claramente inflacionado pelos mais de 20 milhões de turistas que nos visitaram.
Em Portugal olhamos para o vinho do Porto mais ou menos como olhamos para os museus que ainda não visitámos. Sabemos que estão aí mesmo à nossa mão, mas vamos adiando a visita. No entanto, quando viramos turistas no estrangeiro passamos a vida metidos em museus. Todos os povos devem ser assim. Como tudo, para consumirmos o que temos de melhor precisamos de impulsos — e é aqui que entram a publicidade e a promoção. Uma boa campanha publicitária até nos leva a consumir produtos maus, como todos sabemos. Ora, no vinho do Porto não há nem campanhas boas, nem campanhas más. Não há nada, simplesmente. E dinheiro não falta. O Instituto dos Vinhos do Douro e Porto possui nas suas contas mais de 10 milhões de euros cobrados aos viticultores para promover os vinhos da região. Mas como é um organismo público está sujeito às mesmas regras da administração pública e só pode gastar umas migalhas. Todos os anos a conta vai engrossando. Quando as Finanças tiverem um aperto, vão lá buscar o dinheiro, como já aconteceu no tempo da troika. Sim, é um roubo, mas salvaguardado pela lei e tolerado pelos mansos dos viticultores.
Adiante. A tradição dos bares e dos restaurantes portugueses também não ajuda muito ao consumo do vinho do Porto. A maioria continua a preferir encher a vitrina com uísques, gins e toda a sorte de destilados do que ter uma boa oferta de vinho do Porto. Os tempos também não são favoráveis aos vinhos doces e alcoólicos. E, como se não bastasse, o vinho do Porto tornou-se num labirinto, com demasiados categorias e estilos: Ruby, Reserva, Crusted, Late Bottled Vintage (LBV), Vintage, Tawny, Tawny Reserva, Tawny com Indicação de Idade, Colheita, Velho, Muito Velho, Garrafeira, Fino, Lágrima, Retinto, Alourado, Branco Pálido…
Para nós, durienses, o vinho do Porto foi sempre um só. Era um vinho envelhecido em cascos ou tonéis, que os mais abastados bebiam antes e depois das refeições (os mais pobres só nos dias de festa e com sorte), se servia às visitas e ao padre no dia de Páscoa e se oferecia ao médico e a quem se devesse favores. Tudo o resto foi invenção dos ingleses. Na verdade, foram os ingleses que inventaram tudo e que beberam sempre o melhor.
A invenção mais genial foi o Porto Vintage, um porto da família dos Ruby que evolui em garrafa. É um vinho extraordinário (embora eu seja mais Tawny) e também um verdadeiro ovo de Colombo. Nenhum outro Porto liberta uma margem tão alta. Como pode ser engarrafado e comercializado ao fim do segundo ano, não sofre perdas por evaporação, nem tem custos de envelhecimento em cascos ou tonéis. E é bem vendido. Um vintage de uma marca de prestígio sai para o mercado a 70 ou 80 euros.
Por década, as grandes empresas declaram Vintage clássico (engarrafado com as marcas principais de cada casa) em dois ou três anos apenas. São os anos clássicos que fazem movimentar o sector, porque atraem a atenção dos principais jornalistas de vinho de todo o mundo. O último é da colheita de 2016 e vai começar a ser vendido agora.
O Rolls Royce dos vintages é o Quinta do Noval Porto Vintage Nacional, com origem numa vinha pré-filoxérica de menos de dois hectares. Uma garrafa do Noval Nacional 1963 custa cerca de 5600 euros. E do 1931 pode valer ainda mais. Com a Grande Depressão de 1929, a Noval foi uma das poucas casas que arriscaram declarar Vintage em 1931. O vinho tornou-se mítico também por ser uma raridade. Que os responsáveis da Noval saibam, só o Governo inglês e o conde de Macclesfield têm um bom stock dessa colheita. A Noval já não possui nada.
Por causa disso, o nome Macclesfield foi ganhando uma aura de mistério e causando alguma (boa) inveja junto dos actuais responsáveis da Noval. Há três anos, o director executivo, Christian Seely, recebeu no Douro uma visita de ingleses amantes de vinho do Porto organizada por uma jornalista do Daily Telegraph. Durante o almoço, um deles, sentado ao seu lado, foi colocando rolhas em cima da mesa. A primeira: Vintage 1931; a segunda: Vintage 1931; a terceira: Vintage 1931. Intrigado e espantado, Christian questionou o homem: “Por acaso, o senhor não é o conde de Macclesfield?”. “Sim, sou sou”, respondeu-lhe o próprio. No final, o conde despediu-se de Christian Seely deixando-lhe um saco com uma oferta. Lá dentro estava uma garrafa de Noval Nacional 1931.
Umas gotinhas deste vintage podiam fazer milagres em muitos dos cocktails de que Miguel Esteves Cardoso fala na sua última crónica. Em cocktails como Manhattan ou Negroni (só conheço de nome, confesso, sou pouco dado a estas bebidas), MEC sugere que se use Porto em vez de vermutes ou outras bebidas doces. Na sua opinião, “é preciso ter a desfaçatez de tratar os vinhos do Porto como ingredientes à procura de novas combinações e novas maneiras de servir”. “Porque não”, diz, “usar um Vintage menos perfeito ou mais novo para fazer uma sangria espectacular?”.
Ó Miguel (desculpe a informalidade), acho muito bem que se dessacralize o consumo do vinho do Porto. A criação do Porto Pink teve esse objectivo. E também já foram inventadas combinações extraordinárias. O Portonic, um aperitivo feito de Porto branco e água tónica com umas folhinhas de hortelã, é uma delas (como pode não gostar de Porto branco? Experimente os Andressen ou os C. Da Silva). Mas usar um Porto Vintage numa sangria não será radical de mais? Pode ser um Ruby Reserva ou, vá lá, um LBV? Não queira destruir a reputação da galinha dourada. Olhe que ainda o matam! (e com razão, digo eu).