Experimentação animal: crueldade ou “mal necessário”?
Cientistas asseguram que a substituição de animais em muitos dos testes de laboratório ainda não é possível, apesar de estarmos cada vez mais perto. Associações de defesa dos direitos dos animais e PAN acusam ciência de estar “ultrapassada”. Em Portugal, há investigadores a trabalhar em alternativas. Pode a ciência sem testes em animais ser uma realidade?
Num “ranking” de temas que geram discussões extremadas entre activistas pelos direitos dos animais e a comunidade científica, a experimentação animal ocupa o primeiro lugar (com grande margem de vantagem face a um segundo classificado). Os primeiros defendem o fim dos actos de crueldade sobre os animais cuja vida passa por servir de cobaia para a investigação científica, com o argumento de que já existem alternativas. A comunidade científica recusa a acusação de crueldade e luta contra a ideia de que já é possível substituir, na íntegra, o papel dos animais na investigação biomédica. Sim, o caminho há-de passar pela substituição total — como a própria directiva europeia de 2010 estipula —, mas vai ser preciso esperar mais do que várias décadas, defendem os investigadores.
“O mito prevalente e propagado é que, como existem algumas alternativas, tudo o que não é substituído é porque os cientistas não querem. Esta não é a minha visão nem dos meus colegas investigadores que usam animais”, começa por dizer Anna Olsson, investigadora do I3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde), a cuja Comissão Ética Animal preside desde 2015. Nuno Franco, cientista e estudioso da ética e do bem-estar animal, vai mais longe: “Não me importava absolutamente nada de ficar sem emprego se isso significasse que já não precisávamos de animais em ciência”. “Sei que, muito provavelmente, vou morrer e vão continuar a ser usados”, antevê o membro da Sociedade Portuguesa de Ciências em Animais de Laboratório (SPCAL), ainda que cada vez menos e em circunstâncias diferentes.
Falar em experimentação animal é falar na “Política dos 3R” — “Replacement” (substituição), “Reduction” (redução) e “Refinement” (refinamento) —, enunciada em 1958 por dois cientistas ingleses preocupados com o bem-estar dos seres usados em investigação fundamental e aplicada. É na aplicação da “Política dos 3R” que assentam as legislações europeia e portuguesa e a questão fundamental colocada pelos investigadores deve ser: é mesmo necessário utilizar animais ou existem alternativas de substituição adequadas? Quando são, de facto, usados, o foco passa para a redução máxima no número de animais e o refinamento das técnicas aplicadas, através da minimização do stress e sofrimento infligidos.
É papel da SPCAL promover os “3R”, ou seja, trabalhar por um “uso relevante, justificado, competente e ético”, propósito que coincide com o da Sociedade Portuguesa para a Educação Humanitária (SPEdH). Mas as duas sociedades diferem na abordagem e discordam em vários momentos. Para Mariana Crespo, presidente da SPEdH, a utilidade das experiências actualmente realizadas com animais é “dúbia”. “Existe uma percentagem altíssima de medicamentos, na ordem dos 92 por cento, que não passa da fase dos ensaios pré-clínicos”, argumenta a psicóloga. “Os testes que estamos a fazer com animais acabam por sem uma espécie de perda de tempo.”
O porta-voz e deputado do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) é da mesma opinião. “Não se trata de uma questão apenas emocional e empática em relação aos animais de laboratório indefesos mas sim de lutar contra uma ciência ultrapassada que ainda utiliza animais nas suas pesquisas e que, no limite, pode levar a resultados pouco confiáveis”, comenta André Silva em entrevista ao P3. “A falibilidade dos modelos animais é enorme (…), é necessário alterar o paradigma no campo científico.”
E é aqui que a discussão se torna inevitável entre as duas facções. “A grande virtude da ciência — que chega a estar em desvantagem aos olhos do público — é procurar ser tão objectiva quanto possível e sê-lo também na informação que transmite”, afirma Nuno Franco. “Há todo um trabalho que é ignorado pelo PAN.”
Nuno, de 35 anos, trabalha no I3S e é, como está previsto na lei, um membro externo do ORBEA (Órgão Responsável pelo Bem-Estar dos Animais) do Instituto de Medicina Molecular (IMM) de Lisboa. Desde 2008 que estuda o tema e em 2013 venceu o prémio da Universities Federation for Animal Welfare (UFAW), na categoria de jovem investigador, com um trabalho sobre “o ponto em que se decide eutanasiar o animal” (ou occisar, como a lei lhe prefere chamar). “Propus uma definição de ‘humane endpoints’ centrada em objectivos científicos, definidos por pontos tão precoces quanto possível e que, tanto quanto possível, seja feita antes de os animais começarem a sofrer”, descreve. A ideia é que seja “eticamente inaceitável” prolongar o stress e o sofrimento dos animais. É função dos ORBEA — figura só recentemente instituída em Portugal — assegurar que toda a máquina da unidade de investigação funciona com foco no animal, em todas as fases desta.
Usam-se cada vez menos animais, dizem os dados
A autoridade responsável pela garantia de aplicação da “Política dos 3R” e pela fiscalização é a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). No site podem consultar-se os dados estatísticos relativos à utilização de animais para fins experimentais em Portugal — mas só entre os anos 2000 e 2011. Em 2011, 46.556 animais foram utilizados para fins científicos: os ratinhos (“Mus musculus”), os ratos (“Rattus norvegicus”) e os peixes-zebra ("Dania rerio") foram os mais requisitados — 24.399, 11.290 e 9.602, respectivamente — e a investigação biológica fundamental a finalidade mais comum. No ano de 2010, o número total de animais utilizados era bem mais elevado (67.359), tal como em 2009 (63.451).
Dados provisórios de 2014 foram tornados públicos pela DGAV após o PAN ter colocado uma pergunta parlamentar (n.º 1953/XIII/1.ª de 9-6-2016), respondida a 31 de Agosto último. Entre 2011 e 2014 verificou-se uma diminuição significativa: foram utilizados 25.606 animais. Os ratinhos e ratos (13.212 e 4258) e peixes zebras e de outras espécies (5620 e 2385) foram os mais comuns e houve um total de 36 estabelecimentos de investigação científica autorizados a utilizar animais em procedimentos. A nível europeu, os dados estatísticos relativos a este tema são divulgados pela Comissão Europeia (CE), que os publica em relatórios. O mais recente apresenta, também, números de 2011 e indica que um total de 11.481.521 animais foram utilizados em experiências científicas, menos 500.000 (4.3%) do que em 2008, ano do último documento divulgado.
“Nós [cientistas] facultamos toda a informação à DGAV, mas esta não dispõe de meios para a tornar pública”, defende Nuno Franco, que chama a atenção para a elaboração de um resumo não técnico de cada projecto de investigação. Este é outro dos requisitos da directiva e inclui “o que se faz aos animais, e porquê, e onde é que entram os 3R”, resume. O decreto-lei 113/2013, que resultou da directiva 2010/63/EU, prevê a publicação de todos estes dados, anualmente. O P3 tentou contactar a DGAV, por diversos meios, mas não obteve qualquer resposta aos pedidos de esclarecimento sobre o tema.
As duas sociedades ouvidas pelo P3 convergem nas críticas à actuação da DGAV. A “Declaração de Lisboa”, formulada em 2015 na II Conferência Internacional de Alternativas à Experimentação Animal, promovida pela SPEdH, pede uma “maior transparência em todo o processo” e diligência na aplicação das medidas já decretadas, nomeadamente a criação da figura do ORBEA. “Temos conhecimento de que a forma como muitos comités de ética operam é mais fictícia do que prática. Não conseguem, objectivamente, avaliar em tempo útil todas as experiências que são feitas em animais”, acusa Mariana Crespo. “Metade das instituições ainda não têm um ORBEA — e isto é um número por baixo”, estima Nuno Franco, que fez parte da equipa multidisciplinar e internacional responsável pelas recomendações sancionadas pela Comissão Europeia que expandem a directiva. Capacidade organizativa e “expertise” é o que falta a muitas destas entidades — e é “essa inércia” que tenta combater.
Apesar disso, a maior evolução nos últimos anos, assegura o investigador, é precisamente legislativa: “Neste momento, em Portugal, temos a legislação mais avançada do mundo de protecção animal”. “Se comprares um hamster numa loja podes fazer o que quiseres com ele, infelizmente, ainda que agora haja mais controlo. Mas se usares um hamster num contexto científico ou educativo — também coberto pela directiva —, o escrutínio é enorme e muito complexo.” A aprovação de um projecto de investigação que pressuponha experimentação em animais exige uma formação específica de, no mínimo, 40 horas por parte dos profissionais envolvidos, licenças emitidas pela DGAV, um resumo não técnico e previsões de classificação de severidade. A severidade, garante, “é classificada por cima” (“in dubio pro animal”), para cada indivíduo. O deputado André Silva concorda com a importância da directiva europeia, que vê como “um avanço”, mas não está optimista. “Não interessa ter leis avançadas se não existe fiscalização.”
Na “Declaração de Lisboa” constam ainda exigências de criação de “uma escala objectiva de avaliação do sofrimento dos animais” — algo que Nuno Franco diz ser “objectivamente impossível” por existir “sempre alguma subjectividade ao avaliar a severidade de qualquer intervenção, em humanos ou animais” — e a disponibilização de filmagens das experiências realizadas com animais, uma medida que a própria presidente da SPEdH entende como “um bocadinho mais polémica”. Estas exigências revelam “uma grande desconfiança perante os cientistas”, comenta Franco. Mariana Crespo quer ver o tema discutido em Assembleia da República já na próxima sessão legislativa e, para isso, está online uma “Petição por uma ciência mais rigorosa”, com perto de 5000 assinaturas. A associação ANIMAL também promove uma petição online pelo fim destas “experiências cruéis”, apelidada de “Pat-ição”, que já tem mais de 58.000 subscritores. Uma outra petição, com pouco mais de 1296 assinaturas, pede a criação de um Conselho Nacional de Experimentação Animal, cujo estabelecimento está previsto pelo decreto-lei 113/2013 e se encontra, de acordo com a resposta à pergunta parlamentar já citada, “em processo de publicação”.
“Querem impor, por petição, um avanço científico e tecnológico. Não é assim que funciona”, resume o investigador. O desenvolvimento tecnológico é um passo essencial no caminho para a substituição total de animais em ciência e depende de outro factor indispensável, o investimento financeiro. “O investimento no desenvolvimento de alternativas para a indústria cosmética permitiu o fim da experimentação animal na Europa”, já em 2013, sublinha Anna Olsson. Cientistas e activistas coincidem: sem financiamento dedicado, as alternativas não podem ser desenvolvidas. E em Portugal este financiamento é inexistente, além de faltarem entidades exclusivamente dedicadas. O que se verifica é a existência de projectos de investigação paralelos para o desenvolvimento de modelos celulares que podem, no futuro, substituir animais em testes.
Há alternativas em curso, falta investimento
Num outro piso do I3S — o maior instituto de investigação em saúde do país, inaugurado em Maio, no Porto —, Tiago Alexandre Santos trabalha numa equipa que cria sistemas celulares tridimensionais que imitam um estômago. O projecto tem uma forte componente de nano-tecnologia (a área de estudo do investigador de 34 anos) e, futuramente, “pode ser uma excelente alternativa à experimentação animal”. Em causa está “um modelo celular onde se possam testar fármacos e que imite o mais possível o órgão humano”. Já existe um modelo físico, de cerca de 12 centímetros, e o suporte financeiro adveio da área da nano-tecnologia e não com o objectivo primário de estudar alternativas à experimentação animal. “Em termos de vantagem, a nível de indústria farmacêutica, é demasiado óbvio”, acredita o jovem natural de Viseu. Esta indústria “tem um forte investimento na procura de novos fármacos que possam melhorar a condição humana”, mas os resultados e o retorno “não são imediatos”.
Num modelo celular como o que está a ser desenvolvido no I3S — aproveitando os muitos estudos já feitos sobre cancro do estômago pelo IPATIMUP —, o mais importante é imitar o órgão, “in vitro”. Só assim será possível transformar o modelo “numa alternativa viável” ao uso de animais e “atrair mais financiamento, abrir mais as mentes das pessoas”. O projecto, ainda numa fase precoce e assume relevância acrescida pelo facto de Portugal ter uma forte incidência de cancro do estômago.
Esta espécie de estômago sintético — à semelhança de modelos celulares de outros órgãos humanos — pode vir a contribuir para tratamentos cada vez mais específicos. O impacto disto é grande. “Quando se faz um tratamento [como o do cancro], há células normais que acabam por morrer e daí os efeitos secundários como náuseas e vómitos”, explica o cientista.
Tiago Santos, que se doutorou em Dublin, na Irlanda, e trabalhou alguns meses na Hungria, ainda não fez investigação com recurso a experiências animais. A estreia vai acontecer, precisamente, neste projecto. “Quer queiramos quer não, ainda é fundamental para conseguirmos um bom término de experiência.” Contudo, não tem dúvidas: “O sonho de qualquer cientista é não usar animais para testar os seus sistemas e projectos.”
Em Portugal, sublinha, existe “muita regulamentação e muito cuidado” nesta área. A preocupação e a sensibilidade portuguesas contrastam, por exemplo, com o panorama da Hungria, que Tiago conhece bem. Na Hungria, “a experimentação animal é usada quase como um tubo de ensaio.” A ideia do “tubo de ensaio” é um exagero, claro, mas a ideia prevalecente da comunidade científica portuguesa é esta: a regulamentação e a legislação portuguesas protegem os animais. “É uma mentalidade do próprio país e das pessoas. Tivemos um partido de protecção animal eleito para a Assembleia da República, a mudança é notória.”
André Silva é peremptório a discordar: “Usamos os animais porque não é ético fazer experiências em humanos, não questionamos, é algo que nos foi incutido e julgamos ser um mal necessário. Mas há outras soluções.”
Artigo actualizado às 10h39 de 21 de Setembro de 2016.