Voando sobre o ninho de Kanye West

The most beautiful thoughts are always besides the darkest é ideia que já estava inscrita no disco-título My Beautiful Dark Twisted Fantasy. Mas agora, em Ye, a coisa está mais negra (mais bela?) do que nunca. O novo álbum de West não é para amar nem odiar: é para escutar (se isso ainda for possível).

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Depois da tempestade, a bonança? No caso de Kanye West, autêntico man under the influence (para citar o filme de Cassavetes), o aforismo não vale na plenitude – talvez porque, com o americano, nada vale por inteiro, tudo está sujeito a contradição, distorção, autofagia (“I hate being Bi-Polar / its awesome”, lê-se na capa do disco gravado nas montanhas do Wyoming).

West afirmou um dia que os rappers eram as rockstars do século XXI e, desde então, a sua vida (pessoal e artística, elas não se distinguem) parece ter-se focado em cumprir esse propósito: o casamento com uma estrela de reality shows (entre outros freak shows), depressões e internamentos, atritos com outros artistas e amizades envenenadas (Jay-Z), afirmações incendiárias (quando não simplesmente ominosas, como a de que a escravatura foi, de alguma forma, uma “escolha” dos próprios negros), o apoio a figuras como Trump – acima de tudo, uma insistência em ser controverso, em fazer passar-se por uma espécie de “consciência estridente” (em vez de silenciosa) global detentora de uma qualquer verdade politicamente incorrecta, incómoda mas supostamente urgente (sempre sob o motto, ingénuo e caricatural, de que os loucos são, na verdade, seres “iluminados”). No meio disto, há a música – ou houve, depois tornou-se secundária, agora parecendo ressurgir num estado de permanente flutuação (antes deste trabalho em nome próprio, produziu, com grande nível, o EP DAYTONA de Pusha T). É importante, porém, lembrar àqueles que só agora apanharam o comboio – e para quem, muito provavelmente, o seu nome é apenas sinónimo de idiotia – que, para lá do alarido patético que tem marcado a sua vida recente, West é um dos mais virtuosos e fecundos músicos que o século XXI viu despontar, errático e melancólico, sensível e megalomaníaco, um melómano que revolucionou os cânones do hip-hop, do R&B e de toda a música pop desde The College Dropout (2004), o seu primeiro e estupendo álbum aclamado pela crítica e por um público que tanto congregava fans de rap como gente até então desligada do género (sobretudo os ouvintes das cenas indie rock e electrónica, que apreciaram, por um lado, o seu ecletismo e experimentação sonoros, e, por outro, a coolness e o descomprometimento da sua atitude, provavelmente os mesmos atributos que hoje lhe faltam).

West é, provavelmente, o maior responsável (acima de Timbaland, Neptunes e Drake) pelo modo como toda ela (pop) foi absolutamente contaminada pelo hip-hop (do modo de produção às sonoridades propriamente ditas), algo que, de resto, não se fica só pela música, antes se estendendo, mais abrangentemente, a toda a pop culture, da moda urbana (não só pelas peças que desenha para a sua marca ou para outras, caso da Adidas, como pela sua própria e característica indumentária habitual: peças lisas, sem padrões, normalmente de cor preta ou escura, calças apertadas que desembocam em botifarras, t-shirts largas, pingonas), à ambiência dos clubes nocturnos (experimentem tocar Niggas in Paris às 3h da manhã em Mumbai, Joanaesburgo ou Londres), de uma descomplexada atitude de auto-estima e auto-engrandecimento (com uma incalculável importância, importância, por exemplo, para miúdos à margem ou simples low-lifes desta vida) ao próprio modo como os jovens, hoje, usam a linguagem entre si – para o bem e para o mal, West é, provavelmente, o mais citável (quotable) rapper da história (como se houvesse um verso seu para cada situação da vida) e, também, o mais “viralizado” via “memes” e demais parafernália internetesca.

O que não mata, musica-se

Os mesmos que, a propósito das polémicas relacionadas com os abusos cometidos por alguns artistas contra mulheres no passado, têm defendido a imperiosa necessidade de distinguir entre a pessoa e o criador, encontram aqui basta matéria: o novo álbum do mal-amado de Chicago é uma peça extraordinária, extravagante e inventiva, na senda dos pontos mais altos da sua obra. Com os quais, aliás, vai tecendo inegáveis ligações, sobretudo alguns mais remotos (e saudosos): se Ghost Town – iniciada sob um lindíssimo sample do rocker galês Dave Edmunds e que depois prossegue com Kanye a cantar como há muito não o ouvíamos – parece saída direitinha de My Beautiful Dark Twisted Fantasy (sobretudo na guitarra eléctrica, no coro e, até, no modo como West entoa Someday, trazendo à memória Run Away), “Violent Crimes” (que evoca Daughters de Nas, dois machos a olharem para as filhas e a reflectirem sobre a parentalidade e a masculinidade) relança-nos para a sua obra-prima 808s & Heartbreak. E se este último foi criado sob o signo da perda da mãe, Ye é, digamos, um disco criado no seguimento da perda da sanidade (ou parte dela) e da admiração dos fãs e dos pares. Desengane-se, porém, quem pensar que Kanye busca aqui algum tipo de redenção, porquanto isso é algo que, pura e simplesmente, não lhe assiste. Não porque ele não reconheça os seus erros e fragilidades (pelo contrário, as letras estão disso carregadas), mas porque insiste em fazer deles discurso e performance artísticos (e nem sequer é com um propósito “terapêutico” ou coisa que o valha).

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Luís Ramos/arquivo

Por isso é que, logo a abrir na belíssima I Thought About Killing You (que se inicia numa toada melódica sem batida, reverberando as novas paletes sonoras de jovens como Smino, J.I.D. ou Saba), lhe ouvimos (depois das revelações suicidárias): “I think this is the part where I'm supposed to say something good to compensate it so it doesn't come off bad / But sometimes I think really bad things” (e o You do título tanto é o ouvinte ou qualquer um que o critique, como, na realidade, ele próprio, como fica insinuado pelo diálogo, em modo “esquizofrénico”, criado através da distorção do pitch). Se a incursão pela sua desordem mental e emocional – na qual West mistura ideias ou visões com episódios da vida real, espécie de Truman Show contínuo – prossegue, com particular enfoque no uso de drogas, em “Yikes” (que, como em quase todas as canções, tem o histórico Mike Dean, seu colaborador de longa data, na co-produção), a verdade é que todo o disco pode ser visto, na sua entrega, exposição, intensidade, saturação, como um “tratado da instabilidade” de alguém metade super-criador, metade super-louco (a menção à bipolaridade como um “super-poder”, seguida de uma macabra gargalhada, em “Yikes”). “All Mine”, selvagem canção de mulheres e bravado, e “Wouldn’t Leave” (que termina, comoventemente, com um destinatário concreto: “This what they mean when they say / ‘For better or for worse’, huh? / For every down female that stuck with they dude / Through the best times, through the worst times”) constituem um díptico esclarecedor da personalidade torturada e explosiva do seu autor, com prolongamento, aliás, na própria sonoridade: ao beat de baixo manipulado, agressivo, acompanhado pelas tarolas pistoleiras, da primeira das canções referidas (destaque para o espantoso refrão de Valee), sucede-se a infinita doçura das teclas e dos synths da segunda, por sua vez secundados pelos pontuais ecos de crianças em fundo (é como se voltássemos à meiguice de Family Business, de The College Dropout).

Curioso como, não obstante o extenso rol de convidados (PARTYNEXTDOOR, Kid Cudi, John Legend ou, sobretudo, a bem menos conhecida 070 Shake, responsável pelo final apoteótico de Ghost Town e pelo magnífico refrão de Violent Crimes), tal opção nunca cria dispersão nem a sensação – como tantas vezes acontece – de que eles só estão lá para encher, antes funcionando como uma espécie de banda coral de suporte – moral, também – à voz central (rappada, falada, cantada) de West, inconfundível no seu flow febril, franco, viciante. Essa mestria na conjugação de um puzzle de vozes, samples (dos mais distantes universos sónicos) e instrumentos com ideias ora cruas, ora poéticas, é algo que só está ao alcance de um grande compositor de canções como é, diga-se o que se disser (ou melhor: diga ele as baboseiras que disser), West, qualidade robustecida pela grandeza gospel (os coros, os órgãos cristãos sempre presentes) que vem marcando – talvez freudianamente – a sua obra nos últimos anos. Alguém que, mesmo rodeado de equipamento e colaboradores sofisticadíssimos, mantém sempre uma marca experimental (no modo como desrespeita as convenções da canção e ensaia mudanças de direcção surpreendentes e supostamente pouco recomendáveis) e lo-fi no seu trabalho.

Não deixa de se revelar assaz hipócrita a forma como algumas publicações americanas que sempre idolatraram West por aspectos que a nós sempre nos mereceram reserva (as punchlines na fronteira do mau-gosto, o descaramento, o narcisismo extremado), e que se servem de toda e qualquer manifestação sua para uma desavergonhada exploração do clickbait, venham agora a terreiro condenar o disco por esses mesmíssimos aspectos (francamente, fica a ideia de que, aproveitando o hype actual segundo o qual é de bom-tom reprovar West, não escutaram o disco seriamente, só isso explicando que nem sequer tenham compreendido como ele é o que mais próximo está, afinal, dos seus três primeiros e consensuais álbuns…). Anunciado como um dos vários lançamentos que o americano pretende fazer este ano pela sua GOOD Music, Ye é um disco que, permanentemente assombrado pela morte, acaba, afinal – talvez por causa disso mesmo, de uma proximidade que é, também, uma “resistência a” –, por se revelar tremendamente vivífico (não por acaso West se auto-intitula de zombie em “Yikes”), naïf, inspirador: “Once again I am a child / I let it all go, of everything that I know, yeah / And nothing hurts anymore, I feel kinda free / We're still the kids we used to be”.

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