O padre gritou e toda a malta ajudou: São Cristóvão já está em obras
Campanha de crowdfunding permitiu financiar a substituição do telhado e arranjos exteriores. Lá dentro, a talha empoeirada e as telas negras mostram o quanto há a fazer para recuperar esta igreja do século XVII.
Já há andaimes em redor da Igreja de São Cristóvão, na Mouraria. Quatro anos depois de ter ganho um Orçamento Participativo e após uma inovadora campanha de crowdfunding, o pároco conseguiu finalmente mandar substituir o telhado, arranjar as paredes exteriores e as cantarias.
As intervenções que agora se iniciaram, com fim previsto para Setembro, vão custar 140 mil euros, dinheiro angariado exclusivamente através do contributo popular. “Já só me faltam 860 mil euros”, gracejou o padre Edgar Clara no altar, com Fernando Medina na primeira fila e atento à prédica.
Por isso, o sacerdote puxou da Bíblia para ler uma passagem do Evangelho segundo São Mateus: “E Jesus disse à mulher cananeia: ‘Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos’. A mulher retorquiu: ‘É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos’.” Seguiu-se a breve homilia: “Se houver por lá umas migalhinhas do turismo dos estrangeiros, desse bendito imposto, a gente aceita.”
À sua volta, a talha dourada enegrecida, as telas inelegíveis e a madeira podre atestam o volume de trabalho que ainda vem por aí. “Esta mulher era estrangeira e pediu a Jesus um milagre”, continuou o padre Edgar. Correu-lhe bem a ousadia, pois Jesus apiedou-se dela e curou a filha doente. “Já percebi que não há momentos grátis”, riu-se o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que não citou a Bíblia, mas uma frase atribuída a Winston Churchill: “Se estamos a cortar na cultura, estamos a fazer a guerra para quê?”
“Tenho um carinho muito grande por esta igreja e por todas desta zona. São locais da nossa História e da nossa cultura”, disse Fernando Medina.
Nos últimos quatro anos, com os 75 mil euros ganhos através do Orçamento Participativo, a paróquia lançou inúmeras iniciativas para convencer lisboetas e turistas a contribuírem para o restauro do velho templo, aqui erigido desde o século XVII. Foi possível, disse Edgar Clara, “mais do que duplicar” aquele montante. A venda de telhas para o novo telhado, a 20 euros cada, rendeu 50 mil euros. Os biscoitos, produzidos pela Cozinha Popular da Mouraria e a 5 euros o saco, valeram 10 mil euros. As noites de fado, co-organizadas com a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, deram 5 mil euros. A isto somaram-se donativos vários e mecenato de empresas.
O diabo foi a papelada. “Mais rápido consegui fazer 170 mil euros do que obter as licenças. Mais rápido consigo ser gestor do que mestre-de-obras”, afirmou o pároco. “Todos os dias faltava um papel”, suspirou, risonho. “Já está a pagar pelos pecados que cometeu e pelos que há-de cometer, pois já está a passar o purgatório dos papéis na câmara”, brincou Fernando Medina.
Feitos os gracejos, Edgar Clara explicou os próximos passos. “O nosso objectivo é garantir que as coisas básicas do edifício estão estáveis. As paredes, o telhado, as janelas e a electricidade”, disse. Quando acabar a intervenção exterior, a paróquia quer pôr novas caixilharias, mudar o quadro eléctrico e a iluminação. A junta de Santa Maria Maior comprometeu-se a ajudar financeiramente na última fase. Mas novas lâmpadas não vão disfarçar o estado lastimável em que se encontram as telas, atribuídas ao pintor Bento Coelho da Silveira, que forram toda a igreja. O padre Edgar está já à procura de mecenas que queiram financiar o restauro dessas obras de arte, orçado em 360 mil euros.
Enquanto decorrerem os actuais trabalhos, a igreja não vai fechar ao culto e, uma vez por semana, haverá visitas guiadas para explicar cada passo da intervenção. Está ainda previsto haver jantares culturais, intervenções artísticas nos andaimes e um livro – tudo para continuar a angariar fundos. “Se todos os nossos concidadãos fossem assim, isto andava bem melhor”, disse Fernando Medina ao padre Edgar. Já cá fora, o sacerdote não deixou o autarca ir embora sem este lhe comprar mais uma telha. São mais 20 euros em caixa.