Do Maio de 68 do avô Artur às lutas da neta Jaspal
Artur Monteiro de Oliveira estava a fazer 22 anos quando foi apanhado, em Paris, pelo Maio de 68. Andou nas manifestações, distribuiu jornais, levantou a sua quota parte de paralelepípedos. Hoje a sua neta Jaspal é dirigente estudantil e foi um dos rostos da ocupação da Faculdade Paris-Tolbiac, que esteve 26 dias nas mãos dos estudantes até ser evacuada pela polícia. Uma família de activistas com origens no Porto.
Com 20 anos e na iminência de ser mobilizado para a guerra colonial, depois de ter passado uns meses nos calabouços da PIDE, o portuense Artur Monteiro de Oliveira decidiu, em 1966, emigrar a salto para França. Não imaginava que daí a menos de dois anos estaria a manifestar-se nas ruas de Paris entre gente que gritava palavras de ordem tão estranhas como “é proibido proibir!”, “a imaginação ao poder!” ou “a beleza está na rua!”.
Hoje, aos 72 anos, e depois de uma vida dedicada à acção social, começa a convencer-se de que, se calhar, nunca teve “alma de radical”, mas nem por isso deixa de recordar com nostalgia essas semanas alucinadas em que parecia realista pedir o impossível. E é com um discreto orgulho que vê a sua neta Jaspal honrar a tradição activista da família, que ele próprio herdou do seu avô Marcolino Monteiro, um anarco-sindicalista do Porto que esteve várias vezes preso durante a ditadura militar que precedeu o Estado Novo.
Estudante de Demografia na Faculdade de Paris-Tolbiac e presidente da secção parisiense da Union Nationale des Étudiants de France (UNEF), o mais importante sindicato estudantil francês, Jaspal De Oliveira Gill é, aos 23 anos, uma das principais dirigentes do actual movimento de protesto contra a reforma do sistema de acesso ao ensino superior promovida pelo Governo de Emmanuel Macron. E o papel que desempenhou na ocupação da Faculdade Paris-Tolbiac, gerida durante 26 dias pela autodenominada Comuna Livre de Tolbiac – o edifício foi evacuado à força pela polícia na madrugada de 20 de Abril –, veio dar ainda mais notoriedade a esta jovem líder estudantil, que vê no Maio de 68 uma referência estimulante, mas não um exemplo que possa ou deva ser imitado.
“Temos sempre na cabeça o Maio de 68, que ficou na história e na memória colectiva como um movimento vitorioso dos estudantes e dos trabalhadores”, reconhece Jaspal. Mas acrescenta: “Sabemos que foi incrível, que houve milhares de pessoas nas ruas, mas não queremos reproduzir o Maio de 68, estamos aqui porque a Universidade está a ser atacada e é preciso reagir”. Refere-se à nova lei que regula o acesso ao ensino superior (Orientation et réussite des étudiants, vulgo ORE), apresentada pela ministra do Ensino Superior, Frédérique Vidal, como uma tentativa de reduzir as altas taxas de insucesso nas universidades e de pôr fim a um sistema de acesso que incluía sorteios aleatórios, mas na qual Jaspal vê o pior ataque ao ensino superior público desde o célebre projecto de lei Devaquet, no segundo governo de Chirac, que acabou por não resistir à contestação e caiu no final de 1986.
Num ano em que se espera um significativo aumento do número de candidatos ao ensino superior, esta lei, “em vez de criar novos espaços, como se fez depois de 68, aposta na competição entre universidades e na selecção dos universitários”, nota a activista, que acusa Macron de ter usado as reconhecidas fragilidades do modelo anterior como pretexto para impor uma “grande reforma liberal” que, prevê, “vai fechar as portas do ensino superior a muita gente, impedir na prática os alunos dos subúrbios de entrarem nas principais universidades parisienses, e criar licenciaturas ‘à la carte’ e diplomas de primeira e de segunda”.
Não muito noticiada em Portugal, a contestação à lei tem sido considerável. Jaspal garante que houve “algum tipo de mobilização” em 75 por cento das universidades, e que 46 por cento “estiveram ocupadas pelo menos durante um dia”.
O movimento começou em Janeiro, a 1 de Fevereiro realizou-se uma primeira manifestação de rua com alguma dimensão, mas o ponto de viragem foi a noite de 22 para 23 de Março, quando um grupo de homens mascarados e armados com bastões expulsou violentamente de um anfiteatro da Faculdade de Direito de Montpellier os estudantes que o ocupavam, provocando vários feridos, três dos quais tiveram de ser hospitalizados. Acusado de ter sido cúmplice, se não o instigador, da invasão, o reitor Philippe Pétel foi imediatamente suspenso de funções, e o resultado do inquérito administrativo ordenado pela tutela veio agora confirmar a sua responsabilidade nos acontecimentos.
“Depois de Montepellier, as coisas explodem”, resume Jaspal. E não deixa de ser uma coincidência curiosa que o rastilho que agudizou a contestação em 2018 tenha ocorrido na noite de 22 de Março, exactamente 50 anos após a ocupação da Faculdade de Nanterre e a criação do Movimento do 22 de Março, que teve em Daniel Cohn-Bendit a sua figura mais mediática e que marcou o início da revolta estudantil de 1968.
“Em Tolbiac passámos a ter de repente assembleias gerais com dois mil estudantes”, conta a dirigente da UNEF, uma organização que, também ela, foi determinante há 50 anos, quando era liderada pelo carismático Jacques Sauvageot, um dos líderes reconhecidos do Maio de 68, a par de Cohn-Bendit ou Alain Geismar. “Decidimos ocupar a faculdade”, explica, “para nos reapropriarmos de um local que é nosso, mas onde cada vez mais nos retiram espaço e nos impedem de nos reunirmos e organizarmos”.
Comuna Livre de Tolbiac
Durante quase um mês, a Faculdade Paris-Tolbiac, cujo nome oficial é Centre Pierre-Mendès-France e tem como sede uma torre de 23 andares, foi gerida pela Comuna Livre de Tolbiac, um colectivo estudantil sem líderes expressos, que não se limitou a ocupar, mas promoveu também aulas alternativas: professores sintonizados com o movimento, mas também políticos ou dirigentes sindicais, foram a Tolbiac dar palestras sobre múltiplos temas, do sexismo à história do Maio de 68. A aventura terminou na madrugada de 20 de Abril, quando a polícia invadiu a faculdade e evacuou o edifício, que desde então continua sem aulas e vedado aos estudantes, que só podem entrar para fazer exames.
Embora Jaspal evite cautelosamente enfatizar as semelhanças com o que se passou há 50 anos, acredita que a intensa mediatização do aniversário do Maio de 68 acabou por ajudar à mobilização dos estudantes. “Já me perguntei que estratégia foi a de Macron ao escolher uma altura destas para fazer a sua reforma”.
E se a história não se repete, é inegável que há neste movimento aspectos que favorecem as comparações, como a estratégia de ocupar universidades ou as tentativas de concertar acções com as lutas dos trabalhadores. “Há essa vontade de convergência, que é um pequeno paralelo com 68”, observa Jaspal. “Os estudantes que têm falado com os ferroviários ou os enfermeiros em greve, e há trabalhadores que têm vindo às nossas assembleias gerais”.
Já uma das diferenças mais ostensivas face a 68 pode ser simbolizada no próprio facto de Jaspal dirigir a poderosa UNEF em Paris (a nível nacional, o sindicato também é presidido por uma mulher) e ser um dos rostos mais visíveis da actual contestação. Há 50 anos, apesar das fotografias icónicas de raparigas agitando bandeiras nas manifestações, os líderes do movimento estudantil eram todos rapazes.
Talvez para evitarem uma colagem excessiva ao Maio de 68 neste seu mediatizado cinquentenário, os universitários de 2018 têm também reivindicado outros e mais recuados predecessores. E não será por acaso que vários dos grupos que agora ocuparam faculdades se auto-intitularam “comunas”. Quando a primeira ronda de resultados às candidaturas ao ensino superior foi divulgada, no dia 22 de Maio, alguns dos estudantes que então desfilaram em protesto pelas ruas de Paris deixaram nas paredes pichagens que diziam: “Mai 1968 on s’en fout, on veut 1871” [“Estamo-nos nas tintas para o Maio de 68, queremos 1871”, o ano da Comuna de Paris].
Mas apesar desta e doutras manifestações, uma das fragilidades deste movimento estudantil, que por enquanto ainda não conseguiu que o Governo recuasse um milímetro, tem sido justamente a incapacidade de promover grandes acções de rua. E também não se verificou uma adesão significativa dos alunos liceais, que são afinal os principais visados pela nova lei. Jaspal acredita que os liceus acabarão por se mobilizar quando forem conhecidos os resultados das candidaturas ao ensino superior, mas, até ver, e apesar de algumas ocupações prosseguirem, e de haver universidades em que os estudantes estão a fazer greve aos exames, o movimento parece estar a perder alguma energia.
Já ela, Jaspal, tem energia para dar e vender e, saindo a quem sai, não é de desistir facilmente. Não apenas como o avô, mas também como o pai, Helder, que aos 12 anos começou a colaborar com a Greenpeace – escreveram-nos uma carta a pedir autorização, lembra Artur –, ou a mãe, Sandrine (filha de um linguista indiano), que Jaspal se lembra de ver participar em piquetes para impedir a expulsão de famílias africanas que ocupavam um prédio vizinho. Ou ainda a sua avó paterna, Jacinta Sarmento, também ela uma lutadora antifascista, que estava presa em Lisboa quando o namorado deu o “salto” para França e só depois se lhe juntou.
“Na minha família toda a gente é activista, é uma coisa transmitida de geração em geração, mas o mais interessante é que cada um de nós descobre o seu próprio modo de ser militante”, diz Jaspal. “O meu avô passou-me esse gosto, e também o meu pai, que é mais ecologista, mas o sindicalismo foi uma escolha minha”.
Quando ouve Jaspal falar de uma frente unida de estudantes e trabalhadores contra a política liberal de Macron, Artur Monteiro de Oliveira receia que essa “convergência de lutas” possa ser, como já o terá sido em 68, algo ilusória, mas longe dele pretender arrefecer-lhe os ânimos. “O que importa é que ela tenha esta experiência, que viva o que tem a viver”.
Até onde chega a sua memória, a pulsão combativa da família remonta pelo menos ao seu avô materno, militante anarco-sindicalista, com quem viveu em criança numa casa, há muito demolida, que ficava próxima da Rua Escura, na Sé, numa zona pobre do centro do Porto. “Era um homem de poucas falas e poucos risos, mas acho que gostava de mim: levou-me à grande manifestação de apoio a Humberto Delgado [em 1958] e foi ele que me ensinou a meter panfletos nos escapes dos carros e a deixá-los molhados no cimo dos prédios, para que voassem para a rua quando o sol os secava”, conta.
Os pais de Artur tinham-se separado quando este era bebé, e é já com 11 anos que vai finalmente morar com a mãe para a Rua de Camões. Ainda frequenta o liceu Alexandre Herculano até ao 3.º ano, mas vê-se obrigado a desistir dos estudos e começa a trabalhar aos 13 anos na firma Neolux, que produzia anúncios luminosos.
Aos 15 anos já colabora com o PCP. “No Porto, com vontade de estudar, mas sem meios para isso, uma pessoa volta-se para o que há”, explica. E o que havia “era o Cineclube, onde estava o Henrique Alves Costa, os Fenianos, o TEP, de António Pedro, a cooperativa Árvore, que estava a começar”. É nestes meios que conhece pessoas ligadas ao partido, como Virgínia Moura, que era quase sua vizinha. A partir dos 17 começa a ter actividade clandestina mais séria e, a dado momento, pedem-lhe que aloje umas funcionárias do partido em casa da mãe, que alugava quartos, o que o obriga, por razões de segurança, a abrandar o trabalho partidário. O que não evita que venha a ser preso pela PIDE, “talvez por denúncia”, em Outubro de 1965. Tinha 19 anos.
Só foi libertado em Fevereiro de 1966 e diz ter-se sentido “um pouco abandonado” pelo PC durante esses meses de isolamento, nos quais, para passar o tempo, organizava jogos de futebol com 11 filtros de cigarros de cada lado. “Deve ter havido o receio de que eu falasse”, supõe. “O único apoio que tive foi dos advogados Arnaldo Mesquita e Sousa e Castro”.
É na cadeia que começa a ter “algumas dúvidas sobre a linha política do partido”, e quando sai e se vê confrontado com ordens para se apresentar na Companhia Disciplinar de Penamacor, de onde depois partiria para a guerra colonial na Guiné-Bissau, decide desertar e emigrar para França, uma opção que o PCP, empenhado em fortalecer a sua organização nas forças armadas, censurava. Mas o passador que o irá ajudar a transpor a fronteira até é um camarada do partido.
Gare Salazar
Artur sai do Porto em plena noite de S. João e as coisas começam por correr mal. “Iam connosco alguns emigrantes económicos que foram presos e tive de ficar dois dias fechado num sótão, em Chaves”. E para piorar, quando, numa dessas noites, espreita para a praceta onde ficava a casa, reconhece um dos agentes da PIDE que o submetera à tortura da “estátua”. Pensou logo o pior, que estava ali por ele, mas afinal não estava.
Quando finalmente põe o pé em França, munido do bilhete para Paris que o passador lhe entregara, gasta algum do pouco dinheiro que leva a comprar o Le Monde e o jornal L’Humanité, então órgão do Partido Comunista Francês (PCF). “Mas só tive coragem de abrir o L’Humanité na casa de banho”, confessa. Levará algum tempo a libertar-se dos automatismos da clandestinidade. “A primeira vez que uns companheiros me contactaram a combinar encontro para uma manifestação, fizeram-no pelo telefone, e eu fiquei logo desconfiado: será que são mesmo amigos?”.
Chegado a Paris, só tinha o contacto de uns portugueses que estavam instalados no hotel Excelsior, na Rue Cujas, no Quartier Latin, “em frente ao hotel onde então morava Maria Lamas”. Só que esses amigos, com quem efectivamente viria a viver (três num mesmo quarto) tinham saído e tardou a encontrá-los. Em Paris, praticamente falido e com o pouco francês que aprendera em dois anos de liceu, sugeriram-lhe que poderia ganhar dinheiro distribuindo papéis à saída da Gare Saint-Lazare. E assim fez durante alguns dias, uma vez vencida a inicial apreensão que lhe causou o estranho nome que os franceses tinham dado à estação. “É que percebi ‘Salazar’”, confessa a rir-se, “e aquilo deixou-me confuso: então ele também está cá?!”.
Já acomodado no Quartier Latin, é com a ajuda de uma organização protestante, a Cimade, que arranja trabalho na Renault, na zona de Boulogne-Billancourt. Começa em Julho e inscreve-se imediatamente na grande federação sindical francesa, a CGT, próxima do PCF, que lhe proporciona uma formação de vários dias, da qual recorda, pela sua qualidade, a intervenção do então director do jornal sindical Vie Ouvrière, Henri Krasucki. O que mais o espanta, contudo, é o facto de a formação ser custeada pela empresa. “O patrão pagava para que eu aprendesse a reivindicar”.
Esta consciência aguda das diferenças entre uma ditadura e uma democracia, afastava-o por vezes dos seus companheiros de luta franceses. “Houve uma manifestação, ainda antes de 1968, em que gritavam ‘abaixo a censura!’ porque um jornal se queixara, sem razão, de que que fora censurado, e lembro-me de dizer: ‘Vocês não sabem o que é a censura’. É claro que sabiam, porque a França viveu períodos de ocupação e ditadura, mas aquilo chocava-me um bocado”.
Quando saía do trabalho, voltava ao Quartier Latin, onde frequentava à noite a Alliance Française. E em Novembro de 1967 deixa a Renault e passa os meses seguintes a fazer limpezas em estúdios de cinema. “Entrava às 5h30 e saía às 10h30, o que até me dava mais tempo para o trabalho político, que era sobretudo junto dos emigrantes portugueses”. Artur organizava-lhes as “permanências sociais”, isto é, tratava-lhes dos papéis e de outras burocracias, por vezes escrevia-lhes cartas para a família, o que também servia de pretexto para a doutrinação ideológica. “Era uma actividade pessoalmente desinteressada, mas politicamente motivada”. É também nesta altura que lança com alguns amigos o Jornal do Emigrante”, bastante abertamente político, cujo primeiro número saiu em Janeiro de 1968.
Com a chegada a Paris de Jacinta, que entretanto fora libertada, muda-se para outro quarto de hotel, perto do Odéon. Aí compunha as contas trabalhando uma noite por semana no próprio hotel, como depois faria em Montparnasse, no Hotel du Ponant, muito frequentado por portugueses – “o José Mário Branco e a Isabel [Alves Costa] apareciam bastante por lá” – para pagar parte dos seus estudos no Instituto de Ciências Sociais de Montrouge.
O seu primeiro envolvimento na actividade política em França, já fora do trabalho sindical na Renault ou do apoio aos emigrantes, foi ainda em 1967, nos comités Vietname, que “mobilizavam muita gente, alguma sem nenhuma militância política”. São estes comités que promovem, em Fevereiro de 1968, uma grande manifestação que contribuirá para o distanciar ainda mais do PCP e do seu partido irmão francês. “A palavra de ordem do PCF era ‘paz e independência’, fazendo depender a primeira da segunda, e a extrema-esquerda e os próprios refugiados vietnamitas gritavam ‘independência e paz’, defendo que não poderia haver paz sem independência”. Uma questão de precedência que acabaria, aliás, por levar ao afastamento de Artur do jornal O Trabalhador, uma publicação da CGT destinada aos operários portugueses. “Davam-me os artigos em francês para eu traduzir e um dia passaram-me um texto sobre o Vietname com o título ‘Paz e Independência’ e eu troquei a ordem das palavras – tiveram razão em afastar-me, foi uma infantilidade”.
Surpresa de aniversário
Nessa contagem final para o Maio de 68, participa ainda, em Abril, numa manifestação de homenagem a Martin Luther King, assassinado no dia 4. Mas apesar de acompanhar o crescendo de contestação desde o 22 de Março, o início do Maio de 68 foi uma surpresa. Na verdade, uma surpresa de aniversário. “Faço anos a 3 de Maio e fui jantar com a Jacinta a um pequeno restaurante no Quartier Latin”, conta. “Quando chegámos, já havia muita agitação na rua, mas ao sairmos o ambiente era irrespirável”. Não é uma força de expressão: o 3 de Maio é o dia que marca o início dos recontros violentos dos estudantes e militantes da extrema-esquerda com a polícia, e ao cair da noite a zona em volta da Sorbonne é já um verdadeiro campo de batalha. Levantam-se as primeiras barricadas e atiram-se pedras, a polícia de intervenção (CRS) usa granadas de gás lacrimogéneo, há mais de uma centena de feridos.
Uma semana depois, na noite de de 10 para 11, Artur vê Paris encher-se de barricadas, mas o momento que mais o comoveu foi o 13 de Maio, quando os sindicatos se juntam ao movimento, começa a greve geral e centenas de milhares de pessoas desfilam pelas ruas de Paris. “Vim de Billancourt numa camioneta de caixa aberta da Renault, a empunhar uma bandeira vermelha”. Mas não foi só o entusiasmo colectivo que o impressionou, foi também a data. “Lembro-me de dizer aos meus amigos franceses que estar ali no dia de N. Sra. de Fátima era realmente o meu grande momento de ruptura”.
Uns dias depois, dá-se um episódio cuja memória hoje o diverte. “Tive de ir à polícia para tratar de uma questão de papéis, porque íamos mudar-nos para Billancourt, e havia confusão na rua e a Jacinta apanhou com uma granada [de gás lacrimogéneo] no calcanhar”. Na esquadra, são levados para uma pequena sala. “Sentia-se um cheiro tão intenso que o polícia comentou ‘estão a dar-lhe forte!’ e foi fechar a janela”. Mas “afinal era a Jacinta que tinha a meia queimada”. Acabou por ter de ser tratada, e por um médico que Artur recorda com veneração: Henri Carpentier, um antigo resistente que trabalhava no dispensário do L’Humanité e a quem já costumava levar os portugueses de Billancourt com problemas de saúde.
A afastar-se do PCP, mas sem militar em nenhuma organização de extrema-esquerda, vivendo no Quartier Latin, mas trabalhando com os meios operários da emigração portuguesa, colaborando com alguns intelectuais portugueses exilados em Paris, mas sem pertencer ao meio universitário, o envolvimento de Artur no Maio de 68 não era isento de algumas perplexidades e até de alguns receios. Colaborou com os Comité d’Action, que defendiam a insurreição permanente e a greve geral e tinham lançado o jornal Action – “foi aí que comecei a ter uma visão mais política do que se estava a passar” –, e participou em várias manifestações, mas tinha noção de que havia sempre o risco de poder ser detido e recambiado para Portugal. “Um amigo meu, José Albergaria, conseguiu escapar à última hora, e no caso dele ia ser complicado porque era mesmo desertor, eu só não me apresentara, mas, claro, tinha estado preso e tinha ficha na PIDE”.
Mas não eram só os perigos. Se a sua memória de Maio de 68 é a de “um tempo muito entusiasmante e intenso”, de “um acontecimento de uma liberdade absolutamente extraordinária”, o seu próprio percurso dificilmente lhe permitiria estar no movimento com essa sintonia incondicional que animava os jovens estudantes. Ilustra-o um episódio inocente mas significativo. “Estava numa barricada a arrancar paralelepípedos, quando vi, de repente, uns dedos entre o pavimento e o ferro que eu trazia. Parei e pensei: ‘o que é que estou aqui a fazer?’”. Mas a rapariga a quem pertencia a mão, ao vê-lo interromper-se, lançou-lhe um ‘Alors, tu arrêtes?!’ tão impositivo que se sentiu coagido a retomar a tarefa. “Lá tirei mais aquele, mas depois parei de vez”.
Já entre os emigrantes portugueses com quem lidava diariamente, o sentimento mais generalizado era o medo. “Não liam os jornais franceses, mas ouviam dizer que quem estava por trás daquilo eram os comunistas, e também receavam perder o trabalho por causa das greves e das pancadarias”. Criara ligações fortes com essas pessoas a quem ia servindo de escrivão oficioso, não apenas portugueses, mas também marroquinos, e foi-se dando conta de que, para eles, as greves não significavam apenas perder salário, mas também a angústia de não ter o que fazer. “Eram quase todos homens sozinhos, e quando não trabalhavam, não tinham em que se ocupar: não havia televisões, e se fizessem vida de café, iam gastar dinheiro”.
No final de Junho, quando o movimento já estava na ressaca e se aproximava a retumbante vitória eleitoral gaullista, começa a trabalhar numa tipografia que imprimia o Paris Match e outras publicações. Era um emprego interessante para quem sempre tivera “o bichinho dos jornais”. Ainda adolescente, no Porto, publicara alguns textos nos suplementos juvenis do Diário de Lisboa e do República, e colaborara no jornal O Meu Amigo, do pensador portuense Ferrão Moreira. Mas teve azar. Um rastreio médico detectou-lhe uma tuberculose e já não chegou a assinar contrato.
Chocolate para o povo
Esteve internado vários meses e é no hospital que sabe da entrada dos tanques soviéticos em Praga, momento que marca a sua ruptura definitiva com o PCP. É também nos jardins desse hospital parisiense que se encontra um dia com o encenador Helder Costa, futuro fundador d’A Barraca, de quem se tornará amigo e com quem andará mais tarde envolvido nas lutas dos núcleos O Comunista, uma das estruturas que dará origem, ainda antes do 25 de Abril, por fusão com o grupo que publicava no Porto o jornal O Grito do Povo, à organização maoísta OCMLP.
É no início dos anos 70 que Artur se aproxima mais da extrema-esquerda, colaborando com a organização Secours Rouge e com o jornal La Cause du Peuple, dos maoístas de tendência libertária da Gauche Prolétarienne, que virá a estar na génese mais ou menos directa do Libération. “Foi nessa altura que eles roubaram a confeitaria de luxo Fauchon [o assalto, em Maio de 1970, tornou-se um episódio célebre]”, lembra Artur. Mas logo se corrige, com um sorriso: “Roubaram, não, apoderaram-se dos chocolates em nome do povo, e distribuíram-nos nas bidonvilles de Champigny e Massy, e posso assegurar que era um excelente chocolate”.
Em 1972, participa com outros portugueses nas manifestações de protesto contra o assassinato, por um segurança da Renault, do militante maoísta Pierre Overnay, cujo funeral reunirá 200 mil pessoas, incluindo Sartre e Michel Foucault.
Essa actividade pós-68 ainda lhe custou um susto, quando o escritor Michel Le Bris, responsável do La Cause du Peuple, é preso, e como se vivia um momento de forte repressão da extrema-esquerda, este pediu ao seu advogado que contactasse todos os nomes que estavam na sua agenda de contactos, apreendida pela polícia. Artur era um deles. “Foi nessa altura que fiz um pedido para ficar com o estatuto de refugiado, que consegui com um papel que me mandou do Porto o Sousa e Castro a atestar que eu tinha tido estado preso por razões políticas.
Artur trabalhará depois nos serviços de emigração da Embaixada Portuguesa, como responsável da informação, mas sai com o 25 de Novembro de 1975 e decide fazer uma formação de assistente social. A partir desse momento irá sempre trabalhar em serviços sociais. É essa também a especialidade da sua actual mulher, Françoise, que conhece dois ou três anos após o 25 de Abril quando vai à escola onde esta trabalhava para apresentar um filme sobre a Revolução dos Cravos.
Hoje, aos 72 anos, Artur colabora numa associação peculiar, sem equivalente em Portugal, a Seuil, que organiza caminhadas para jovens a partir dos 14 anos em contexto social e educativo difícil, em muitos casos enfrentando ou já cumprindo penas de prisão. “Por recomendação dos serviços sociais, o juiz pode aceitar, em alternativa à prisão, que o jovem faça uma caminhada”, explica. São caminhadas de 1800 a 2000 quilómetros e que duram cem dias, nas quais os jovens, acompanhados por um só adulto recrutado pela associação, vão sempre para o estrangeiro (algumas acabam no Porto) e não podem levar telemóvel ou ouvir música. “A ideia é criar uma ruptura com o seu contexto anterior”.
Já trabalha há oito anos com a Seuil, ao mesmo tempo que mantém, com o pseudónimo Arthur Porto, um blogue muito activo no jornal digital Mediapart, onde recentemente evocou o “seu” Maio de 68, terminando com uma referência à neta, que “à sua maneira e à do seu tempo, prolonga se não a convergência das lutas, pelo menso a convergência dos sonhos”.
Antes de se dedicar à Seuil, Artur especializara-se em processos de mediação, quer tratando do acompanhamento de crianças em situações de divórcio, quer, por exemplo, resolvendo conflitos entre vizinhos. “A mediação é mais do que um processo, é um modo de estar, uma filosofia de vida”, diz. “Então o revolucionário do Maio de 68 tornou-se um conciliador profissional?”, provocámos. “Sim”, ri-se, “acho que no fundo nunca tive alma de radical”.