“Que o Espírito Santo inspire os deputados na decisão”
Prior de igreja de Lisboa pediu aos fiéis para participarem na manifestação de terça-feira, dia da votação dos quatro projectos de lei. Tema esteve ausente noutras homilias deste domingo.
Com a legalização da eutanásia a ser discutida e votada pelo Parlamento, a sociedade vive um momento particular do qual a Igreja não se pode alhear: esta mensagem do padre Hugo Gonçalves ocupou boa parte da missa dominical na Igreja Paroquial do Campo Grande em Lisboa na qual apelou à participação na manifestação convocada para o dia da votação, frente à Assembleia da República.
A opção, noutras igrejas, foi não aludir ao tema, como aconteceu em Beja. Na Igreja do Carmo, o padre António Cartageno limitou-se a uma breve referência, quando lembrou que a vida humana tem de ser respeitada “desde o momento da concepção até à morte natural”. Na Sé de Braga e na Sé de Faro, o assunto não foi evocado.
“Esta não é apenas uma questão religiosa, nem é sobretudo uma questão religiosa. É uma questão humana”, enfatizou o padre Hugo Gonçalves, no Campo Grande em Lisboa. “A Igreja defende o ‘não à eutanásia´ porque a Igreja defende os valores humanos. É aí que nos posicionamos.”
À entrada desta como de outras igrejas do país, estavam os folhetos, com perguntas e respostas sobre a eutanásia, que têm por base o texto da Conferência Episcopal Portuguesa. Nele fica expressa a posição contra a abordagem “eticamente condenável” do “suicídio assistido” que representa um “retrocesso civilizacional” e o perigo de “não se poder restringir” a legalização “a situações raras e excepcionais”.
Apelos à manifestação
Nos momentos finais da missa, o padre Hugo Gonçalves deixou três pedidos aos fiéis: para levarem o folheto informativo distribuído pela Conferência Episcopal; para rezarem; e para participarem na manifestação convocada pela Federação Portuguesa pela Vida, em frente à Assembleia da República. Será na terça-feira, dia da discussão e votação na generalidade dos quatro projectos de lei, apresentados pelo PS, BE, PEV e PAN, a favor da despenalização da morte medicamente assistida.
“Se aquela é a única maneira de sermos ouvidos, então sinto que não houve discussão suficiente. É muito importante que toda a comunidade civil se pronuncie”, diz numa breve entrevista, à saída da igreja, sobre o apelo à manifestação. “Se não querem ouvir o povo, então nós fazemo-nos ouvir”, acrescenta em jeito de resposta ao líder do PSD, Rui Rio, que pediu aos portugueses para não fazerem pressão sobre os deputados frente ao Parlamento.
“Os grandes princípios éticos não se votam”, defendeu o prior Hugo Gonçalves, durante a missa. Nela evocou a crença de que “todas as obras de Deus” são obras de um “amor transbordante” pelo povo, e assim introduziu o tema: “Estamos prestes a ver ser discutida no Parlamento a lei que despenaliza a eutanásia.”
E, no entanto, “não houve tempo para, nós portugueses, nos pronunciarmos sobre isto, nos debruçarmos sobre isto”, frisou. “Se eu anulo a vida – valor irrenunciável – eu anulo a liberdade [de escolha] que é um valor secundário.”
Das visitas que realiza a pessoas em sofrimento ou em fim de vida, descreve que “são poucas as que expressam a vontade de morrer, e as poucas que o fazem estão a expressar outras coisas: que se sentem pouco acompanhadas, pouco amadas, e um fardo para as suas famílias”. Aponta o exemplo de outros países “onde esta lei vigora” para invocar o risco de a eutanásia vir a ser “alargada a muitos casos que não estavam previstos na lei”. “Pode haver dor sem haver sofrimento. Pode haver sofrimento sem haver dor. Estes conceitos são muito diluídos”, e difíceis de definir, disse o padre na homilia.
Abertamente partilhou a esperança de que “a lei não passe” e manifestou o desejo de que “o Espírito Santo desça sobre os deputados, os inspire na sua decisão e os ajude a reflectir sobre o acto que estão prestes a realizar” na votação desta semana.
“Há um valor ético que tem de sobrepor-se ao valor da democracia”, disse qualificando esta como “uma questão de amor”. “Uma questão de saber se nós, enquanto humanidade, somos capazes de amar até ao fim.”
“Até ao último minuto”
Deolinda Fernandes, 59 anos, sempre entendeu o mutismo do marido nos últimos meses de vida em que este apenas comunicava por gestos. Ficou viúva aos 44 anos, e fala com o coração “muito grande”, como dizem os que a elogiam na paróquia onde é voluntária desde então. "Durante três anos, cuidei do meu marido acamado, em casa. Dei-lhe o amor todo que tinha até ao último minuto. Os médicos davam-lhe três meses de vida. Ele viveu mais três anos. Com muito sofrimento, mas sem queixas. Sou contra a eutanásia", diz convicta.
Bárbara Lopes concorda com as palavras do prior, principalmente quando diz que “não se pode legislar sobre a vida”. Defende, porém, que este assunto deve ser tratado caso a caso. “Sobre a vida não se legisla, mas as acções têm que ser orientadas”, diz segura aos 88 anos. E referendar? “Se se insiste em legislar sobre a vida, coisa com a qual não concordo, o referendo poderia ajudar, desde que muito bem preparado. Mas a população não é suficientemente letrada nem está verdadeiramente esclarecida para isso acontecer.”
Também Maria José, 63 anos, presença habitual na Igreja Paroquial do Campo Grande, explica o que a divide: “Há casos excepcionais e, nesses casos, as pessoas devem ser livres se querem tomar essa decisão. Mas isso teria que ficar muito bem definido para não haver o risco de se generalizar. As leis são contornadas, o meu receio é esse.”
“Deus não me vai castigar”
Maria Luísa Teixeira acaba de sair da missa de domingo da Igreja de São José, em Coimbra. Aos 85 anos, quer poder escolher se algum dia estiver em grande sofrimento. Diz-se católica, “bastante religiosa”, mas quando a questão é a eutanásia, difere da linha da Igreja. “Para que serve prolongar uma vida que está a vegetar ou que está num nível de sofrimento atroz?”, questiona.
O doente deve ser tratado enquanto existe a possibilidade de o fazer, defende; ao mesmo tempo, Maria Luísa Teixeira concorda com o direito das pessoas a escolher, se essa hipótese não existir. “Acho que Deus não me vai castigar por ter esse pensamento.”
Também Vasco Silva que assistiu à homilia, considera que “uma pessoa, em sofrimento extremo, deve ter o direito” de escolher. Afirma “não ter dúvidas nenhumas” sobre isso, embora a orientação da Igreja seja outra. “Tenho o direito a pensar pela minha cabeça” – sem que a fé sofra abalos. A seu lado, a mulher, Graça Silva, 65 anos, tem dúvidas. “Muitas dúvidas”, murmura. Não conhece o texto dos projectos legislativos e a eventual intervenção dos familiares no processo suscita-lhe questões.
O padre Filipe Diniz não abordou o tema directamente durante a homilia. Mas o tópico 'eutanásia' não ficou às portas do templo. Durante a oração dos fiéis foi pedido por um paroquiano que governantes e legisladores não prossigam com a aprovação da lei.
Ao PÚBLICO, o padre Filipe Diniz explica que a sua posição está concertada com a da Igreja e que não pensou incluir o tema nas palavras que dirigiu aos fiéis neste Domingo. Procedimento diferente teria em caso de referendo, em que procuraria dar uma orientação.
Vigílias antes da votação
Na Sé de Faro, onde poucos foram aqueles que levaram o folheto da Conferência Episcopal, o padre Rui Guerreiro também não evocou o assunto, durante a celebração da missa dominical. Falou das “realidades deste mundo” e das formas que existem para ultrapassar alguns problemas, sem nunca referir a palavra 'eutanásia'. Não desceu ao terreno da política, mas na defesa dos princípios da humanidade, considerou que “há muita justiça que tem de ser trabalhada”.
A oposição aos projectos de lei sobre a eutanásia esteve ausente da missa na Sé de Braga, mas, na véspera da votação vai estar presente em cinco concelhos da Arquidiocese – Braga, Guimarães, Barcelos, Famalicão e Amares – nas vigílias promovidas pela Federação Portuguesa pela Vida. Com Idálio Revez, Carlos Dias e Tiago Mendes Dias