“Os políticos têm de seguir as regras que exigem aos outros”

Dos populismos de Itália e Grécia aos riscos de colonização económica de países periféricos como Portugal, o politólogo Tiago Fernandes leva-nos a percorrer os caminhos perigosos das democracias actuais.

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"Estamos a assistir a uma vaga de líderes demagógicos, no sentido mais apurado daquele líder que diz e faz o que é preciso em cada momento para conquistar o poder" Rui Gaudêncio

O que têm em comum o novo Governo italiano, presidido por um primeiro-ministro que terá mentido no seu curriculum, a casa de 600 mil euros do líder do espanhol Podemos, Pablo Iglesias, ou as incompatilidades e interesses privados do ministro Adjunto Pedro Siza Vieira? À partida, muito pouco. A não ser o facto de ajudarem a abrir brechas nos sistemas democráticos europeus, como explica o cientista político Tiago Fernandes, coordenador do estudo “Variedades da Democracia no Sul da Europa – Uma comparação entre Espanha, França, Grécia, Itália e Portugal”.

O vosso estudo, publicado em Março pela Imprensa de Ciências Sociais, compara as democracias dos países do sul da Europa. Em todos estes países, à excepção de Portugal, apareceram novas realidades políticas que dão corpo ao populismo, à xenofobia, aos nacionalismos ou independentismos. Itália é hoje um caso paradigmático, com dois partidos anti-sistémicos a assinarem um pacto de Governo securitário, anti-imigração, anti-islão e eurocéptico. Que lições podemos tirar do caso italiano?
 A crise italiana é muito potenciada por escândalos de corrupção e o abalar de um sistema que tinha uma corrupção sistémica. A democracia cristã e de certa forma o PS italiano tinham uma forma de se relacionar com o eleitorado – nós mostramos isso no livro – baseado em trocas clientelares e muito pouco na mobilização ideológica e na doutrinação de valores cívicos. A sua fusão com a máquina do Estado era muito grande, o uso de políticas públicas para troca de favores políticos com as diversas regiões, através de caciques locais, sobretudo no Sul, para controlar o eleitorado mais pobre, mas também a sua dependência dos negócios no Norte, da burguesia de Milão, também era muito grande. Era um sistema que parecia sólido mas tinha pés de barro. Quando estes sistemas são postos em causa e há uma vaga de denúncias de corrupção, abala o sistema como um todo.

Essas trocas clientelares não são um exclusivo de Itália. Nestes cinco países que o estudo abordou, onde é que isto se nota mais?
Nos dados que temos, a Itália e a Grécia (e em Espanha também há indícios) são os países onde é mais visível essa troca clientelar  – uma forma de se relacionar com o eleitorado baseada na distribuição de recursos do Estado por critérios de fidelidade política, e não tanto por critérios de racionalidade das políticas públicas como a equidade geral e a eficiência. No período que observamos [1968-2016], as políticas públicas tendem a ser mais orientadas em função de critérios particularistas sobretudo nesses dois países, onde os restantes indicadores da democracia são também mais baixos. Os níveis de solidez do sistema partidário são muito mais baixos e foi também aí que irromperam movimentos populistas – tanto à direita como à esquerda, no caso da Grécia – que levaram ao colapso do sistema.

Porque é que isto acontece sobretudo na Itália e Grécia?
Nesses dois países há um factor que os distingue dos restantes, que são sociedades que têm uma tradição de autoritarismo de direita. O que se nota é que nas sociedades que têm sistemas partidários mais fortes, como Portugal e França, houve uma ruptura forte com o passado. Portugal teve uma revolução marcante e de ruptura com a ditadura. Tanto na Grécia como em Itália, e mesmo em Espanha, de certa forma a seguir à II Guerra Mundial, a continuidade com o passado é maior. E isso tem repercussões na qualidade da democracia. No livro abordamos, por exemplo, a interferência do poder político nos media, que tende a ser muito maior naquelas sociedades onde há uma maior tradição de autoritarismo do Estado.

Ainda em Itália, Giuseppe Conte, o primeiro-ministro acabado de nomear pela Liga e pelo Movimento 5 Estrelas tem estado debaixo de fogo por causa de inexactidões no seu currículo – o que não é inédito em Portugal – e pela sua ligação ao “caso Stamina”, uma fraude médica em que participou indirectamente. Que efeito tem este tipo de actuações no eleitorado?
No eleitorado dele, não vai gerar nada. Estamos a assistir a uma vaga de líderes demagógicos, no sentido mais apurado daquele líder que diz e faz o que é preciso em cada momento para conquistar o poder, invertendo valores e mudando de ideologia de um dia para o outro conforme mudam as suas conveniências e as suas alianças. Começou com Berlusconi, num certo sentido os líderes do Syriza tiveram comportamentos demagógicos, o Movimento 5 Estrelas quis aliar-se à esquerda e acabou por se aliar à direita.

Consideraria que o líder do Podemos, Pablo Iglesias, pode ser considerado um demagogo? Isto por causa da polémica em que está envolvido por ter, em 2012, criticado o então ministro da Economia, Luis de Guindos por comprar uma casa e 600 mil euros e agora fazer o mesmo.
Penso que os políticos têm de seguir nas suas vidas as regras que exigem para os outros. Claro que há aqui uma discrepância entre aquilo que o indivíduo professa para a classe política e depois o que é o seu comportamento privado. Estamos mal quando chegamos a uma situação, que é o caso de Espanha – e que Portugal não tem, até porque há uma maior moderação das elites políticas portuguesas e da esquerda radical – em que a classe política utiliza esquemas muito simplistas para analisar a situação política. Aí começa a haver elementos de populismo e demagogia, como a avaliação do sistema político em termos de nós contra eles ou a casta contra o povo. Estas simplificações abusivas não ajudam à qualidade da democracia. É um apoucamento da democracia.

Na sequência da polémica, Iglesias decidiu abrir um referendo interno à sua continuidade como líder do partido. Acha que o recurso a este instrumento democrático ajuda a dissipar o mal-estar perante um evidente caso de demagogia?
Eu tenho algumas dúvidas sobre os referendos… No livro temos um capítulo do José Santana Pereira e do Tiago Tibúrcio sobre democracia directa. Nestes cinco países, a democracia directa tem muito pouca tradição e quando existe é apenas invocada pelas elites do poder para referendar a sua própria situação política e não é algo que venha debaixo, como iniciativa directa dos cidadãos. Os referendos têm uma continuidade com os autoritarismos de direita anteriores à democracia. Franco e outros utilizaram-nos para se legitimarem e às suas constituições. As democracias continuam a utilizar os referendos, sempre de cima para baixo, e verifica-se que a participação eleitoral é baixa. O que observamos é que os países não precisam destas práticas de democracia directa interna para terem uma forte ligação ao eleitorado. O mais importante é apresentarem ideologias claras e não tanto terem práticas permanentes de debate interno. Mas também é verdade que os partidos estão cada vez mais fechados em si próprios.

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"Os partidos podem democratizar-se sem fazer primárias. Basta cumprirem os seus estatutos, que em Portugal são relativamente democráticos, só que na prática muitas vezes não são cumpridos" Rui Gaudêncio

Defenderia as eleições primárias para líderes partidários como forma de abrir mais os partidos?
Não falamos disso no livro, mas penso que as primárias têm riscos porque abrem os partidos à influência de grupos de interesses poderosos, pois quem pode concorrer às primárias são pessoas que vão buscar fundos privados e financiamentos pouco claros. Ou os partidos e o Estado arranjam maneira de financiar candidaturas equitativas para toda a gente, ou então isto vai dar um incentivo a quem tem mais dinheiro e contactos no mundo dos negócios para controlarem as eleições internas. Os partidos podem democratizar-se sem fazer primárias. Basta cumprirem os seus estatutos, que em Portugal são relativamente democráticos, só que na prática muitas vezes não são cumpridos. Através de mecanismos informais, acaba por haver a perpetuação do poder. O problema é que os partidos têm vindo a perder militantes, mas são estes militantes que vão escolher os candidatos a primeiro-ministro, que acabam por ser escolhidos por um conjunto de indivíduos muito pouco representativos da sociedade portuguesa, que controlam uma máquina partidária e que excluem o cidadão comum sequer de entrar e participar nos partidos. Mas para resolver essa situação não é preciso primárias: basta democratizar e cumprir os estatutos.

Em Portugal há neste momento um ministro que violou a lei das incompatibilidades e impedimentos, e que vem do mundo dos negócios. Enquanto jurista, participou na alteração de uma lei que favorece a OPA da China Three Gorges à EDP, e já como ministro recebeu esses seus antigos clientes na altura do lançamento da OPA, antes de pedir escusa de qualquer decisão sobre o assunto. A confusão entre política e negócios afecta a qualidade da democracia? Ou são os cidadãos que hoje estão muito menos tolerantes com este tipo de actuações?
Há maior consciência cívica, o que é uma coisa boa, crescentes níveis de interesse pela política e um maior nível de instrução. Mas também há uma comunicação social e um sistema judicial que têm às vezes comportamentos justiceiros, um pouco excessivos, que transmitem a ideia de que a classe política está permanentemente sob suspeita e que às vezes se tomam certos comportamentos pelo todo.

Os casos sucedem-se em catadupa…
Sim, mas o importante é os partidos manterem distância desses casos e repudiarem esse tipo de comportamentos. O PS fez bem em distanciar-se da situação que envolve o ex-primeiro-ministro [José Sócrates], por exemplo. Por outro lado, com este ministro começa a haver suspeitas de uma… Os partidos têm de ter uma atitude pedagógica e tirar do seu seio indivíduos cujo percurso é um permanente saltitar entre o mundo dos negócios e a política [as chamadas portas giratórias]. Um dos problemas fundamentais das democracias ocidentais é um aumento crescente das desigualdades, mas sobretudo a maior concentração da riqueza naqueles que são o 1% mais ricos. É o lado negro da globalização, a criação dessa classe de super-ricos que têm tendência a estar integrados nos circuitos de capital financeiro internacional que escapam muito ao controlo democrático dos Estados, que abrem portas a interesses internacionais, sejam de grandes multinacionais, seja de outros Estados. Tudo isso é perigoso para a democracia porque cria oligarquias fechadas, não escrutinadas pelos poderes públicos democráticos.

Estamos já a falar de poderes supranacionais, muitos deles Estados que acabam por controlar outros Estados…
O que digo é que há um ressurgimento do autoritarismo à escala global, nomeadamente de regimes como a Rússia e a China, que estão cada vez mais fortes e consolidados e começam a ter uma política externa de tentar afirmar uma influência à escala regional ou global. E para isso compra bens, activos, e influencia as elites nos Estados mais fracos. E isto é uma ameaça à democracia e é um processo. Há relatórios recentes que comprovam como a China tem influência em países mais vulneráveis. Começa por ser influência económica, mas também cultural… Num mundo global, os Estados têm de dar-se com toda a gente. Mas outra coisa é haver uma espécie de colonização insidiosa que controla postos-chave de decisão e que afecta a soberania de uma democracia. A Rússia e a China fazem isso em diversos países, na América Latina, em África, mas também na Europa.

O estudo “Variedades da Democracia no Sul da Europa – Uma comparação entre Espanha, França, Grécia, Itália e Portugal” foi financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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