O testemunho de três mulheres em três fases diferentes da vida

Beatriz Reis conta que sair à noite "é um pesadelo": "Já sabes que vais passar a noite a dizer não". Na "rush hour of life", Maria Sá concilia o trabalho como gestora comercial com os cuidados aos três filhos. Maria de Fátima Monteiro, enfermeira e sindicalista, nunca viu os homens a saírem à pressa das reuniões para irem fazer o jantar ou dar banho aos filhos.

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Maria de Fátima Monteiro, 60 anos, foi tratada de forma diferente dos irmãos rapazes Nelson Garrido

“Os rapazes transparecem mais confiança”

Beatriz Reis, 23 anos

Em criança, Beatriz Reis recorda que lhe davam bonecas às quais nem ligava. Com cinco anos, a mãe inscreveu-a no ballet “por ser menina”. Uns anos mais tarde, ao irmão, foi-lhe dado a escolher entre o ténis e o futebol. Há “diferença de tratamento” garante Beatriz.

Aos 18 anos, a jovem saiu de Beja, onde nasceu e cresceu, para estudar Comunicação em Lisboa. Agora, com 23 anos e com um mestrado quase completo integra uma geração de mulheres mais escolarizada do que a média da União Europeia e do que os homens da mesma idade. Mas que, mesmo assim, tem condições de trabalho mais precárias e sofre mais com desemprego e salários baixos.

“Eu passei a minha infância e adolescência a ouvir falar do potencial das raparigas” na escola, diz Beatriz. Mas depois “ganham menos do que os rapazes, são menos respeitadas e têm menos condições de trabalho”. “Há aqui uma discrepância que não se percebe”, desabafa.

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Beatriz Reis, 23 anos Rui Gaudêncio

Apesar de escolarizadas, e de escolherem cada vez mais cursos que são mais tradicionalmente associados ao sexo masculino, a taxa de mulheres em áreas que se identificam mais com o feminino ainda é superior à média europeia. Beatriz escolheu Comunicação, mas acredita que não foi influenciada pela “questão de género”. Ainda assim, reconhece que há raparigas que podem desistir de determinadas áreas por serem mais associadas com a presença masculina.

Só por esta altura, Beatriz começa a planear a entrada no mercado de trabalho e diz que “os rapazes transparecem mais confiança” em entrevistas, por exemplo. No futuro, a jovem não se imagina a abdicar da carreira para ficar em casa a cuidar dos filhos. “Até é saudável para as crianças ver a mãe a trabalhar e a fazer o que gosta”, defende.

O assédio é uma das preocupações de Beatriz. Sair à noite, por exemplo, “é um pesadelo nesse aspecto”. “Já sabes que vais passar a noite a dizer não”, lamenta. A situação só muda de figura se estiver um rapaz por perto, nota Beatriz. “É uma questão de propriedade.” R.M.C.

“Há um preconceito relativamente ao papel da mãe”

Maria Sá, 39 anos

Com 39 anos, Maria Sá está em plena rush hour (do inglês hora de ponta) da sua vida. Trabalha como gestora comercial em Lisboa, tem três filhos e o marido passa longas temporadas fora, pelo que todas as tarefas familiares acabam por ficar a seu cargo. Mesmo que assim não fosse, “há certas exigências que estão estipuladas socialmente e nem sequer questionamos por que é que sou eu, mulher, mãe, que vou às reuniões de pais, dou a cara na escola, vou lá buscá-los e quando estão doentes sou eu que fico em casa com eles”, diz Maria. “Existe um preconceito relativamente ao papel da mãe nesse aspecto”, conclui.

Quando o marido está presente então faz questão de equilibrar a balança das tarefas domésticas e familiares e tirar algum tempo para si.

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Maria Sá, 39 anos Rui Gaudêncio

Maria licenciou-se em reabilitação e reinserção social pelo que faz parte do grupo de mulheres portuguesas na sua faixa etária — entre os 25 e os 49 anos — que tem um curso superior (35%). Também se integra no grupo das mulheres com formação superior que têm três ou mais filhos (são menos de 5% em Portugal).

No trabalho, “nunca senti que não me fosse dado um desafio por ser mulher”, nota Maria. “Eu própria digo à minha chefia que neste momento não posso assumir cargos de maior responsabilidade porque tenho de dividir as minhas tarefas entre a casa e os meus filhos e o trabalho”. E reconhece que, como tem três filhos, a disponibilidade será menor do que os colegas “que não têm filhos ou não têm uma vida familiar que lhes exige tanto tempo”.

Para conciliar o trabalho com a vida familiar, Maria Sá sublinha a importância das creches. “Não me posso dar ao luxo de ficar em casa com o bebé porque não consigo sobreviver monetariamente”, nota. “É sempre uma grande dificuldade” encontrar uma creche. Outro problema é o número de dias de férias das crianças. “A minha filha mais velha tem 14 semanas de férias por ano.” As avós ainda são uma opção na ajuda a cuidar das crianças, mas “hoje em dia até as avós trabalham”. R.M.C.

“Abdicam do seu bem-estar, até monetário, para dar apoio aos netos”

Maria de Fátima Monteiro, 60 anos

Quando Maria de Fátima Monteiro nasceu, em 1958, as mulheres portuguesas eram educadas para a conjugalidade e para serem mães. E às que insistiam em sair do reduto doméstico, como as enfermeiras, estava vedado o casamento. “Foi assim até 1963. Encarava-se a profissão como uma espécie de missão e a história da enfermagem também nos mostra que essa função estava, no início, muito ligada às freiras”, recua esta enfermeira, com 60 anos de vida, os últimos dez dos quais a trabalhar como dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP).  

Tantas décadas volvidas, a enfermagem continua a ser uma profissão predominantemente feminina, herdeira ainda, portanto, do acometimento às mulheres da função do “cuidar” – fosse de doentes fosse da casa ou dos filhos. E as enfermeiras continuam – à semelhança da imensa maioria de mulheres – sobrecarregadas com a necessidade de terem de articular horários laborais inconstantes e por turnos com os cuidados à casa e à família. “Quantas vezes, no final de uma reunião, vejo as mulheres cheias de pressa porque têm de ir a correr para casa fazer o jantar, dar banho aos filhos ou preparar-lhes a lancheira e a roupa para o dia seguinte. E não vejo isso nos meus colegas homens”, observa Fátima, encontrando aqui a principal explicação para a tão reduzida participação feminina nos “espaços de intervenção cívica”.

Quando escolheu ser enfermeira, não se sentiu condicionada por ser mulher. Antes sim. “Jogava vólei – era atleta federada – e, quando tinha que ir jogar para fora, a postura do meu pai e da minha mãe era completamente diferente da que tinham para com o meu irmão”. Do mesmo modo, os irmãos rapazes não eram como ela e as irmãs chamados a pôr a mesa, ter de ir à cave buscar batatas ou a terem de limpar os batentes das portas. Isso pesou tanto que, ainda hoje, acontece Fátima estar na cozinha e virar-se para o marido com tiradas do género: “Sai daqui que o lugar na cozinha é das mulheres.”

Quando olha à volta, numa altura em que os homens começam a chegar à profissão, vê-os passar automaticamente à frente no momento da contratação, sobretudo no sector privado. “A enfermeira pode ser jovem mas há-de querer constituir família, pode ter uma gravidez de risco…”. E, entre os mais velhos, vê as enfermeiras pressionadas para se reformarem mais cedo para cuidar dos netos. “Abdicam do seu bem-estar, até monetário, para darem apoio aos netos. E são, mais uma vez, as mulheres que fazem isso: não os homens”. N.F.

 

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