Ana, Mariana e José iam ter um bebé. Agora têm a vida “em suspenso”
Fazem parte do grupo de sete processos de gestação de substituição que foram declarados extintos por ter deixado de existir suporte legal para avançarem. Passou um mês desde o acórdão do Tribunal Constitucional que chumbou algumas normas da gestação de substituição.
“Nunca tinha ouvido o coração de um bebé. Por acaso quando estava no hospital para fazer uma ecografia antes da minha operação, estava uma grávida na sala e ouvi.” Ana sonha com o dia em que será mãe. Mãe outra vez, mas de forma diferente. Ela e o marido, José, têm uma filha, adoptada ainda não tinha dois anos. Agora, sonha com a possibilidade de assistir a todas as ecografias, de ouvir o coração do seu bebé, com a hora do parto, com o momento em que o tomará nos braços, em que lhe sentirá o cheiro.
“Só não o posso sentir na minha barriga”, diz Ana. “Podes sim, porque a minha barriga está aqui”, remata Mariana, nem um segundo depois de a prima falar.
Ana tem 41 anos, José 45, Mariana 32. Eles serão os pais, Mariana a gestante. Fez na semana passada um mês que foi conhecido o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que declarou inconstitucionais as normas que permitem a concretização da gestação de substituição. E Ana, José e Mariana fazem parte do grupo de sete processos de gestação de substituição que, três dias depois do acórdão do TC, foram declarados extintos pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) “por ter deixado de existir suporte legal” para avançarem. Apenas outros dois, que já tinham o processo de autorização concluído, se mantêm activos. Embora sobre um deles recaia um pedido de mais informação sobre o início do processo terapêutico. Linha imposta pelo TC para justificar a sua exclusão da inconstitucionalidade.
O acesso à gestação de substituição “só é possível a título excepcional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem”, como explica a lei publicada em Agosto de 2016. A regulamentação saiu quase um ano depois.
O processo de fertilização implica sempre gâmetas de um dos membros do casal e em caso algum a gestante, que empresta o seu útero, pode doar ovócitos. Para os casais beneficiários da gestação de substituição, o limite de idade é de 60 anos para os homens e 50 para as mulheres. No caso da gestante, a idade máxima é de 45 anos, podendo ser estendida aos 50 anos no caso da gestante ser irmã ou mãe de qualquer um dos membros do casal beneficiário.
O processo de Ana, José e Mariana deu entrada no CNPMA no ano passado: entregaram relatórios médicos, avaliações psicológicas, resultados de análises. O contrato tinha sido assinado em Dezembro. Previa um período de dez semanas para arrependimento da gestante e se isso acontecesse esta teria de indemnizar o casal no valor gasto até ao momento. Estabelecia quantos tratamentos iriam fazer. E estipulava que se o feto tivesse problemas, à falta de acordo entre os três sobre o que fazer, a última palavra seria da gestante. Tal como seria dela a última palavra sobre a continuidade da gravidez caso estivesse em risco de vida.
Faltava entregar um exame de Ana ao CNPMA, uma ressonância magnética para mostrar que apesar de ter útero não consegue carregar uma gravidez, para que este tomasse uma decisão liminar. Se aprovado, “o passo seguinte seria o pedido de parecer da Ordem dos Médicos”, diz Ana. Uma das últimas etapas previstas na lei para a decisão final.
“Avança”
Para chegar aqui é preciso recuar 13 anos, a um diagnóstico de trombofilia, às dores terríveis e aderências provocadas pela endometriose, ao cancro do colo do útero e às palavras dos médicos que lhe iam dizendo para “ter os pés assentes na terra” quando perguntava se conseguiria engravidar. É preciso recuar às três operações e aos seis tratamentos de fertilidade que fez – uns no público, outros no privado e até com recurso a embriões doados, porque nas últimas estimulações os médicos não conseguiram retirar qualquer ovócito dos ovários de Ana. Todas as tentativas de engravidar falharam.
Cada vez que estavam juntas Ana e Mariana brincavam com a situação. Mariana dizia-lhe que a ia ajudar: “Brincava a falar a sério.” As palavras ganharam mais peso quando o segundo filho de Mariana nasceu em 2010. “Vi a tristeza da minha prima por não conseguir engravidar. Vou ser a pessoa mais feliz por a ajudar”, diz. E por isso assim que a lei foi publicada mandou logo uma mensagem a Ana a dizer “avança”.
Mariana diz que vão ter um menino e as duas primas até já têm um nome que ainda não convenceu José. É o amor que vê nos primos que nunca a fez hesitar. “Este bebé é meu primo, filho dos meus primos. Não foi preciso coragem, é só amor”, diz Mariana. E é por isso que este recuo provocado pelo TC é, para ela, ainda mais difícil de aceitar. Diz que às vezes lhe passa pela cabeça ir a uma clínica com o primo, fazer uma fertilização e prescindir dos direitos em prol do casal.
Estavam a ser seguidos num centro privado de PMA, porque no público a idade de Ana já não lhe permite aceder aos tratamentos (as técnicas só podem ser aplicadas a mulheres até aos 40 anos). Apesar de não ser ela a gestante. Todo o processo, já incluindo ovócitos doados, está avaliado em 5400 euros. Fora consultas adicionais à gestante. O bebé saberia que tinha crescido na barriga de Mariana, tal como a filha – a sua “princesa”, como lhe chama Ana – sabe que não é filha biológica do casal.
Um dia que não se esquece
Ana regista no telemóvel todas as datas marcantes. Para não se esquecer. Mas o 24 de Abril deste ano “é uma data que não se esquece”. “Tinha acabado de sair de uma consulta em que me tinham dito que eventualmente tinha de tirar o útero. Estava no autocarro quando abri o Facebook e vi a notícia do acórdão. Já se esperava, mas queria que se arrastasse mais tempo [até sair a decisão].”
Foi a consulta em que a médica pediu a realização de uma ressonância magnética, aquela que o CNPMA esperava. Mesmo já se sabendo do chumbo do TC, Ana enviou a cópia do pedido do exame. Uma réstia de esperança que continua a alimentar, mas que não lhe cala a revolta que sente. Fala de uma morte “aos bocadinhos”, de um correr contra o relógio, de vidas “em suspenso”.
Uma revolta que José também sente. E Mariana, que ouviu a notícia da decisão do TC na rádio, é a primeira a não conseguir segurar as lágrimas quando recorda o momento. “Esperei um bocado até ligar para a minha prima só para lhe dizer ‘não estou a perceber nada disto!’ Senti-me revoltada, traída, irritada. Todas as vezes que me lembro que eles podem dar amor… E não têm um bebé…”
“Onde estão os direitos à igualdade neste país? Estando a lei em vigor, pelo menos aos processos que estavam iniciados deviam dar andamento até serem finalizados. Fico feliz por eles, mas em que é que somos diferentes daqueles dois [que se mantêm activos]?”, pergunta Ana.
“Gastámos dinheiro, tempo perdido… mais uma ilusão. O Estado devia indemnizar as pessoas”, diz José. É um homem de poucas palavras.
“É uma carapaça para não se magoar. Não consegue lidar… Todos os tratamentos negativos que tivemos, o José sofreu muito com isso. Eu também. É um assunto muito difícil”, explica Ana. E foi por isso que também não quiseram dizer à filha o que estava para acontecer, até ser certo que iria ter um ou uma irmã. Porque também ela já soube dos tratamentos sem sucesso, tal como soube que “os bebés que a mãe pôs não ficaram agarrados na barriga”.
Se pudesse, Ana diz que recorreria da decisão do TC, exporia a situação à provedora de Justiça. Até pensou escrever ao jogador Cristiano Ronaldo a pedir ajuda. Mas terá de esperar pelo Parlamento. “Já passou um mês da decisão do TC e [os deputados] já reuniram tantas vezes. Porque deixaram morrer o assunto? Vamos ter de começar tudo de novo? Estamos sempre a correr contra o relógio.”
Nota: Os nomes usados nesta reportagem são fictícios, a pedido dos próprios