Arquitectos portugueses em Veneza contra a descrença no edifício público
A representação oficial portuguesa na Bienal de Veneza instalou-se num palácio que dá para o Canal Grande. Neste espaço muito mais central, mostra-se a pouca arquitectura feita durante a crise.
Mesmo ao pé da Galeria da Academia, um dos mais importantes museus de Veneza, o Palácio Giustinian Lolin recebe este ano o Pavilhão de Portugal na Bienal de Arquitectura de Veneza, com uma exposição dedicada à encomenda pública completada nos anos da crise económica e financeira. Mostram-se 12 intervenções muito diferentes, desde o Metro de Nápoles, de Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura e Tiago Figueiredo, até aos pavilhões efémeros feitos para o Parque Serralves, no Porto, por uma brigada de jovens arquitectos (aquela geração nascida nos anos 80 que a crise quase apagou do mapa ou que teve de emigrar), a um hangar para canoas em Montemor-o-Velho, de Miguel Figueira, construído com muito poucos meios.
“O sítio é muito bom e o palácio, que dá para o Canal Grande, é lindíssimo”, diz um dos curadores, o arquitecto Nuno Brandão Costa, sublinhando, exactamente, a proximidade deste palácio barroco da Academia. Há dois anos, com a exposição dedicada a Álvaro Siza e aos seus projectos de habitação social, o Pavilhão de Portugal instalou-se na ilha da Giudecca, já fora dos circuitos mais próximos do local da Bienal de Veneza, que tem o seu centro nos Giardini e no Arsenale, onde está a maioria dos 60 pavilhões nacionais.
Este ano, numa exposição intitulada Público sem Retórica, Portugal traz 29 arquitectos portugueses, representados por 19 ateliers, para o Palácio Giustinian Lolin, numa escolha que Brandão Costa partilha com o curador Sérgio Mah: “Quando me convidaram para fazer o concurso – era por convites e organizado pela Direcção-Geral das Artes –, a primeira decisão que tomei foi chamar o Sérgio Mah. Eles queriam pares – o mais óbvio era escolher outro arquitecto –, mas decidi-me por alguém ligado às artes visuais com muita experiência em exposições.”
Numa exposição de arquitectura, salientam os dois curadores, estamos sempre a mostrar uma representação, uma vez que é impossível trazer os próprios edifícios. Aqui, explica Sérgio Mah, vamos também vê-los de uma forma mais subjectiva pelos olhos de quatro artistas portugueses, André Cepeda, Catarina Mourão, Nuno Cera e Salomé Lamas. “Vídeos em que descobrimos edifícios muito diferentes das fotografias com que os arquitectos costumam divulgar a sua obra, geralmente sem pessoas, antes de eles serem apropriados. A visão dos artistas não tem uma preocupação de descrever os edifícios.”
Há macacos no lisboeta Teatro Thalia, junto ao Jardim Zoológico, que Nuno Cera filmou. “O Thalia sem macacos não era o Thalia”, comenta o artista para uma das autoras do edifício, a arquitecta Patrícia Barbas, que está pela primeira vez a ver o vídeo aqui em Veneza, durante a inauguração do Pavilhão de Portugal, esta quinta-feira. É um dos 12 vídeos que recebem os visitantes logo no androne do palácio, esse espaço tipicamente veneziano que liga o canal ao pátio interior e onde se pode chegar de barco, como fizeram alguns dos convidados.
O vídeo de Nuno Cera nasce muito do seu treino como fotógrafo. “Não há planos com mais de 13 segundos, o que dá uma narração muito fragmentada. É quase como se fossem fotografias animadas”, explica o artista. Já o de Catarina Mourão, que filma a Biblioteca e Arquivo de Angra do Heroísmo, de Inês Lobo, sobrepõe uma história que a realizadora encontrou no próprio arquivo à narrativa contada pela arquitectura.
Lá em cima, na galeria do piso nobre, estão os materiais mais clássicos com que geralmente se mostra arquitectura – maquetas, desenhos técnicos e fotografias –, num espaço marcado por damascos, veludos, grandes candelabros de vidro de Murano, grandes telas de pintura veneziana, num contraste inesperado com o tema da exposição.
A generosidade
Os dois curadores chegaram ao tema desta “cisma” contra a obra pública também em resposta ao tema geral da bienal este ano, Freespace/Espaço Livre, que tem como curadoras principais as arquitectas irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara (Grafton Architects).
“Quisemos fazer uma coisa muito arquitectónica, muito disciplinar, sobre edifícios”, explica Nuno Brandão Costa. “Motivados pelo tema Freespace, um pouco vago, achámos que o edifício público se ligava mais a essa ideia de espaço livre. Como é que um edifício para toda a gente usar é desenhado com essa generosidade?”
Foi a palavra “generosidade” que Paolo Barata, presidente da Bienal de Arquitectura de Veneza, usou na conferência de imprensa de manhã que marcou o arranque desta edição. “Generosidade não é um detalhe, talvez seja o aspecto principal do projecto deste ano das curadoras-gerais, uma bienal que fala da responsabilidade individual dos arquitectos como cidadãos. Ao lado do direito de termos uma casa temos o direito de ter espaço livre.”
Como era preciso um limite temporário, os comissários portugueses escolheram a década da crise, entre 2007 e 2017, que trouxe a arquitectura para o centro do furacão, porque começou, lá atrás, com uma crise imobiliária. “Uma série de governos que se instalaram na Europa construíram uma retórica em que diziam que a construção do edifício público, e a construção pública genericamente, era uma deriva despesista e nefasta, que não servia para nada. Mas nesse período mais difícil, de decréscimo nos níveis de investimento público, conseguimos encontrar um conjunto de obras muito interessante, com muita qualidade, com programas completamente diferentes”, afirma Nuno Brandão Costa. São centros culturais, como o Arquipélago, nos Açores, equipamentos desportivos, como o Hangar de Montemor-o-Velho, apoios infra-estruturais, como os Molhes do Douro ou o Terminal de Cruzeiros de Lisboa, edifícios de investigação científica, como o I3S, no Porto, espalhados um pouco por todo o país, que mostram a “resiliência” de alguns centros de decisão. Outros, como as obras construídas no estrangeiro, atestam a capacidade de exportação da arquitectura portuguesa, num contínuo geracional, de Siza a Aires Mateus, passando por Byrne, Carrilho da Graça ou Souto de Moura. “A arquitectura é um dos expoentes máximos da nossa cultura, alargando fronteiras reais e simbólicas”, defendeu o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, no seu discurso em Veneza.
“E houve algum volte-face, nos anos da crise, em relação às escolhas de linguagem?”, perguntamos. “Pelo contrário, os arquitectos portugueses estão muito habituados a lidar com meios muito restritos. E isso, na minha opinião, explica um bocado o carisma da arquitectura portuguesa”, afirma o curador-arquitecto.
O título da exposição inspira-se no manifesto Without Rhetoric (1974), do casal inglês Alison e Peter Smithson, arquitectos e urbanistas britânicos, explicou Nuno Brandão Costa aos convidados. “Os Smithson são a terceira via do modernismo. Não o renegam, mas introduzem com o brutalismo a questão da materialidade como um elemento estético. Mas, mais do que isso, para nós o mais importante é que eles viam sempre o edifício como um elemento urbano, indispensável para estabelecer relações na cidade. Não se trata de edifícios autónomos, que estão colocados de uma forma solitária. Acho que os arquitectos portugueses pensam muito os edifícios assim também”, explicou o arquitecto numa conversa com o PÚBLICO, acrescentando que a exposição privilegia os edifícios públicos inseridos no tecido urbano.
Entre os 71 participantes da exposição internacional Freespace, da responsabilidade das comissárias-gerais irlandesas, estão três arquitectos portugueses – Siza, Souto de Moura e Inês Lobo. Os irmãos Francisco e Manuel Aires Mateus e os arquitectos paisagistas João Nunes e João Gomes de Silva estão numa secção especial desta mesma exposição dedicada à relação entre o ensino e a prática arquitectónica – os quatro dão aulas na Accademia di Architettura de Mendrisio (Suíça). Souto de Moura foi ainda convidado a participar no Pavilhão da Santa Sé, presente pela primeira vez na Bienal de Veneza, que convidou dez arquitectos para desenharem uma capela.
Na ilha da Giudecca, as obras para concluir o complexo de habitação social de Siza em Veneza, centro do Pavilhão de Portugal na última edição, continuavam, esperando-se que o edifício esteja pronto no final do ano. Provavelmente, quase a tempo do encerramento desta bienal, que fecha as portas a 25 de Novembro.