Coreia do Norte: eles contam como era e como escaparam
A partir da Coreia do Sul, dissidentes do regime norte-coreano contaram à Reuters como era viver na Coreia do Norte e como conseguiram escapar do país
Song foi torturado pela polícia secreta. Lee escreveu diários atrás de diários, por "lealdade" ao fundador do país. Mesmo dependente de muletas, Ji nunca deixou a vida do crime — e foi várias vezes espancado pela polícia. Como eles, outros cidadãos da Coreia do Norte não conhecem liberdade de expressão ou de movimento, não têm acesso livre à informação e veneram cega e religiosamente Kim Jong-un, o líder do regime ditatorial. Como eles, muitos tentam escapar. A Reuters conheceu alguns destes "desertores" em Seul, na Coreia do Sul. Com a agência partilharam as suas memórias e explicaram por que motivo deixaram tudo para trás — mesmo sob ameaça de prisão, tortura e trabalhos forçados.
Song Byeok, ex-artista de propaganda
Song Byeok era artista de propaganda do regime de Kim Jong-un antes de desertar para a China. O seu pai afogou-se na primeira tentativa que fizeram de cruzar o rio Tumen, no ano 2000. “Saímos porque precisávamos de encontrar comida”, relembra. “Éramos de uma vila do interior e não sabíamos se, à chegada, o rio estaria cheio ou vazio. Estava a transbordar devido à estação de chuvas. Pensei ‘temos de cruzá-lo, dê por onde der’. Só pensava em chegar à China e comprar comida. Tirei as minhas roupas e amarrei as peças umas às outras, para formar uma corda; disse ao meu pai que não largasse a outra ponta. Já a meio do rio, senti que a ‘corda’ tinha ficado mais leve. Olhei para trás e vi o meu pai a ser arrastado pela corrente. Tentava manter-se à tona e não conseguia. Fiquei devastado. Voltei para trás, para a margem norte-coreana, e pedi aos guardas para me ajudarem a tirá-lo da água, mas eles nada fizeram; disseram apenas que eu devia ter morrido também. Algemaram-me e levaram-me.”
Foi torturado pela polícia secreta da Coreia do Norte — denominada bowibu — em Hoeryong e cumpriu quatro meses no campo prisional de Chongjin. Quando foi libertado, decidiu tentar de novo a fuga. “Voltei a minha casa e recolhi as minhas fotos de família. Mesmo que morresse a tentar, pelo menos teria estas fotografias comigo.” O corpo do seu pai nunca foi encontrado. Em 2004, Song voltou às margens do rio Tumen, desta vez em solo chinês, e dedicou uma missa à memória do pai.
Lee Oui-ryuk, ex-preso político
Lee Oui-ryuk tem 30 anos e é de Onsong, uma cidade que se situa junto à fronteira com a China. Abandonou a Coreia do Norte em 2010, perto do aniversário de Kim Jong-il. Consigo trouxe a roupa do corpo e o seu bilhete de identidade. A data de emissão, de acordo com o calendário Juche, o calendário do regime norte-coreano, é 95.11.7 — data que corresponde a 7 de Novembro de 2006 no gregoriano.
Não foi fácil abandonar a Coreia do Norte. Lee pensou que a confusão provocada pela celebração do aniversário de Kim Jong-il poderia proporcionar uma bela oportunidade de fuga, mas enganou-se. “Os soldados alvejaram-me enquanto tentava atravessar o rio Tumen. Consegui escapar e escondi-me, mas fui denunciado e detido. Estive preso durante três meses, para interrogatório. O Estado determinou que tentei desertar para a Coreia do Sul e fui enviado para um campo destinado a presos políticos. Fugi quando me estavam a transferir para esse campo.” Conseguiu esconder-se e mais tarde foi para casa de uma irmã. Lá encontrou algumas fotografias suas. Levou-as consigo quando partiu. Porque "iria precisar delas", para "um dia olhar para trás e recordar". "Sabia que não podia voltar a casa facilmente."
Lee Min-Bok, o escritor de diários
Foi em 1990 que decorreu a primeira tentativa de fuga de Lee Min-bok, então investigador da Academia de Ciência Agrícola da Coreia do Norte. Em 1991 foi bem-sucedido e quatro anos depois alcançou a Coreia do Sul, onde vive desde então. Desses tempos, guarda as muitas memórias que escreveu. “Segundo os ensinamentos de Kim Il-sung [o fundador do país], toda a gente deveria manter um diário. E toda a gente na Coreia do Norte deveria seguir os seus ensinamentos. Eu não era excepção.”
Lee escreveu vários diários, ao longo dos anos. “Aqui, o Kim Il-sung é visto como um vilão, mas na Coreia do Norte está acima de tudo e todos. Aprendemos que ele estudou para dar um propósito às nossas vidas. Vivíamos de acordo com as suas instruções. Eu escrevi os meus diários por lealdade ao Líder. Era essa a nossa ideologia e eu vivia em rigorosa obediência. Ninguém podia pensar de outro modo.” Os seus diários foram enviados por correio, pela sua família, dez anos depois de Lee ter chegado à Coreia do Sul. “Eu enviava-lhes dinheiro e eles enviaram-me os meus diários. Nunca escrevi neles nenhum tipo de queixume. Estaria em apuros se o tivesse feito.” Hoje pensa em transformar esses registos num livro. “Creio que poderão assumir algum tipo de papel quando as Coreias tornarem a unificar-se”, explicou à Reuters. “Eles revelam a estrutura de pensamento de um norte-coreano.”
Jeong Min-woo, uma estrela de talkshow
Jeong Min-woo, hoje com 29 anos, nasceu em Hyesan, junto à fronteira com a China. Vestia o seu uniforme militar quando abandonou a Coreia do Norte em direcção à vizinha do Sul. “Cheguei no dia 22 de Novembro de 2013”, contou à Reuters. “Eu não desertei; não foi uma deserção”, insistiu. “Eu fui embora porque queria ganhar dinheiro. Disse aos guardas do controlo fronteiriço que me ia embora e deixaram-me — afinal, éramos todos militares.”
O seu uniforme foi confiscado pelas autoridades sul-coreanas à chegada, mas Jeong pediu aos amigos que lhe enviassem um novo, de contrafacção. “Na Coreia do Norte, eu usava farda todos os dias, mesmo quando estava de folga”, explicou. “Não usava roupas normais porque, se o fizesse, não poderia apanhar boleias e, a qualquer momento, alguém poderia aparecer e tentar roubar-me cigarros ou mesmo começar uma briga." É nesse mesmo uniforme que aparece regularmente como convidado do programa Now on my way to meet you, um talkshow da televisão sul-coreana em que os norte-coreanos exilados partilham as suas experiências.
Ji Sung-ho foi menino de rua
Ji Sung-ho era menino de rua na Coreia do Norte. Não tem uma perna e uma mão — perdeu-as numa queda, quando estava a roubar carvão de um comboio. Até deixar o seu país, em 2006, nunca mais largou mais as muletas. “Não teria conseguido chegar até aqui sem elas”, explica o jovem, hoje com 35 anos.
Mesmo depois do acidente, Ji nunca deixou a vida do crime. “Continuei a roubar de comboios em andamento e a cair — e a destruir as muletas. Quando era espancado pela polícia, também era comum que mas partissem. E quando isso acontecia tornava a fazer novas. Assim que tinha um novo par, voltava a roubar.” O estado norte-coreano nunca forneceu qualquer tipo de apoio a pessoas com incapacidade. “As pessoas precisavam de muletas e simplesmente construíam-nas. As minhas eram feitas à mão, por isso partiam facilmente.” Ao longo da vida, teve vários pares e este — com que se deixou retratar pela Reuters — é o último. Quando chegou à Coreia do Sul, o Estado ofereceu-lhe uma prótese. Apesar das memórias difíceis que as muletas lhe trazem, não é capaz de se desfazer delas. “Guardo-as para não esquecer.”
Kim Ryon Hui quer regressar
Kim Ryon Hui vive na Coreia do Sul contra a sua vontade. Nunca teve intenção de sair da Coreia do Norte. Foi enganada, sublinha. Tinha um problema de saúde, precisava de tratamento urgente e não o conseguia encontrar em Pyongyang, cidade onde nasceu e viveu. Procurou um “coiote”, alguém que a ajudasse, a troco de dinheiro, a atravessar a fronteira. No entanto, em vez de ser encaminhada para a China, Kim deu por si na Coreia do Sul. Hoje, Seul não lhe permite regressar, alegando “ser contra a lei sul-coreana” devolvê-la ao seu país de origem.
Baek Hwa-sung, eremita à força
Baek Hwa-sung abandonou a Coreia do Norte em 2003 e estabeleceu-se na Coreia do Sul em 2008. Tem 34 anos. Entre a fuga e a conquista de uma residência, Baek pensava constantemente que seria apanhado. “Fiquei muito deprimido e vivia escondido na montanha, sozinho. As pessoas que me escondiam aconselharam-me a não descer ao povoado e deixaram-me sozinho no abrigo durante muito tempo. Pensei que ia enlouquecer, sem ninguém com quem falar.” No presente, já vive novamente em sociedade, na capital da Coreia do Sul.