Meus bons amigos, quer porque conheço a natureza dos homens, quer porque me dedico, há décadas, a estudar a natureza das mulheres, sei de fonte segura que se, por ironia de um destino que já tem sido suficientemente mordaz, fosse preso amanhã, poderia contar, a partir de depois de amanhã, com excursões de fiéis admiradores ao estabelecimento prisional onde me encontrasse a cumprir pena. É essa certeza que me faz entrar em confidências e em desabafos que, de outro modo, seriam descabidos ou ridículos (mais acentuadamente ainda quando se pronuncia "redículos").
A minha vida — que, segundo os meus mais desorientados mas bem-intencionados amigos, deveria ser escrever — tem de ser passada, em grande parte, a descobrir sistemas alternativos, para o barato, de satisfazer os imperativos quotidianos sem ameaçar a respeitabilidade do historial bancário. Morar num castelo é caríssimo e, sem um caudal controlado de fluxos financeiros naturais desaguando automaticamente numa conta de que sejamos titulares — ou, por nós, um amigalhaço — a falta de liquidez pode morder-nos mais rapidamente do que o cão do Miguel. Conviver com humidade, correntes de ar, frio de rachar, cheiro a mofo e um número indeterminado de pessoas para jantar não é nada, como sabemos, em comparação com uma crónica insuficiência de fundos ou com um resgate do FMI à economia nacional.
Aos custos da interioridade e da propriedade acrescentam-se-me, como se fora maldição das antigas, os da nobilidade. Para o demonstrar, principalmente aos pobres de espírito, gostaria de os convidar a fazer dois pedidos de orçamentos para obras — digamos uma empreitada para substituição de uma rede de capoeira —, mas assinando o primeiro em nome próprio, isto é, como plebeus em último grau, e o segundo como Duque de Espadas, Conde Andeiro ou Marquês de Estrangeiros e Fronteiras. Verificarão, invariavelmente, que o segundo orçamento foi onerado com uns custos invisíveis elevados à sétima potência. São os custos da nobilidade.
Insistindo no tom confessional na sua forma continuada, devo dizer que não sou rico. Bem sei que é um problema meu (e como o sei...), mas rapidamente fui obrigado a repercuti-lo nos meus fornecedores, que estranharam ser possível morar num castelo sem se pertencer ao clube das parcerias público-privadas, com um amigo ou várias empresas a pagar-nos as despesas, por graça. Tal como me resumiu um dia um deles, "não ter dinheiro pode ser considerado falta de sorte... Não ter dinheiro nem amigos com dinheiro já parece falta de cuidado..." Como vêem, os preconceitos relativamente à classe dos fornecedores, mormente no não se lhes reconhecer capacidade para orbitar em espaços mais profundos do pensamento, não têm cabimento: é perfeitamente compatível fornecer arame farpado e citações de Oscar Wilde.
Ao contrário de uma certa euforia castrense promovida por filmes de guerra idealizada, não gosto do cheiro a paradoxo pela manhã, mesmo ao som de Wagner. Por isso enceno uma prosperidade não totalmente real, mas também não chocantemente fictícia, para me manter no papel de castelão tradicional. Mas sempre de consciência tranquila, estado de beatitude a que cheguei tomando lições da postura sobranceira de arguidos com 25 mil páginas de acusação e até com algumas dezenas (de milhares) mais.
Um exemplo de custos específicos decorrentes da inerência de a casa de morada de família ser um castelo é o dos decorrentes da manutenção do fosso de circunvalação e do casal de crocodilos que lá vivem. Mas alguém se preocupa com a conta da água para reencher um fosso após a limpeza anual, pela prova do vinho novo (quando lá caem mais inocentes)? Alguém se interroga quanto custa levar um crocodilo à vacina contra a tosse convulsa? A verdade é que não se pode passar sem esses elementos dissuasores de assaltos e invasões. Antigamente, bastava um fosso seco e crocodilos em cartão. Os derradeiros vapores de um moralismo atávico medieval rústico, e talvez as características do sistema judicial e prisional da época, ditavam que os cursos de entrar nas casas dos outros e se apropriar de objectos alheios tivessem poucas saídas profissionais. As transformações históricas, que permitiram a tabeliões, amanuenses, meirinhos, arautos, mercadores, vilões, bufarinheiros, almocreves, taberneiros, aguadeiros, jornaleiros e saltimbancos alcandorarem-se à posição de proprietários, acabou com esse ambiente opressivo de autocastração.
Nessa senda, os pais de sucesso, actualmente, já não querem inculcar nos seus filhos regras bolorentas ancestrais e trabalham o dia inteiro para garantir que lhes seja dada a melhor formação cívica multimédia por reputados youtubers eticamente motivados. O milagre civilizacional está à vista de todos: as pessoas já não precisam de dar largas às suas frustrações nos recintos de futebol e suas imediações, já não têm de beber até cair nas tabernas para enfrentar uma semana de trabalho ou as agruras de um curso universitário, já não têm de se sujeitar à tirania de religiões que lhes extorquem o dinheiro, e dão largas à sua muito custosa liberdade exibindo um espírito empreendedor que se traduz quer em startups de reciclagem de arte sacra de igrejas ou capelas com pouca frequência de fiéis, quer em spin-offs fornecedoras de nichos de mercado como a dos coleccionadores de sinos litúrgicos com mais de 100 quilogramas.
Outra área económica fervilhante é a dos falsos agentes de autoridade, falsos funcionários dos correios, de empresas de fornecimento de água, gás, electricidade e telecomunicações e distribuidores de ajuda humanitária com fardas descaracterizadas muito semelhantes às do Exército russo, tudo gente foliona que nos quer entrar em casa para nos aliviar do que temos, incluindo território. E, depois, se se tiver muito azar, há ainda os verdadeiros funcionários, os entregadores de pizas perdidos, os investidores em alojamento local, os vendedores de imobiliário, os desentupidores de esgotos e os construtores de marquises em alumínio, que nos querem propor "soluções" por apenas 2,35 euros por dia.
Estamos mesmo num época em que um proprietário mais desatento pode chegar a ter, ignorando-o, turistas chineses a pernoitar na sua garagem e turistas norte-americanos a assar sardinhas debaixo da mesa de bilhar-russo da biblioteca (numa noite em que ouvi vozes, encontrei nos meus corredores um grupo de pessoas embevecidas nas explicações que lhes dava, sobre os meus quadros, uma senhora alta e seca com uma bandeirinha no chapéu que se veio a apurar ser uma agente de viagens bielorrussa. Ao passarem por mim — preso ao chão pela surpresa e pelo desaforo —, deram-me palmadinhas no ombro, muito satisfeitos por se certificarem de que eu não era uma figura de cera, e meteram-me, discretamente, objectos indeterminados no bolso do casaco, cujo apuro foi um total de sete euros e 32 cêntimos em moedas, uma medalhinha de S. Cristóvão em plástico cromado e uma carteira de fósforos com o nome de um hotel e um número de quarto).
Voltando aos animais de guarda: quem pensa que é capaz de levar um crocodilo adulto sem sedação à vacinação contra a tosse convulsa no banco de trás de um carro que não seja uma carrinha celular e persista em voltar para casa com todas as peças anatómicas com que tinha saído, está bastante iludido. Ou então está desesperadamente a tentar fugir ao orçamento que recebeu de uma "empresa especializada", mencionando alíneas em direcção a um cúmulo contabilístico tais como "aluguer de viatura equipada para o transporte de animais vivos; captura e imobilização; presença de delegado de saúde animal; encarceramento em compartimento compatível aprovado pela UE; transporte em ambiente controlado, em velocidade não excedendo 30km/h e com música clássica de fundo". Outro comentário impressionante: "Aos valores indicados acresce IVA à taxa legal vigente".
Para meu pesar, não posso expandir o assunto. Enquanto juntava estas linhas, pôs-se noite, o que é um péssimo hábito dos dias. São mais que horas de o meu mordomo Galhardo acender a almenara na torre de menagem para mostrar à saciedade que estamos atentos aos desenvolvimentos mais recentes do "caso dos e-mails do Benfica" (se estivéssemos perto da costa, poderia ajudar os navios a evitarem os escolhos). Acresce um compromisso social imperioso que se me tinha esvaído do espírito: é forçoso que não falhe o convite que muito amavelmente me enviou o dr. Molete. Faltar ao seu momentoso cacharolete seria demonstrar uma soberba descabida. Peço licença para me ausentar e compensarei com um discreto relatório do que mais notável se lá passou.
Correio Premente:
De um leitor que pretende permanecer anónimo, de Vendas Novas: "Estou aposentado e penso muito nestas coisas. Tenho só um pergunta para fazer, muito simples: como é que se acaba com a desigualdade no nosso país?"
É curioso que me apresente essa pergunta. Há uns meros seis meses, não saberia responder-lhe, mas como frequentei, entretanto, um curso de formação em tudologia, pensando visionariamente num convite para um painel de um programa de televisão que pode vir na minha direcção e que seria interessante para equilíbrio de contas. De caminho, comecei a escrever um livro com soluções para esse problema, que estou a ultimar para sair no Verão, para leitura de férias. Não posso, por isso, revelar antecipadamente as grandes conclusões a que cheguei e muito menos quais as soluções, sob pena de prejudicar as vendas e pôr assim em causa o objectivo último de, com o apuro, me sentir menos desigual em relação aos que mais ganham.